Pouca gente no Brasil percebeu a volta da asa branca. Em momento dos mais desfavoráveis, a carioca Flora Purim fez discretamente o trajeto oposto ao de 52 anos atrás e deixou os Estados Unidos rumo a Curitiba, no Paraná, sul do Brasil. Em 1967, livre e solta, ela migrou no rumo do sonho de conhecer Miles Davis, Thelonious Monk e outros de seus muitos ídolos do jazz (conheceu todos e trabalhou com vários deles). O catarinense Airto Moreira já estava apaixonado por ela, e precisava de um jeito para buscá-la de volta. Foi ter com Chico Buarque, que ensaiava a peça teatral Roda Viva, de Zé Celso Martinez Corrêa, que por coincidência (ou não) esteve mais uma vez em cartaz em São Paulo na virada dramática de 2018 para 2019.
O jovem Chico levou Airto até sua casa e deu ao companheiro percussionista e baterista mil dólares em dinheiro, para que ele fosse atrás da cantora de origem judaica e a trouxesse de volta para o Brasil. “Eu nem sabia o que eram mil dólares. ‘Mas eu não sei como é que vou te pagar. Já vendi minha bateria.’ Ele falou: ‘Você não precisa pagar. Isso é um presente para você e Flora. Vai, que vocês sejam felizes'”, relembra Airto aos 77 anos, depois de fazer um show no Sesc Pompeia de São Paulo, numa noite de sábado de janeiro de 2019. Hoje, Airto se divide entre a casa em Los Angeles e a companhia de Flora em Curitiba. O dilema é o mesmo, embora em sentido inverso, ao de meio século atrás: é preciso seguir Flora, levá-la de volta para casa, talvez ficar com ela mais uma vez onde ela determinar.
Na prática, ele tem passado bastante tempo aqui, entre um e outro show do formidável álbum Aluê, que lançou pelo Selo Sesc no final de 2017. A certa altura tenho a oportunidade de perguntar ao casal se estão de volta para ficar. Flora pede que Airto responda. “Acho que sim, não sei. Eu estou aqui. Onde a gente se sente melhor é onde a gente deve ficar”, ele diz, a voz esmaecida pelo cansaço pós-show. É extraordinário, porque a moda brasileira espetaculosa do momento bolsonoia é fazer o trajeto oposto, seja fugindo (?) para Portugal, seja exilando-se (??) em algum outro paraíso europeu ou miamense.
A aproximação com Airto é delicada. Há tempos Débora Venturini, que trabalha com o casal, tenta me conquistar para uma entrevista com o artista, com a qual também sonho há muito tempo, e não sei exatamente por quais motivos tenho fugido há tempos. Desta vez vai dar certo. Vou assistir ao show e, ao final, entrevisto um dos maiores percussionistas brasileiros, prata da casa brasileira, da casa catarinense onde nasceu meu pai, da prata paranaense onde nascemos eu e o demolidor do Brasil Sérgio Moro. Débora me previne de que poderá ser árdua a tarefa: Airto está debilitado, esteve deprimido, é preciso ter tato.
De fato. Terminado o show, inicia-se um contato tateante. Ele sabe da entrevista, mas não está disposto. Prefere ir para o hotel descansar. Proponho poucas perguntas não gravadas em vídeo, apenas para não perder a viagem (intimamente já estou conformado). Entro de sola tentando falar de Itaiópolis (SC), onde ele nasceu, no coração da Guerra do Contestado, revolução quixotesca que no final do século XIX uniu caboclos e outros mestiços brasileiros em torno do sonho de derrubar a República e restaurar a monarquia que libertara os afrobrasileiros escravizados e os jogara, sem eira nem beira, no colo de generais republicanos – golpistas, ditatoriais.
Airto lembra do começo de vida musical em Ponta Grossa e em Curitiba (ambas no Paraná), mas não embarca na minha. Nada parece mais distante que a Guerra do Contestado. O baterista alagoano Carlos Ezequiel, responsável pelo impulso vital para a concepção de Aluê, interrompe a (não-)entrevista para dizer que Flora Purim o chama para atender ao público que quer cumprimentá-lo após o show ( e só agora descubro que Flora também está presente no Sesc Pompeia :-O ). Ele diz que não quer, que prefere ficar ali no bastidor (ao lado do repórter perguntão, ó escolha ingrata). “Flora está brava”, brinca alguém, com um fundo de verdade. Airto desce ao encontro do público, de livre e espontânea pressão, e eu quase desfaleço ao ser apresentado, depois de 25 anos de profissão como jornalista, à grande Flora Purim.
