Como redesignar 1964?

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O jornalista vivido por Jardel Filho tapa a boca do “povo” em “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha

Há um sem-número de motivos para que, em plena vigência de um golpe de estado, os brasileiros não estejamos nos mostrando dispostos a assimilar, muito menos a problematizar a fundo o que está nos acontecendo. Um desses motivos é que o golpe de 2016 exige que reescrevamos tudo que as babás nos contavam sobre o golpe anterior, o de 1964.

Não é de hoje que nos constrange e irrita a romantização do golpe e da ditadura civil-militar de 1964. Mas, via de regra, preferimos não refletir, muito menos falar sobre isso. Afora toda a dor real e vivida, há toda uma pilha de histórias da dona carochinha.

Nos colocamos, os de nós que já estavam aqui em 1964, como vítimas indefesas de uma feroz conspiração movida contra nosotros por espíritos ocultos. Os maus praticaram o golpe, os bons sofremos as nefastas consequências dele.

Algumas de nós foram barbaramente torturadas, mas torturador nenhum de nós fui. Espectros etéreos foram os que torturaram, estupraram, assassinaram – anônimos sujeitos ocultos, vagueiam a esmo até hoje, alguns deles quem sabe ocupando altos postos políticos.

Os de nós que eram artistas já atuantes em 1964 e 1968 se refestelam em contar histórias romantizadas de repressão, arbítrio, exílio, censura e resistência (sobretudo de resistência). A classe artística foi uníssona contra o estado de exceção, nossa heroína, mártir e libertadora coletiva.

Nos brasileiros da política, como nas brasileiras da sociedade como um todo, poucos há que reconheçam que sustentaram, apoiaram ou sequer concordaram com o golpe e com a ditadura de 1964. Sumiram do mapa os indivíduos pró-arbítrio, como daí por diante desapareceriam, sucessivamente, eleitores espectrais de Fernando Collor, de Fernando Henrique Cardoso, de Dilma Rousseff (vamos excluir por ora Luiz Inácio Lula da Silva, que terminou seu ciclo com altos índices de aprovação – e, portanto, ainda usufrui de certo número de eleitores com carteira de urna assinada, embora francamente descendente esse número). Até mesmo, veja que coisa doida, já sumiram do mapa como por encanto as legiões de eleitores que levaram o golpista Michel Temer à presidência do Brasil. Não faz nem um ano, e nossa memória já os esqueceu – se esqueceu deles, os eleitores-fantasmas de Temer. (Eleitores?)

Recita-se com provas cabais a brutal interferência dos Estados Unidos da América do Norte (entre outros membros da elite econômica mundial) nos nossos pobres destinos terceiro-mundistas. Ninguém duvida do patrocínio estadunidense às ditaduras que se alastraram pela América Latina nos anos 1960 e 1970.

Dos de 1964, 1968 e além, os livros de história preferem registrar quem denunciou (às vezes com a própria viva) o estado de exceção e quem lutou pela retomada do estado democrático de direito, oh, que nome tão bonito. Só sobrevivemos os obedientes à sacrossanta Constituição Federal, enquanto enterrávamos um a um cada um dos profanadores daquela bíblia pétrea da democracia. “Eles” sucumbiram, “nós” aqui estamos.

Quanta mentira, quanta farsa, quanto auto-engano.

2016 golpeia e anula parte substancial da discurseira romântica de 1964. E 2016 é um beco sem saída.

Para negar que exista um golpe em curso em 2016 é preciso apoiar abertamente figuras abjetas como Temer, José SerraGilmar MendesAécio NevesSérgio MoroJanaína Pascoal, um sem-fim de ministros corruptos, barões de mídia, megaempresários da Fiesp e líderes religiosos fundamentalistas, entre outros bichos (quase todos) menos votados. Até há uma facção de gente disposta a fazê-lo, mas tão diminuta quanto (ou mais que) a parcela brasileira capaz de admitir em 2016 que elegeu Fernando Collor em 1989. É constrangedor negar o golpe de 2016, talvez melhor seja manter o silêncio.

