“Sim, mas a favela nunca foi reduto de marginal/ só tem gente humilde, marginalizada/ e essa verdade não sai no jornal/ a favela é um problema social.” Nos versos iniciais de “Eu Sou Favela” (1992), o pernambucano Bezerra da Silva (1927-2005) falava da realidade das comunidades pobres cariocas (e brasileiras) no pós-ditadura e dos estertores de Fernando Collor, o breve, ao mesmo tempo em que lançava um grito de revolta contra quem rotulava toda uma vertente do samba com o apelido canalha de “sambandido”.
Composta por Noca da Portela e Sérgio Mosca, “Eu Sou Favela” era uma resposta às críticas dos poucos que, nas camadas ditas mais intelectualizadas, se dignavam a ouvir o tipo de arte que Bezerra produzia. Era também uma resposta autocrítica aos excessos protagonizados pelo próprio Bezerra, abundantes nos discos que o celebrizaram do início dos anos 1980 como intérprete divertido de crônicas pesadas sobre uma realidade de tráfico e uso de drogas, deduragem, exploração da fé, pobreza extrema e outras formas de violência.
Antes ou depois de “Eu Sou Favela”, a obra de Bezerra é documento valioso do período histórico em que foi concebida. Envelheceu como crônica da realidade econômica brasileira, mas soa mais atual que nunca no que diz respeito às realidades política e social. Nem é necessária uma análise em regra de sua obra para chegar a tal conclusão: basta tomar qualquer disco do artista, em qualquer tempo, e pregar os ouvidos em seus sambas apenas aparentemente apenas divertidos e engraçados.
Quer ver? Tomemos os cinco álbuns agora disponibilizados pela Sony Music para download e/ou streaming via iTunes e/ou Spotify, Deezer, Google Music, Apple Music etc. (leia mais sobre as reedições virtuais na edição 937 da revista CartaCapital, nas bancas até 3 de fevereiro). É avassaladora a aula sobre o que mudou e o que não mudou no Brasil entre 1980 e 2017, sobre o que fomos no passado recente e o que (não) somos hoje, sobre o que não queremos ser e o que somos em qualquer período, sobre o que queremos e não queremos ver sobre nossa própria realidade social, política, econômica, comportamental.
Partido Muito Alto (1980)
“Inferno Colorido” (de Jorge Costa): “Em cada canto da cidade tem uma favela/ que não tem beleza nem riqueza também/ tem é um bocado de povo esquecido/ representando um inferno colorido”.
“Crocodilo” (de Zé Augusto e Fernando de Jesus, atualíssima em tempos de institucionalização paramilitar da “delação premiada” a partir dos zorros justiçadores da República de Curitiba): “A sua chinfra, malandro, é caguetar/ anda batendo pra todos que é meu camarada/ crocodilagem é seu caso, eu morei na jogada/ na velha prova dos nove você não passou, não passou/ levou um sacode dos homens e me entregou/ delatou/ arrume a sua trouxa e bate grota”.
“Liberdade” (de Comprido e Sarará, uma letra-petardo que Michel Temer, José Serra e Aécio Neves nunca escutaram ou, se escutaram, fizeram ouvidos moucos de não compreender, não querer, fazer beicinho e não permitir): “Brasil, o teu imenso tesouro/ não são as minas de ouro/ nem o petróleo, nem o café/ o teu tesouro se resume em nove letras/ eu vou te escrever qual é/ L-I-B-E-R-D-A-D-E/ liberdade, epopéia de glória/ consagrada em lutas memoráveis/ que ficaram na história/ desde o grito do Ipiranga/ simboliza nossa galhardia/ somos amantes da liberdade/ defensores da democracia, meu Brasil“.
Samba Partido e Outras Comidas (1981)
“Asa a Cobra” (de Cosme da Viola e Darci do Pandeiro, que não deviam estar pensando em Donald Trump quando sonhavam com cobras aladas): “Se Deus desse asa a cobra/ o mundo estava perdido/ carroça andava na frente/ e o burro atrás, escondido/ carroceiro puxava carroça/ e na frente do burro ele vinha/ a cozinheira ia pra sala/ e a madame pra cozinha/ servente seria chefe/ soldado seria tenente/ chefe ia trabalhar lá na vaga do servente/ se deus desse asa a cobra/ meu Deus, como ia morrer gente”.