Flora e Débora e Carlos trabalham para que Airto converse. Para que converse com os fãs, para que converse com o repórter. Sou avisado de que seguirei com eles na van até o hotel, onde terei tempo para fazer as perguntas que já estava resignado em não poder fazer. Na van, falamos meio truncadamente sobre o Sambalanço Trio, que Airto integrou na aurora, entre 1964 e 1965, ao lado de Cesar Camargo Mariano, futuro maestro da pilantragem e de Elis Regina.
Já no hotel, segue-se uma conversa de sonhos, povoada pela importância do Quarteto Novo para a história da música brasileira e pelo gênio de Hermeto Pascoal, pelo gênio do clube da esquina de Milton Nascimento e pela bandeira política que sempre norteou a musicalidade livre de Airto & Flora décadas afora e que, ela diz, norteará o próximo disco que começa a preparar, o primeiro brasileiro desde 1964. Flora & Airto tomaram uma ditadura na flor da juventude e não têm medo dos toscos bichos papões que ameaçam nos colonizar meio século mais tarde.
Em tempo: sim, faço questão e peço que Flora participe também da entrevista. A colaboração dela é decisiva, puxando memórias e desejos de um Airto mais cansado a cada minuto. Culpo-me por torturá-lo com minhas perguntas, mas ela pede que ele fale mais a cada nova rodada. Compreendo, os neurônios também cansados de guerra pegando no tranco, que mais uma vez é ela quem está trazendo Airto de volta. Falamos muito sobre amanhecer, sobre os amanheceres de Aluê e, 49 atrás, de Natural Feelings, primeiro disco solo de Airto em solo estadunidense. Ainda não amanheceu quando volto para casa, longe disso (Airto está de fato cansado). Mas volto para casa extasiado como se amanhecesse, agradecido por eles terem voltado e pensando sem parar que, depois de mais de meio século, Flora & Airto são nossos outra vez, e talvez devêssemos estar nas ruas do Brasil comemorando.
(Segue a íntegra da entrevista infelizmente gravada apenas em áudio; a conversa rendeu a reportagem Gaiolas abertas, diferente desta e publicada na edição 1.041 da revista CartaCapital.)
Pedro Alexandre Sanches: Você está morando em Curitiba, Flora?
Flora Purim: Estou, estou.
PAS: Vocês dois?
Flora: Ele está comigo agora, já há uns seis meses. Ele está gostando muito, não quer nem voltar para lá.
PAS: Voltaram para o Brasil, então?
Flora: Para os Estados Unidos, que a casa dele é lá. Minha família toda mora lá. Eu que vim para cá.
PAS: E por que você voltou?
Flora: Bom, eu não pude voltar para os Estados Unidos. Eu tive um problema de visa. Aí falei, vou ficar em Curitiba… Nós temos um apartamento em São Paulo, é muito perigoso tudo por lá. Curitiba é bem tranquilo, tem muito músico bom, muita música boa. Eu estou gostando muito de estar lá. Temos várias famílias que nos adoram. Todo fim de semana vamos almoçar ou jantar na casa de alguém. Todo mundo, vários estúdios querem receber a gente, muita gente chamando para trabalhar.
PAS: Me espantei porque é uma falha do jornalismo, devia ser uma notícia nacional que Flora Purim e Airto Moreira voltaram a morar no Brasil.
Flora: Eu acho que ele não voltou… Você voltou de vez?
Airto Moreira: Eu acho que sim, não sei (risos).
Flora: Você acha?
Airto: Eu estou aqui. Onde está melhor, onde a gente se sente melhor, é onde a gente deve ficar.
PAS: Tomara que seja aqui.
Flora: Nós somos ciganos. A gente ficou tantos anos viajando pelo mundo que a gente só conhecia hotel. A gente não tinha casa. Tinha uma casa lá, mas a gente ia lá só para trocar de roupa.
PAS: Essa casa era onde?
Flora: Em Los Angeles. E temos um apartamento em São Paulo que eu também não quero morar lá. É um condomínio fechado, muito bonito, com piscina, pássaros. Mas… Eu não sei, sou insegura de morar em São Paulo. É no Morumbi. Eu tenho ouvido cada história no Morumbi… Quando fecha o sinal ali naquela rua Giovanni Gronchi – que é onde fica o apartamento, no portal mesmo – o pessoal ataca e rouba todo mundo. Então não quero morar…
PAS: E em Curitiba como é? Em qual bairro?
Flora: Curitiba tem gente que mora na rua, mas eles não agridem você. Eles são pessoas muito calmas. O Airto até tem uns amigos lá que moram na rua e já conhecem ele, já vêm falar com ele.
