A coisa começa devagar. “São Paulo não é sopa/ São Paulo não é sopa/ São Paulo não é sopa/ SP sopa não é”, constata a faixa-título de abertura de SP Não É Sopa, o terceiro álbum da black big band paulistana Aláfia. O registro sonoro, a um só tempo pop e erudito, oscila entre os afrossambas do maestro baiano Moacir Santos, o afrobeat africano de Fela Kuti, o funk estadunidense originário de James Brown, o candomblé baiano d’Os Tincoãs ou de qualquer afrobrasileiro, a nigérrima vanguarda paulista de Itamar Assumpção, o hip-hop de todo lugar.
Os versos de “São Paulo Não É Sopa” soam a princípio enigmáticos, um “a revolta é nossa cota” aqui, um “sabote a bota suja que trota” acolá, um “preto e branco, chumbo e prata” no coração da cidade cinza onde não existe amor. Um pouco da fumaça se dissipa quando despontam, em meio ao funk-jazz-vanguarda paulistana, trechos que parecem sampleados de telejornais comerciais, mas trazem contrainformações do tipo “manifestação marcada mais uma vez pela truculência da Polícia Militar do governo do estado”, “a polícia que começou”, “abuso, violência e covardia” e “soldados da PM de São Paulo transformam batidas na periferia em sessões de terror” (as três últimas com uma locução que parece de William Bonner, o editor-vitrine da Rede Globo). Ainda é a primeira faixa, mas já dá para entrever na fumaça de que lado do front social a Aláfia está.
As letras soam estranhas, remetem às aliterações de Itamar Assumpção, privilegiam rizomas de África. Como num flash sob sons de capoeira, de repente a faixa “No Fluxo” relaciona os termos “choque” e “Tucanistão“. Deve ser a primeira vez que vira assunto para uma canção pop o termo “Tucanistão”, um jargão de guerrilha usado para designar estados brasileiros governados pelo PSDB com mão de ferro antipopular travestida de tímida modernidade. Terceira faixa, “No Fluxo” dialoga com “Salve Geral” (do segundo álbum, Corpura, de 2015), que dizia “nosso fio desencapou/ e você não escapa do choque/ com a nossa rapa você não é capaz” e “nossa rapa é muita treta/ não nos damos com os teus demônios/ decapitamos o teu capeta/ decapitaremos o teu capital/ decapitaremos o teu capa preta/ decapitaremos o teu capataz/ da capoeira você não escapa”. Os narradores (e a narradora) da Aláfia espreitam a tropa de choque, do lado de cá do front militarizado.
Estamos no terreiro da coragem e da revolta, ainda que em linguagem cifrada, de pichação nos altos de edifícios da cidade acinzentada. “Gentrificação” é o título em relance da quarta faixa, a ganância dos mais ricos fechando todas as portas e janelas da cidade branca para os mais pobres: “Não vi mais viela ou relevo ou favela/ condomínio nivela, cala, gela/ (…) especula, encurrala o beco a seco/ cala, gela/ é a gentrificação“.
“Saracura” se ancora na geografia de cortiços e riachos submersos do bairro da Bela Vista, “onde 13 de maio não cruza com Abolição/ quilombo urbano de casarão em casarão e casarão“. A tradição musical (menos) branca (do qu)e preta do tradicional Bixiga é honrada no soul sincopado da saracura, com homenagens nominais a, entre outros, Pato n’Água, Oswaldinho da Cuíca, Geraldo Filme, Nelson Triunfo, Itamar Assumpção, Branca di Neve, Mano Brown, Sabotage e Região Abissal. A soma entre samba e rap e vanguarda e samba-rock quer se autodenominar Aláfia.
Sétima faixa, o rap “Liga nas de Cem” começa afirmando que a musa São Paulo é fio de navalha (“venha até São Paulo ver o que é bom pra tosse”, provocava Itamar em 1993) e abre o jogo de uma vez por todas, sem peias: “Em bairro de grifes/ rifles miram a nossa cabeça/ Morumbi, Moema, Jardim Europa/ o xis do problema/ meritocratas chiques clichê de novela/ que pisam em pobre/ vão pra janela bater panela/ desobediência é a solução/ contra a tirania de sua tradição/ sua chibata bate, mas eu tô de pé“. Veja bem, desobediência é a solução. O choque se excita.