Para admitir que estamos novamente em amplo, geral e irrestrito estado de exceção (ou seja, que os ricos e os remediados começamos a sentir na carne aqueles efeitos comumente restritos aos mais pobres de nós), a coisa fica ainda mais complexa e complicada. Seria necessário desdizer muito de tudo que já dissemos e continuamos dizendo sobre 1964, 1968, AI-5, estado democrático de direito, liberdade de expressão, direitos humanos, blábláblá. É constrangedor afirmar o golpe de 2016, talvez melhor seja manter o silêncio.

O fato doloroso é que, exceto alguns malucos batedores de panelas (mas nem de longe todos eles) que apoiam abertamente as ~intervenções militares constitucionais~ e outras garatujas lógicas, não estamos reagindo energicamente ao golpe e à semiditadura de 2016. (Será que isso significa que, ao contrário do que preconiza o romantismo de esquerda e de centro, o Brasil via de regra não reagiu energicamente contra e até mesmo apoiou a ditadura de 1964?)

Talvez não nas palavras bonitas de alguns de nós, mas na prática, via de regra, estamos fingindo que não percebemos escalada repressiva, abusos policiais generalizados, estupro incondicional às leis, cassação de votos e direitos, macarthismo, caça às bruxas etc. etc. etc. (Será que foi isso que o Brasil fez diante da perseguição política, da censura e da tortura institucionalizadas da ditadura que jurávamos superada?)

Há quem jure que as oito deusas por trás de Michel Temer vieram do éter para nos salvar da ditadura comunista, mas se ridiculariza como delírio e teoria conspiratória uma nova rodada de interferência estadunidense (etc.) truculenta na triste vida ameríndia do sul. (Teriam sido os EUA de 1964 o Batman mítico redentor que nos libertou de cruéis vilões comunistas comedores de criancinhas indígenas?)

Como de praxe, estudantes adolescentes fazem de conta que são adultos (que conto macabro de fadas), sob perverso olhar autocondescendente dos mais velhos, e tomam a voz de basta que os verdadeiros adultos vão deixando calar. (Teriam UNE e MPB  sido os adolescentes de 1968?)

Os artistas ensaiam poucas palavras de ordem no varejo, mas no atacado seguem seus caminhos de admirável gado novo na Globo, na gravadora falida, em qualquer outro desses entrepostos do(s) golpe(s). Os intelectuais e acadêmicos idem, na academia e nas editoras. Os jornalistas, que segundo reza o romantismo publicavam receitas de bolo aprovadas pelo patrão, hoje nos comportamos como milícia patrulheira de sustentação do golpe. (Será que, guardadas as peculiaridades de época, 1964 também foi assim?)

Será que, guardadas as peculiaridades de época, a narrativa antiditadura e antigolpe a que nos acostumamos foi uma reconstrução maquiada e romantizada (e tão perversa e hipócrita quanto qualquer fábula moral romântica) do que aconteceu na dura realidade das ditas duras, brandas e moles?

Seremos capazes de redesignar 1964 para explicar 2016? Teremos disposição para essa tarefa que fere a dignidade e o amor-próprio de cada um de nós?

Ou, por outras palavras, será que teremos no futuro a cara de pau de reescrever em tons de coragem, resistência e romantismo toda a covardia, apatia e conformismo que estamos protagonizando neste que se constrói como um dos piores anos de nossas vidas?

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

2 COMENTÁRIOS

  1. Apesar do sentimento ruim, a emoção macabra vamos a todo custo buscar a conversa sempre porque o mar não está pra peixe. Eles estão buscando o diálogo.

  2. Porque nós brasileiros temos que agir com tanta apatia ou temos uma postura de que tudo isso que está acontecendo é com os mais pobres, os menos privilegiados. Porque não podemos nos unir e lutar como fazem outros povos outras nações, porque uma minoria chamada políticos continuam dominando a maioria chamada povo?

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