PAS: Mas o que você arriscaria a dizer? É só uma etapa da vida cigana, ou pode ser que vocês estejam criando raiz aqui?
FP: Não, é uma etapa, porque eu vou recomeçar, e a gente está com bastante propostas. Porque de repente vou voltar, e tenho toda aquela história com Chick Corea, com Joe Sample, com o Fourth World, com José Neto e Airto. A gente passou muito tempo, a gente tocava cinco semanas em Londres, no mesmo clube, e lotava.
Airto: Estou bem cansado.
Flora: Não, vou deixar ele te perguntar algumas coisas então.
PAS: Eu não quero pressionar ele, de verdade. Ele está desde o começo falando que está cansado.
Flora: Não, não, mas ele responde, ele responde, Pedro.
PAS: Eu não vou conseguir não falar com os dois ao mesmo tempo, porque é muita coisa junta. Saiu um disco fabuloso do Airto há pouco mais de um ano, quer dizer que vai vir um da Flora agora?
Flora: O meu é em novembro que vou gravar.
PAS: O dele é o primeiro disco solo que faz no Brasil…
Flora: Conta aí para ele do Aluá. O Carlos (Ezequiel, também presente) foi quem levantou essa produção.
Airto: Foi culpa do Carlos.
PAS: E é muito bom o disco.
Carlos Ezequiel: O que aconteceu foi que eu percebi que Airto não tinha nenhum disco da carreira solo gravado aqui. Conheci Airto em 2012, quando ele veio fazer um show com um pianista dinamarquês aqui, também no Sesc Pompeia. Vi esse show, a gente se conheceu, ficou amigo, ficamos conversando ao longo de alguns anos. E surgiu essa ideia, poxa, como assim, nunca tinha sido feito um disco dele aqui? Levei essa proposta para o Selo Sesc, e obviamente eles adoraram. A gente levou um tempo pensando em como seria o disco. Airto tinha ficado num período um pouco assim sabático, então ele ia voltar, tínhamos que pensar em como fazer.
PAS: Mas ele tem tocado bastante no Brasil ultimamente.
Carlos: Este de hoje foi o 21o show entre aqui e a Europa, depois desse disco. Então levou um tempo para a gente chegar a uma ideia. Airto tinha um pouco de receio assim, “será que vai rolar mesmo?”, “se em 50 anos não rolou, será que esse disco vai rolar?”.
PAS: Como foi gravar aqui depois de tanto tempo, Airto?
Airto: Foi muito bom. Foi ótimo. É com a mesma banda, a gente ensaiou num estúdio muito bom, muito legal, numa fazenda. Lá não tem lugar com medo pra ficar. A gente ensaiou, e gravamos rapidíssimo, em três dias.
PAS: Começa com a mesma música que começava o seu primeiro disco.
Airto: Pois é. Ele sabe.
Flora: Que é o nome do disco. Olha, ele sabe.
PAS: “Aluê”.
Airto: Exatamente.
Flora: Foi o primeiro disco que ele gravou, é.
PAS: Disco solo, porque ele tinha gravado muita coisa aqui já, né?
Flora: É, lá nos Estados Unidos foi o primeiro.
PAS: Aí você fala “Candeia…”
Flora: “Sol e mar.”
PAS: “…Sol e mar/ aluê”. O que você está falando?
Flora: Foi o Natural Feelings, né?
Airto: Candeia, aluê, é tipo assim quando o dia está nascendo, e as pessoas estão acordando, os passarinhos, os animais. É essa a ideia. É uma coisa mais natural. Eu achei muito bom ter esse nome, quando a gente resolveu chamar o disco de Aluê. As pessoas perguntam o que é aluê, e aluê na realidade não é nada. Aluê é uma palavra que, vamos dizer, significa muitas coisas para mim. E é um som que eu gosto, aluê, adoro esse som dessa palavra. Ficou, por isso a gente chamou de Aluê. Eu estava procurando um nome, um dia falei: “Ah, já sei qual é o nome, Aluê“.
PAS: E daí, com aquele galo na capa do disco, você falando que é a hora do amanhecer, é o galo cantando?
Airto: É.
PM: Que bonito.
Airto: É de um amigo meu que é artista, mora em Nova York (Aldo Sampieri). Falei com ele sobre o projeto, e aí a gente conseguiu que ele pintasse, fizesse essa pintura do Aluê, bom dia.
PAS: A capa é linda.
Carlos: A capa foi um processo interessante também, porque houve uma sugestão de outros artistas vinculados ao selo, mas com imagens feitas em computador, toda essa ideia da computação gráfica. Eu sempre imaginei que o Airto não ia curtir assim, e foi exatamente a sensação dele. Precisava ser algo realmente artesanal, uma pintura feita à mão. Aquilo é um quadro, uma obra que vive por si só, mas que virou capa. O olho do galo é muito forte.