“Lindo Cenário” (de Ney Silva, Paulinho Correa e Trambique, o mesmo cenário que Leci Brandão celebrizaria em 1985, ao narrar o nascimento do “novo líder” “Zé do Caroço”): “Olhem pra trás/ e vejam que lindo cenário/ vou descrever/ é o Morro do Macaco/ que está todo iluminado/ neste lindo anoitecer/ ele fica/ em frente ao Pau da Bandeira/ morro de gente maneira/ rapaziada legal/ (…) depois vou/ lá na tendinha do Vela/ e vejo que toda favela/ não há luz de lampião/ porém tenho que reclamar/ é que está faltando nela/ meu barraco pra morar”.
Bezerra da Silva e um Punhado de Bambas (1982)
“Apertar o Cinto” (de Barbeirinho do Jacarezinho, sobre a inflação e a recessão na fase final da ditadura civil-militar, um canto de trabalho de primeira na voz daquele que o status quo adorou tachar de “sambandido”): “A metade do dinheiro que ganho/ é somente pra pagar aluguel/ já estou ficando louco/ e qualquer dia desse vou parar no pinel/ e o restante do meu salário/ eu não sei por que razão/ vai tudo de volta pra mão do pacotão/ (…) no tempo da vaca gorda fiz economia, juntei um trocado/ trabalhei por dia 24 horas, por Nossa Senhora penei um bocado/ quando fui trocar a grana/ fiquei muito injuriado porque o troco que eu tinha guardado/ estava desvalorizado”.
“Deixa uma Paia pro Veio Queimá” (de Adelino Moreira, macumba ou maconha?, favela ou senzala?): “Prepare o meu cachimbo, cambono, me traga a bengala depois/ é que eu vou dar um descarrego nesse otário cabeça-de-boi/ é que esse otário é metido a malandro, ele não é malandro, é vacilador/ ele fez a cabeça sozinho, pisou na redonda, esqueceu do vovô/ vovô foi do cativeiro/ e só vem na terra pra fazer o bem/ é que vovô é cabeça-feita, malandro/ e não atrasa ninguém/ vou somente dar um susto nele, cambono, pra sempre de mim se lembrar/ toda vez que fazer a cabeça deixa uma paia pro véio queimar”.
“Cipó Caboclo” (de Didi do Jacarezinho e J.B. do Jacarezinho, certamente senzala – ou seria a “reforma trabalhista” dos usurpadores?): “Cipó caboclo serviu pra amarrar nego no toco/ trabalhava o dia inteiro na fazenda do senhor/ apanhava sem motivo da chibata do feitor/ cada gemido que dava desfazia no tambor”.
Se Não Fosse o Samba… (1989)
“Se Não Fosse o Samba” (de Carlinhos Russo e Zezinho do Valle, e que poderia ser conhecido em 2017 como “Melô do Lula“, o Zorro de Curitiba que não nos ouça): “E se não fosse o samba quem sabe hoje em dia eu seria do bicho/ não deixou a elite me fazer marginal/ e também em seguida me jogar no lixo/ (…) toda vez que descia o meu Morro do Galo eu tomava uma dura/ os homens voavam na minha cintura/ pensando encontrar aquele três-oitão/ mas como não achavam/ ficavam mordidos, não me dispensavam/ abriam a caçapa e lá me jogavam/ mais uma vez na tranca dura pra averiguação/ batiam meu boletim/ o nada-consta dizia ‘ele é um bom cidadão’/ o cana-dura ficava muito injuriado/ porque era obrigado me tirar da prisão”.
“O Bom Pastor” (de Regina do Bezerra e Pedro Butina, e que poderia ser conhecido em 2017 como “Melô do Malafaia“, “Melô do Feliciano” ou “Melô da Lavagem de Dinheiro”): “O irmão arrochou a mulher do parlamentar/ ao invés de ‘é um assalto’ o safado gritou/ ‘põe o dízimo de Jesus aqui na sacolinha na paz do Senhor’/ põe os 10% de Jesus aqui na sacolinha na paz do Senhor'”.
“Malandro Não Cagueta” (de Julinho Belmiro e Jorge Garcia – brincadeira tem limite e não, não vamos dizer que poderia ser a melô do ministro do Supremo Tribunal Federal que morreu no avião que caiu no mar): “Malandro/ estou sabendo que você tá caguetando/ muito cuidado, uns e outros/ que você pode dançar/ malandro não vacila e você tá pagando para vacilar”.
