Ela tinha cantado para reis e presidentes. Fez duetos com Freddie Mercury, Luciano Pavarotti e Ray Charles. Cantou no funeral de Martin Luther King. Ela inspirou cantoras de diversas gerações, de Gladys Knight, Martha Reeves, Sharon Jones e Patti LaBelle nos anos 1960 e 1970; Whitney Houston e Mariah Carey nos anos 80s e 90; a Tia Carroll, Jill Scott, Joss Stone e Rihanna no século 21. Foi cruel com Dionne Warwick e com outras que a veneravam, sabia ser arrogante e má.
Daí, quando a vi entrar no palco pela primeira vez na minha vida, com um vestido vermelho de dimensões continentais, no palco do Madison Square Garden, em Nova York, na noite do dia 30 de outubro de 2009, parecia que não era uma pessoa que eu via, mas um espírito de cinema, uma aparição holográfica de Ghost. Não tinha fé o suficiente para enxergá-la, mas ainda assim a via como se estivesse envolta numa névoa vermelha.
Naquela noite, ela cantou Make Them Hear You, Don’t Play that Song, Baby I Love you, New York New York e Respect. Aquele set seria toda a participação dela na festa do Hall of Fame do Rock’n’Roll, frente a 20 mil pessoas. O taxista australiano que me levou para o hotel após o show quase chorou quando eu disse que tinha ouvido Aretha cantar.
Toda minha vida como jornalista de música eu tinha ouvido as alegações dos empresários do showbiz sobre os motivos de ela nunca ter vindo ao Brasil. “Aretha não considera as poltronas dos aviões capazes de acomodá-la”, disse um. “Aretha assina o contrato, mas depois não vem, cancela. É arriscado demais”, explicou outro.
Depois daquela versão de New York, New York, nunca mais consegui ouvir Sinatra da mesma forma. Porque Aretha tingia as canções de uma sacralidade diferente, tinha de fato as chaves do Paraíso em sua garganta. A raiz das tradições gospel nunca deixou de ser a marca registrada de suas interpretações, e isso vinha lá do pai pastor Batista em Detroit, de certa forma seu primeiro agente e produtor artístico. Os sermões do pai dela foram lançados em disco pela Chess Records e sua casa era frequentada por gente como Nat King Cole, Art Tatum, Dinah Washington e outros.
Criança prodígio que se tornaria mãe ainda adolescente, ela já surgiu sendo apontada como sucessora de Mahalia Jackson e Clara Ward. Foi muito além: pode ser considerada uma descendente direta da saga agoniada e ao mesmo tempo emancipatória de Billie Holiday, Dinah Washington e Bessie Smith. Quando escreveu sua autobiografia, Aretha: From these Roots (com David Ritz), que não é de jeito algum confiável, não foi surpresa quando Aretha deixou ali seu manifesto: “I’m Aretha, upbeat, straight-ahead, and not to be worn out by men and left singing the blues”. (“Sou Aretha, otimista, direta, e não para ser esvaziada por homens e largada cantando o blues”. Provavelmente só Nina Simone encarnou com tanta propriedade o orgulho da condição feminina. “Ela sabe mais do que nós sobre tantos e tantos aspectos da experiência humana”, disse de Aretha o New York Times em artigo famoso de 1973.
Sempre que ouço as diatribes sobre o estrelismo de Aretha, parece que calha de vir à memória uma história que a Sharon Jones me contou de quando começaram a fechar as portas das gravadoras para ela, nos anos 1970, o que a levou a trabalhar como carcereira durante anos. Os executivos diziam: “Muito baixinha, muito preta, muito feia”.
Foi o pai de Aretha quem a encaminhou para uma seara diferente, para a assimetria do pop e do jazz. Ele seguiu o atalho bem-sucedido de Sam Cooke para o pop e impediu que a filha seguisse o caminho da Motown, como era o caminho de sua época, para buscar um contrato com uma conpanhia internacional. Aos 18 anos, assinou contrato com a Columbia Records. Seis anos mais tarde, sem hits ainda, mudou-se para a Atlantic Records, bunker que impulsionaria de fato sua fama mundial, especialmente após ela ter gravado Respect. A canção, de 1967, originalmente gravada por Otis Redding, materializava um sentimento de liberdade que ressoava livremente naquele momento-chave da luta pelos direitos civis. Virou um passe livre de transversalidade na voz de Aretha, um manto de proteção da afroamericanidade, do empoderamento feminino. “Sua rendição de Respect lançou uma revolução”, disse Otis Redding sobre sua gravação.
Quase 50 discos gravados, 150 singles, incontáveis performances em megaeventos esportivos e políticos. Há coisas formidáveis na sua discografia e outras nem tanto. Mas é possível pinçar de cara, para uma introdução definitiva, o mais influente de seus discos: I Never Loved a Man (the Way I Love You), seu 10º disco de estúdio, gravado há 51 anos em apenas duas horas com três músicos brancos (grande ponto de controvérsia na história da gravação, de tensão racial) nos lendários estúdios Muscle Shoals (onde Wilson Pickett tinha gravado), e que se tornou um marco divisor na história do rythmn’n’blues.
O produtor desse álbum, Jerry Wexler, escreveu que a angústia cercava Aretha Franklin da mesma forma que a glória de sua aura musical. “Seus olhos são incríveis, olhos luminosos encobrindo uma dor inexplicável. Suas depressões podem ser tão profundas quanto o mar negro”.
Sam Cooke, Ahmet Ertegun, Luther Vandross, Smokey Robinson, Marvin Gaye: a vida pessoal de Aretha Louise Franklin cruza com quase todas as terminações nervosas da música de nosso tempo. Um câncer no pâncreas a levou hoje, aos 76 anos, e eu vi no Twitter do Brian Wilson que ele escreveu: “Ela foi uma das maiores e mais emocionais cantoras. Eu costumava ouvi-la nos anos 1960, mas sua música é atemporal”.
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