Flora: Todo mundo adora a capa, tem muitos comentários.
PAS: E vamos considerar que vocês têm várias capas históricas.
Flora: É, nós cuidamos muito das capas.
Carlos: Todas são histórias incríveis, né? A capa do Seeds on the Ground (1971), não sei se você se lembra, ele está enterrado na areia da praia.
PAS: Maravilhosa, uma capa de rock progressivo.
Carlos: Conta essa história, Airto.
Airto: Bom, a gente foi fazer a capa, a gente foi à praia lá perto de Nova York.
Flora: Jones Beach.
Airto: Jones Beach, perto de Nova York. E tinha que ser uma certa hora, por questão de fotografia, de luz. O fotógrafo tinha uma pá, começou a fazer um buraco. Estava muito frio. Aí botei um macacão, deitei ali, ele me cobriu, pôs os instrumentos ali direitinho. Ele tinha duas câmeras, pegou uma, estava gelada. Agora só tem a outra, vamos ver se a gente tira uma fotografia que dê. E eu naquele gelo.
Flora: Foi às 6 horas da manhã o negócio. Ficou só a cabeça de fora.
Carlos: Congelando embaixo da terra.
PAS: Airto tinha um negócio com o amanhecer, pelo jeito.
Flora: Tinha, tinha.
Airto: Ah, é. Mas aí saiu, a única fotografia que ele conseguiu tirar foi aquela.
PAS: Esse disco é anterior aos Secos & Molhados, que mais ou menos usam essa ideia da cabeça.
Flora: É a mesma coisa, né? Mas a gente não conhecia os Secos.
PAS: É, eles nem tinham aparecido ainda.
Flora: Não. A ideia foi ótima, porque a cabeça dele parecia um instrumento que estava junto com os outros. Eu não tinha visto, quando vi falei “poxa, que ideia”. A companhia de discos ficou maluca. Adoraram.
PAS: Geralmente eles cortam os baratos. Esse eles deixaram?
Flora: É, como nós éramos novos para eles o orçamento do disco era muito barato. E o Hermeto Pascoal estava morando com a gente lá em Nova York, então ele participou daquilo também.
PAS: O que essas caras viam em vocês, nesses brasileiros?
Flora: Bom, a primeira coisa que eles achavam maravilhoso é que Hermeto era albino.
PAS: O que é maravilhoso mesmo…
Flora: A gente saía na rua, as pessoas não estavam acostumadas a ver, então pegavam no cabelo para ver se era de verdade. Ele era uma atração aonde a gente ia. Agora, ninguém sabia o quanto ele tocava.
PAS: O quanto era mais legal ainda do que parecia…
Flora: É. Aí a gente levou ele num clube? (Olha para Airto.) Eu posso falar essa história?
Airto: Claro (risos).
Flora: Levamos ele no Grady’s, lá no Village. Tinha um piano, o pessoal lá tocava, pessoal de jazz, da pesada. Aí ele sentou no piano e tocou aquela música “Laura”, conhece (cantarola)? Ele tocou umas três horas a mesma música. Só que cada vez era de uma maneira diferente, não parecia a mesma música. Todo mundo ficou chocado, os músicos ficaram “que é isso, meu Deus?”. O Miles Davis, quando conheceu ele, ficou também impressionado, porque o Miles… Quer contar essa história da música que ele pediu?
Airto: Ah, sim, é. Ele queria conhecer “o albino”, porque o pessoal começou a falar.
Flora: Foi o Joe Zawinul que falou para ele, né?
AM: Aí eu levei ele lá, eu estava tocando com ele.
PAS: Você já estava tocando com Miles, e foi você que levou o Hermeto até ele?
Airto: Certo. Aí entramos na casa dele, e Miles falou “pede para ele fazer uma música para mim”. Hermeto falou: “Tá bom”.
Flora: Você traduziu pra ele, né?, “ele está falando se você pode fazer uma música para o disco dele”. Aí o Hermeto falou: “Eu já fiz”.
Airto: É, “eu já fiz uma música”, “ah, legal”. O Miles pegou um gravadorzinho pequeno, e Hermeto tocou uma música linda. O Miles falou: “Pô, será que ele tem outra que pode mostrar?” Ele tocou uma outra música linda também. E o Miles queria mais.
PAS: Queria todas.