“Sonho de Operário” (de Pedro Butina e Walter Meninão, que parece pesadelo – e é bem real): “O operário sonhou/que a elite condenou ele à morte/ depois lhe mandou pro inferno/ por serpobre, favelado e não ter muita sorte”.
“Língua de Metrô” (de Bicalho, Sílvio Modesto e Capri – melhor nada dizer, apenas sentir): “Olha aqui, quem é você pra falar do meu comportamento?/ você não tem base nem conhecimento pra dizer que eu dou dois e sou cafungador/ olha aqui, seu muquirana, otário, safardana, língua de metrô/ você é pilantra, patife e canalha, crocodilo, covarde e também delator”.
“Doutores do Meu Brasil” (de Fernando de Jesus e Rubens da Mangueira, que não seria a melô dos médicos cubanos, já expulsos do Brasil para a alegria da elite da medicina trans-nacional): “Doutores do meu Brasil, boa noite/ eis o meu boa noite cordial/ doutores do meu Brasil, peço licença/ pra saudar os compositores do local/ quem vem cantando meu samba é minha academia/ só quero o justo valor da minha poesia/ uma estrela brilhou no cenário do samba/ onde só tem gente bamba”.
Partideiro da Pesada (1991)
“Pastor Trambiqueiro” (de Zaba – e quem seria essa tal de Vera?): “Cuidado com ele, de terno e gravata bancando o decente/ é o diabo vivo em figura de gente/ é o pastor trambiqueiro enganando inocentes/ prestem bem atenção, o enredo macabro que ele arruma/ seu critério maior é falar mal da macumba/ dizendo que a ela também pertenceu/ sim, mas só não foi em frente porque a chefe do terreiro é a Vera/ não aceitou o jogo sujo da fera que vive assim só de arrumação/ ele também não explica o porque da mudança da água pro vinho/ só porque não umbanda não vale dinheiro/ resolveu ser crente pra roubar os irmãozinhos”.
“Canudo de Ouro” (de Adelzonilton, Nilo Dias e Franco Teixeira, das mumunhas da atividade religiosa como fachada com isenção tributária para outros tipos de transação profissional): “Embecado numa rica batina/ na porta da igreja o vigário ficava/ rezando bem alto a missa em latim/ pra não dar na pinta o que ele transava/ todos que ali passavam se admiravam da sua oração/ mas a reza do padre só fazia milagre/ pra quem entendia aquela transação/ dentro da igreja o padre era um santo/ das 6 da matina até meio-dia/ mas embaixo da sua batina/ cheia de flagrante que só Deus sabia/ o crucifixo que o padre usava/ era um tremendo canudo de ouro/ só quem sabia do significado desembolsava logo o dinheiro do couro”.
“Pena de Morte” (de Nilson Reza Forte e Bimba do Tavares Bastos, sobre a realidade de 2017 dentro dos presídios – e também fora deles): “Pra que pena de morte, doutor?/ essa ideia é que me consome/ se o filho do pobre antes de nascer/ já está condenado a morrer de fome/ quando o colarinho branco/ mete o rifle sem dó nos cofres da nação/ o senhor não condena ele à morte/ e também não lhe chama de ladrão”.
“Juiz de Toda Humanidade” (de Bicalho e Capri – que, não, não é a “Melô do Moro” nem a “Melô do Michel”): “Ó, meu Senhor,/ juiz de toda a humanidade/ vou dizer a verdade/ eu sei que a maldade não foi o senhor quem plantou/ vivemos ao pé dessa elite selvagem e maldita/ onde só tem parasitas sugando o sangue do trabalhador/ (…) é uma vergonha o salário do aposentado/ que pagou e trabalhou pra viver descansado/ e pra não morrer de fome ainda tem que correr atrás”.
Em tempo: os compositores de que Bezerra da Silva captava o imaginário (a maioria absoluta deles completamente anônima) eram recrutados na classe trabalhadora miúda dos morros cariocas. Alguns deles são crua e poeticamente focalizados no histórico documentário Onde a Coruja Dorme (2012), de Simplício Neto e Marcia Derraik, que pode ser assistido abaixo, na íntegra.