“São Paulo é solo preto/ se eu contar os gueto/ num sobra nem o centro/ não gostam da gente/ lamento o ódio do inimigo/ agora nóis é seu curto-circuito“, define-se a cidade murada onde, apesar de tudo, sim, existe amor.
Num trecho final, não transcrito no encarte do CD, o nome do inimigo é mais uma vez declinado: “O pior do ruim, Doria, Alckmin, não encosta em mim, playboy/ eu sei que tu quer o meu fim”. Há mais de duas décadas o estado de São Paulo tem sido sopa de pedra tucana. O desobediente e audaz SP Não É Sopa veio ao mundo financiado pelo programa ProAc, do governo Alckmin. Como ensinou a velha tropicália, é proibido proibir a crítica aos inquilinos de ocasião do poder – é ou não é?
“O pior do ruim, Doria, Alckmin“, que a ouvidos desafinados pode soar no susto como “fora Alckmin”, foi o trecho suprimido da edição final do episódio de 11 de abril do programa televisivo Cultura Livre, da TV Cultura, emissora pública administrada pelo governo estadual tucano, segundo denúncia da própria banda ao portal Fórum. Trata-se de flagrante de abuso de poder e censura ideológica da arte, daqueles que os petistas hoje defenestrados do poder jamais praticaram – e, se tivessem praticado, seriam instantaneamente soterrados pela gritaria sobre liberdade de expressão que até o ano passado os veículos do Partido da Imprensa Golpista (PIG) martelavam em diapasão uníssono. Sob golpe de Estado no país, a censura tucanistanesa passou pelo PIG em brancas nuvens, sob silêncio de concreto de jornalistas e, principalmente, dos patrões deles.
(P.S.: como observou a leitora Cláudia Tavares, a criadora do programa Cultura Livre, Roberta Martinelli, se posicionou abertamente sobre o episódio no Facebook. Saberemos se será retaliada por isso.)
“Liga nas de Cem” deve ser o momento de maior tensão em SP Não É Sopa, mas o pique de confronto prossegue sólido daí em diante. A faixa seguinte é “Peripatéticos”, centrada na lida de ~moradores~ de rua, desempregados, trabalhadores de calçada, artistas de asfalto: “Sopas e sapos/ papos com ninguém”, “são tico-ticos no fubá dos fatos”, “o lúmpen limpa a via por vintém/ seu desalinho não é desacato“, “grudam nas ruas feito carrapatos”.
“Extremo Sul” viaja do centro para a periferia, no tempo de “um samba no Embu”, de um blues “de tijolo baiano nu”. A conclusão é chocante, embora evidentemente cause menos choque nos poderes de plantão que os versos suprimidos sobre Geraldo Alckmin e João Doria Jr.: “No meu rolê todo mundo já sabe/ esta cidade é cruel/ e no entanto o céu/ ele não é só seu“. O céu não é só seu, playboy. O choque revira os olhinhos e quebra as vidraças do Congresso Nacional.
Qual estivéssemos num Era o Hotel Cambridge em forma de álbum conceitual, o longo e cortante poema concreto “Teu Mar Me Enche os Olhos” atravessa o oceano em busca das origens dos exilados, migrantes e refugiados que vieram e vêm ter conosco que aqui estamos: “São Paulo, oito cores no arco-íris,/ céu rosa e roxo, pincel sujo,/ teu crepúsculo é o mais belo/ São Paulo Bolívia e Haiti/ Senegal, Japão“. A beleza explode nas tintas grafite da black big band.
Como não deveria deixar de ser na cultura majoritariamente negra que a Aláfia representa, SP Não É Sopa termina com “O Primeiro Barulho”, uma loa de autoestima às divindades africanas: “Sou eu mesmo e eu/ meu deus e meu orixá”. Se deus está vivo, somos nós nossos próprios deuses. O choque ajoelha, reza e prega o ódio ao próprio irmão, à própria irmã.
Afora a potência musical, estamos diante de uma formidável obra de combate, de importância ímpar para espelhar sem papas na linguagem a São Paulo de sempre e o Brasil de hoje. Como não poderia deixar de ser, neste crepúsculo de estrangulamento das liberdades de expressão minoritárias (aquele que o PIG não esboça sinal de combater), é na têmpora das alafianas e dos alafianos que o Estado de exceção está agora mesmo apontando o trabuco da truculência. Quem está em silêncio está do lado de lá do front de guerra de extermínio.