Airto: Aí ele falou: “Diz para ele que tem mais uma música aí pra ele”. Perguntei: “Você tem mesmo uma música para o Miles?”. Ele falou: “Não, não tenho nada, isso aí eu estou tocando assim…”.
Flora: Improvisando.
Airto: Improvisando, “posso tocar dez músicas aqui” (risos).
Carlos: E isso obviamente você não traduziu para o Miles, né?
Flora: Não, essa parte não. Mas o Miles ficou surpreso porque ele só tinha três músicas prontas.
PAS: E essa história é que vai dar na confusão de que aí o nome do Hermeto não apareceu?
Flora: Não, o Miles roubou a música do Hermeto (risos).
PAS: Eu quis ser mais delicado, mas…
Flora: Não, roubou. Mas aí nós fomos falar com Herbie Hancock e Wayne Shorter, que tinham trabalhado com Miles, e contamos a história. Aí eles falaram: “O Miles já fez isso com a gente também. Nós vamos ajudar vocês”. Compraram papel envelhecido e caneta com tinta envelhecida e transcreveram. Naquela época Hermeto não escrevia música. Transcreveram a música que o Hermeto fez para o papel e falaram: “Registra agora, porque o Miles não registra a música dele”. Aí mandamos registrar. Aí, quando a Columbia começou a brigar, como não estava registrada eles perderam a briga. Aí… Conta aí.
Airto: Teve que se entregar, né?
Flora: Aí o Miles telefonou para o Airto. Conta aí essa parte.
Airto: Aí eu falei: “Alô”. Ele falou assim: “Você conseguiu!”. E desligou.
Flora: Mas não foi só assim, ele falou: “You got it, your motherfucker” (gargalhadas). E desligou na cara do Airto.
PAS: Além de brasileiros malucos, eram sabidos também. Não se deixaram enganar.
Flora: Não, mas graças ao Wayne e ao Herbie que a gente conseguiu, e ao advogado lá da Buddha Records, que lutou, foi até o fim, e conseguimos provar que não era.
PAS: Porque, antes de vocês, o Tom Jobim passou por isso bastante, né? Os norte-americanos viraram parceiros dele em várias músicas.
Flora: O Tom e o Vinicius (de Moraes), como não entendiam do assunto ainda, venderam as melhores músicas deles por 800 dólares. “Corcovado”…
PAS: Vocês também, ou não?
Flora: Não, a gente não vendeu. A gente ia dar para o Miles as músicas, mas tinha que botar “composição de Hermeto Pascoal”. Ele tinha seis filhos com menos de 9 anos. O Airto ainda falou para o Miles: “Você vai fazer isso com um cara que tem crianças?”. Ele não queria nem saber.
Airto: Ele disse para mim: “Você tem muito que aprender ainda”.
PAS: Caramba. E você aprendeu, com o tempo, Airto (risos)? Ou está sem saber até hoje?
Airto: Não, aprendi, mas… Já era, né?
Flora: Mas foi muito duro, porque o Hermeto achou que fomos nós que roubamos as músicas dele.
Airto: É, mas…
Flora: Ele levou muitos anos para compreender. E hoje em dia ele não fala que o Miles roubou as músicas dele. Ele fala que deu, que tudo bem com ele. Ele mudou muito, o Hermeto.
PAS: Mas posso te dizer? Entrevistei Hermeto há uns dois anos e ele falou que ele roubou (risos).
Flora: Pois é, ele muda a história.
PAS: Queria só voltar num ponto. Perguntei o que os caras viram nesses brasileiros, e você respondeu só o que eles viram no Hermeto. Quero saber em vocês também.
Flora: Não, eles viram aquele trio, com aquele visual, acharam o máximo. Eles não conheciam nem a música.
Airto: Quando você diz esses brasileiros… Bom, o Brasil… Que eu posso falar, naquela época? O Brasil sempre foi um país muito querido de alguma maneira. Pelo futebol, pelo carnaval, pela música. Na realidade, a gente deve isso à bossa nova, que foi disseminada pelos Estados Unidos e pelo mundo inteiro.
Flora: É, pelo Jobim, com aquele concerto no Carnegie Hall.
Airto: João Gilberto…
Flora: João Gilberto, Gilberto Gil, Carlos Lyra, aquela turma daquela época, dos anos 1960 e 1970. Foram eles que abriram mesmo o caminho.
PAS: Uma coisa que me impressiona muito em vocês, no Airto, é que você fez o arranjo de “Ponteio” (1967) – estou falando certo ou estou falando besteira?
Airto: Foi.
PAS: Do Edu Lobo, que foi um sucesso, o vencedor do festival de 1967. E é nesse momento que você vai embora, depois de ter feito o arranjo de uma música emblemática de toda a história do Brasil. Por que você foi embora justo naquela hora?
Airto: Porque a Flora foi embora (risos).
PAS: A culpa é dela?
Flora: Nós éramos apaixonados. Mas ele não podia sair do Brasil, não tinha passaporte e não tinha documento para tirar passaporte, porque ele não serviu o Exército.
PAS: Estava irregular no próprio país?
Flora: E eu estava livre. Estava no começo, e queria muito conhecer os meus ídolos. Eu cantava na boate Stardust, e um cliente da boate que ficava até fechar um dia me perguntou “qual é o seu maior desejo?”. Falei “ah, não vou nem te contar, porque não vai acontecer. Meu maior sonho é ir para os Estados Unidos conhecer meus ídolos”. Eu não tinha nem pensado em cantar lá, nada. Dois dias depois chegou uma carta com uma passagem de ida e volta para Nova York. O cara comprou e me deu. Doutor Manolo Saenz, ele era médico.
PAS: Em quais ídolos você estava pensando?
Flora: Ah, eu queria ver o Miles, em primeiro lugar, o Gil Evans, o Thelonious Monk. O primeiro cara que eu conheci foi o Thelonious Monk.
PAS: E Airto ficou aqui com ciúme?
Flora: Não, ele ficou aqui com saudade (risos). Ele estava com o Quarteto Novo naquela época.
PAS: Não era pouca coisa.
Flora: Não, foi difícil, né?
Airto: O Quarteto Novo… A gente já não estava trabalhando bem mais, porque antes daquela revolução a gente tocava com Geraldo Vandré, com Edu Lobo, com pessoas que a gente era amigo, o Chico Buarque. E existia… A música começou a ser prejudicada.
Flora: Muito censurada, sabe?
Airto: Então eu pensei: bom, a gente não está trabalhando quase com o Quarteto Novo, e Flora está nos Estados Unidos. Então eu vou lá, fico uns três meses e daí trago ela de volta. Foi esse o plano. Mas não funcionou (risos).
PAS: Acho que já sabemos quem manda nessa história (risos)… Essa história de Airto ter feito agora o primeiro disco brasileiro… Você lá no início fez Flora É M.P.M. (1964), é isso?
Flora: Antes de ir para lá, foi meu primeiro disco aqui. Eu estava com Dom Um Romão e Sérgio Porto, aquele jornalista, que me ajudaram a conseguir o contrato na RCA. E eu gravei aquele disco com Paulo Moura, Pedro Paulo, com Osmar Milito, irmão do Hélcio, Rubem Bastinho, o Meirelles, saxofonista. Só tinha fera, todo mundo fazendo arranjo, me ajudando, sem cobrar nada, dando uma força. Fiz aquele disco e fui embora. Foi em 1965, eu fui em 1967. Porque a ditadura estava tão… Eles estavam prendendo todo mundo, Gil, Caetano Veloso… Vandré, então, vivia escondido em todo lugar, porque ele era o principal que eles queriam prender. Eu falei: “Bom, eu tenho 21 anos, vou começar a minha vida num lugar assim? Não vai dar”. Foi quando eu fui para lá.
PAS: Quer dizer, aquele foi o primeiro disco brasileiro e agora você vai fazer o segundo? Ou nesse meio tempo você fez discos aqui?
Flora: Não, não fiz mais nenhum disco brasileiro. Eu gravei no Brasil com Nico Assunção, Luiz Avelar e Airto, mas não foi um disco que saiu no Brasil. Só saiu no exterior, mas gravei o disco com eles aqui no Brasil. Aí depois foi só nos Estados Unidos e na Europa. Gravei 40 discos.
PAS: Com os de Airto devem ser 80.
Flora: Ele tem mais ou menos a mesma coisa, ou mais.
Airto: Menos.
Flora: Porque ele gravou com muitos músicos, Donald Byrd, Lee Morgan, os grandes talentos de jazz, lendas de jazz, todo mundo queria usar o Airto. Porque foi uma novidade, percussionista lá era conheiro. Tocava conga, não tocava aquelas percussõezinhas que o Airto tinha.
Airto: É, era música latina, porto-riquenha e cubana a percussão lá. Mas aí essas coisas de miscelânea, esses sons…
Carlos: Caxixi, cuíca… Fo isso chamou atenção do Miles. Aliás, foi o Lee Morgan que atendeu o telefone, quando o produtor do Miles convidou Airto pra gravar. Foi o Lee, porque o Airto nem falava inglês.
Flora: Não, não falava. O cara ligou, Airto entendeu mais ou menos que era pra gravar com Miles, e pensou que era um trote, e desligou na cara do cara.
PAS: Isso foi exatamente quando? Você estava lá?
Flora: Foi em 1969.
PAS: Você já conhecia o Miles?
Flora: Eu não, não.
PAS: Quer dizer, você foi pra lá pra conhecer o Miles e quem conheceu foi Airto?
Flora: Eu tinha ido pro México com o Tamba Trio quando ele conheceu o Miles. Eu não estava lá. O Lee Morgan, quando ligou pela segunda vez… Como é o nome? O Jack Whitmore ligou, Lee Morgan atendeu, ele falou: “Gravação com o Miles? Onde? Que horas? Ele vai estar lá, pode contar com isso”. Lee Morgan tinha ido buscar o Airto porque descobriu que Airto estava sozinho no dia de ação de graças, que lá nos Estados Unidos é thanks giving, um feriado muito importante, ninguém fica sozinho, vai comer peru na casa dos outros. Ele disse: “Você está aí sozinho?, vou aí te buscar, e você vem pra minha casa”. Foi quando o telefone tocou. Foi assim.
Carlos: Ação do destino, né? É incrível essa história. Poderia ter dado tudo errado, o cara não ter ligado de novo.
PAS: O que estou aqui passado agora é que Flora está dizendo, de certa forma, que vocês foram embora numa ditadura brava, que ninguém merecia.
Flora: Exatamente.
PAS: Mas vocês estão voltando em outra.
Flora: Bom (risos)… Nós estamos aqui pensando que desta vez a gente tem que ficar e fazer música contra isso que está acontecendo.
PAS: Por favor!
Flora: Então, nós estamos trabalhando já nessa direção.
PAS: Que sensacional.
Flora: É, porque nós estamos mais velhos, já sabemos no que é que vai dar. Porque de tempos em tempos tem ditadura. Na França em 1968 teve isso, e antes teve também.
PAS: Digamos que os Estados Unidos também não estão melhores do que nós, com Donald Trump…
Flora: Mas nos Estados Unidos nunca teve ditadura. Teve aquela coisa dos Bush, a família ficou 16 anos no poder. Mas esse tipo de ditadura que tem na Venezuela, nos países da América Central, não tinha. E aqui no Brasil ficou bravo, Vladimir Herzog morreu assassinado, e ninguém estava reconhecendo isso. Nós fomos num concerto do Chick na PUC… Do Chick não, era o Chico Buarque, e ele era proibido de cantar uma música chamada “Cálice”. Sentamos lá na PUC, o lugar estava cheio, assim que a luz apagou as portas se abriram e 50 policiais entraram e cercaram o público, com cassetetes. Nós já ficamos meio assim, vai sair uma pauleira aqui se o Chico cantar. Aí o Chico entrou, tinha um banquinho, ele levou um violão, sentou no violão.
Airto: Sentou no banquinho.
Flora: E tocou a música, “Cálice”. Mas não cantou. O público inteiro cantou a música, e a polícia não sabia o que fazer, porque a ordem era prender o Chico.
PAS: Vocês estavam ali? Porque isso foi depois (o episódio de “Cálice” aconteceu em 1973), vocês já tinham ido embora.
Flora: Foi um pouquinho antes de eu ir para os Estados Unidos. Eu decidi ir mesmo depois que vi isso acontecer. Falei: não vai ter mais liberdade para cantar, para fazer música. E foi interessante que o público cantou e a polícia não sabia o que fazer.
Carlos: Não é aquele que está em vídeo.
PAS: É outro?
Carlos: É uma vez antes.
Flora: Depois ele gravou com Milton Nascimento e tudo. Esse foi sozinho, em 1969.
CE: 1967, né?
Airto: 1967.
Flora: Ah, é, eu fui para lá em 1967. Foi em 1967, época dos festivais, aquela coisa toda.
PAS: Vocês consideram que se exilaram? Era um exílio?
Flora: Não.
PAS: Você não, você foi atrás dos seus ídolos.
Flora: Eu fui porque adorava jazz.
PAS: E você também não, Airto porque você foi atrás da sua ídola (risos).
Flora: Foi atrás de mim. Ele gostava de música brasileira, aquela música do Quarteto Novo.
PAS: Mas pode ser que isso tudo fossem pretextos, e na verdade vocês estavam saindo fora de uma roubada.
Flora: Eu saí fora da ditadura. Eu não queria ficar aqui. Ele, não. Ele foi para me trazer de volta. E não trouxe, porque aí começou a haver a liberdade que era o jazz lá.
PAS: E agora, pelo que estou entendendo, você veio primeiro e vai ter que puxar ele.
Flora: Pra cá? Foi (risos).
PAS: É maravilhosa essa história.
Airto: A história se repete.
Flora: Ao contrário.
PAS: Desculpe o palavrão, mas agora você vai fazer cu doce pra ela?
Airto: “Não volto (risos).”
Flora: O Carlos fez uma matéria para um jornal de Maceió, sobre essa história: depois de 50 anos, ele contando que Airto veio gravar esse disco no Brasil. Está muito bem escrito, você devia ler.
Airto: Bom…
PAS: Tem um senhor cansado nesta mesa.
Flora: Tem outras histórias que eu não contei, ele gravou com Paul Simon e Art Garfunkel. Tem uma música deles chamada “Me and Julio Down by the Schoolyard” (1972), e ele está tocando cuíca. Paul Simon e ele tocando cuíca na música. Fez muito sucesso.
PAS: Paul Simon já começou a sacar a música brasileira ali…
Flora: Paul Simon já se amarrou nele direto. Chamava ele pra tudo.
PAS: Para os norte-americanos vocês eram brasileiros? Ou já estavam assimilados ali?
Flora: Não, nós éramos os brasileiros. Estávamos ensinando pra eles uma outra música que não era bossa nova, que já não era mais bossa nova.
PAS: Já era um passo à frente.
Flora: Era uma fusão, era misturado com a música brasileira, mas era música americana.
PAS: Eu amo muito na música de vocês o que ela me faz lembrar de clube da esquina.
Flora: Exatamente.
PAS: Vocês têm essa afinidade, não? Você tem um disco maravilhoso, mais ou menos recente, só de canções do Milton.
Flora: Fiz, fiz, chama-se Nós Dois – Flora Canta Milton Nascimento. Foi esse que fiz com Luiz Avelar e Nico Assunção.
(Airto dá mais um sinal de cansaço. Encerramos, sob a preocupação de Flora de que já tenhamos material suficiente para uma reportagem. E como temos, Flora! Mas ela conta mais uma, antes de observar que “essas histórias quase ninguém conhece, porque a gente não conta”.)
Flora: A última, sobre Chico Buarque, é que Airto não tinha dinheiro para ir para os Estados Unidos. Aí ele foi num ensaio do Chick, do Chico, que estava fazendo Roda Viva. Sentou lá, ficou esperando, quando deu uma parada ele foi falar com o Chico e contou que eu tinha ido pros Estados Unidos, que ele estava sofrendo muito e não tinha dinheiro pra ir. Aí o Chico falou para o ensaio: “Pessoal, dá 15 minutos que já venho aí”. Botou Airto no Wolksvagen dele, foi até a casa dele, pegou um monte de dinheiro, como é?
Airto: Mil dólares.
PAS: Pagou a viagem? O cupido de vocês se chama Chico Buarque?
Airto: Eu não sabia o que era mil dólares. Falei: “Mas eu não sei como é que vou te pagar. Vendi minha bateria”. Ele falou: “Você não precisa pagar, não. Isto é um presente pra você e a Flora, vai, que vocês sejam felizes”, e é isso aí.
PAS: Vocês estão sabendo que Roda Viva está em cartaz de novo?
Flora: Ah, é, eu vi. E tem Caravanas, Chico está viajando.
PAS: Airto, posso te fazer a última pergunta? Fiquei olhando no palco o arranjo das suas percussões. Elas ficam na sua frente, parece às vezes que você está numa prisão atrás delas, ou numa jaula… Por que esse arranjo tão diferente de tudo?
Airto: Eu gosto de ver os instrumentos, onde é que eles estão. Porque às vezes, no meio de uma música, você pensa num som, você olha e está ali aquele som. Aí toca aquilo um pouco, depois põe no mesmo lugar onde estava antes.
PAS: Não é uma prisão, de maneira alguma, pelo contrário.
Flora: Aquela mesa foi feita por causa do Airto. Ele desenhou aquela mesa pra poder pendurar as coisas.
PAS: Acho que ninguém no mundo faz algo parecido, né?
Flora: Não. E eles inventaram a categoria de percussão na Downbeat por causa do Airto também. Não tinha essa categoria, era miscellaneous que eles chamavam, os estrangeiros que vinham com instrumentos diferentes. Por causa do Airto inventaram percussão, e ele ganhou por 20 anos, sempre ficou em primeiro lugar. Neste ano ele veio em quarto.
Airto: Ainda, não sei como (risos).
PAS: Por causa do Aluê, ué.
Flora: Porque ele não está em ação, não sei como eles ainda se lembraram. Porque ele é hors concours, nem competia mais, porque ganhou tantas vezes que os outros não tinham chances.