“Se tiver repressão eu tô perdida”, brinca a cineasta paulistana Tata Amaral, sentada diante do computador na sede de sua produtora, a Tangerina Entretenimento. Ela se refere aos livros que a cercam, talvez à sinopse em que trabalha na tela, ao imaginário de esquerda que sempre lhe foi caro e presente. Mas poderia estar pensando também em Trago Comigo, seu filme em cartaz há poucos dias, sobre um diretor teatral (vivido por Carlos Alberto Riccelli) que encara lidar com os próprios esquecimentos e bloqueios encenando uma peça da qual o protagonista é ele próprio quando jovem, em tempos e vivências de ditadura, opressão, omissão, silêncio, resistência, repressão, tortura.

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Inacreditavelmente, estamos revivendo em parte aqueles dias da ditadura civil-militar de 1964-1985, não apenas no enredo de Trago Comigo, mas também nos episódios políticos que convulsionam o Brasil de 2016. Assim como este repórter, Tata acredita firmemente que vivemos o curso de um novo golpe.

Após a entrevista, sairemos juntos num Uber rumo ao lançamento paulistano do livro coletivo A Resistência ao Golpe de 2016 (Projeto Editorial Praxis), no qual a cineasta-autora de Um Céu de Estrelas (1997), Antônia (2006) e Hoje (2011) discursará em nome da comunidade cultural brasileira (veja abaixo).

Trago Comigo existiu originalmente em 2007, como série da TV Cultura, emissora pública paulista. Trata, em primeiro plano, de um embate entre esquecimento e memória. Nos anos 1960-1970, Telmo, o personagem de Riccelli, militou contra a ditadura que não queria (e eventualmente ainda não quer) se chamar ditadura. Assaltou banco, foi preso, sofreu torturas, perdeu para a repressão e a tortura de Estado a namorada também guerrilheira. No tempo presente, Telmo se esqueceu completamente de boa parte daquilo tudo – inclusive, até mesmo, da existência da namorada desaparecida.

Num debate após a estreia paulistana do filme, em que este repórter está presente, Tata fala de seu apreço pela tática de partir de um episódio pequeno, particular, e a partir dele contar histórias mais amplas, gerais, irrestritas. Em nossa entrevista na Tangerina, ela detalha como Trago Comigo nasceu da superação de um trauma individual: o suicídio de seu companheiro Serguei, quando ele tinha 20 anos e ela, 19, e a decisão que tomou décadas depois, por volta de 2005, de contar à filha, a hoje também cineasta Caru Alves de Souza (diretora de De Menor, de 2013), que o pai ateou fogo ao próprio corpo quando ela era um bebê.

O drama de Telmo é menos íntimo e particular, já que se confunde com a história mais ou menos recente do Brasil, e se esparrama por um arco bem mais amplo do que a própria Tata poderia supor ao prepará-lo como série e ao transformá-lo em filme.

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Em Trago Comigo, Telmo repreende os atores de sua peça por chamarem guerrilheiros de “terroristas” e entra em conflito com o jovem que o interpretará na encenação teatral (vivido por Felipe Rocha) sobre se seu papel no passado foi de um herói perseguido pela ditadura ou de um assaltante de bancos. Em 2016, vários de nós andamos a esmo tentando demonstrar que o que se vende como “impeachment” é parte da atualização de um golpe comparável ao pregado em 1964, para não falar de disputas mais prosaicas, como das grafias “presidente” versus “presidenta”.

“As disputas seguem. Estamos disputando estudante em luta com ‘baderneiro’, corrupto com ‘petista’. A disputa é simbólica, eu sei, eu sempre soube disso”, Tata acrescenta duplas semânticas ao ringue. “É a disputa das narrativas. Quem é que é o dono da narrativa? Quem é que conta a história?”

A cineasta reflete sobre como os acontecimentos de 2016 perturbam e modificam uma obra que, a princípio, está voltada para episódios de 50 anos atrás: “O filme é atual infelizmente. Eu não poderia imaginar essa qualidade dele. E por que ele é atual? Porque até hoje a gente não fez a lição de casa. A gente não identificou os criminosos. Como sociedade a gente não decidiu, por exemplo – e isso é uma disputa de narrativa -, que torturador era criminoso. Quando você decide que torturador é criminoso, o que faz? Investiga, julga e prende. Qual é a mensagem que a sociedade brasileira dá pra ela mesma? Que pode continuar torturando. Não há nem vestígio de punição, ao contrário. O que existe é uma premiação”.

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Se durante a ditadura civil-militar a figura do delator tornou-se maldita à esquerda e à direita (pensemos, por exemplo, em Wilson Simonal), hoje o termo em voga é “delação premiada”. A figura de um provável delator (interpretado por Emílio di Biasi), que no presente se tornou político e mecenas da peça em construção, é tratada com generosidade pelo roteiro. De forma análoga, Tata repete o que já fizera em Antônia e trata com afeto e gentileza as novas gerações, aqui representadas nas jovens atrizes e atores que Telmo dirige. A prumada é não dar asas a ressentimentos, vinganças ou competições inter-geracionais: é possível conciliar, os inimigos são outros.

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Trago Comigo insere depoimentos reais de militantes de esquerda que foram torturados pelo regime de exceção de 1964, e entre eles poderia estar Dilma Rousseff, presidenta hoje deposta, no que depender dos desejos daqueles que querem seu lugar. Se não ajustamos sequer as contas com os termos do passado, como poderíamos compreender os do presente?

“A sociedade brasileira não contou pra ela mesma o que aconteceu. Na Argentina, os julgamentos (dos torturadores) eram televisionados, as pessoas aprendem nome de coronel torturador na escola. Aqui você não sabe que (Artur da) Costa e Silva, o nome do elevado, foi um presidente que instituiu o AI-5″, exemplifica a autora, poucos dias antes do anúncio de que o Minhocão paulistano seria (será mesmo?) renomeado Presidente João Goulart.

Tata relata seu susto quando, tomando os depoimentos de ex-guerrilheiros, passou a ouvir, de suas bocas, os nomes e sobrenomes dos militares que os haviam torturado. “Foi quando a ficha caiu, eu falei: ‘Gente, mas torturador tem nome’.” Muito simbolicamente, o filme opta por apagá-los e colocar tarjas pretas sobre as bocas dos ex-torturados, nos momentos em que pronunciam os nomes dos torturadores, vários deles ainda vivos.

A artista traz mais uma vez seu filme sobre memória e esquecimento para o tempo presente. “O depoimento da Rita Sipahi me deu uma chave. Ela fala: ‘A sociedade que não trata a tortura é uma sociedade que aceita a tortura’. E é verdade, a gente tá vendo isso, ficou muito claro em 2013, quando você via aquela polícia que antes tava escondida, lá longe, mesmo nas chacinas do Geraldo Alckmin. Em 2013 aquela polícia ficou evidente. Quando fui pra rua naquele 17 de junho, fui pra lutar contra a Polícia Militar. Quando chega lá, você encontra o Brasil acordado, o gigante. Ali a gente viu o tamanho do bicho. Eu não poderia imaginar. Foi muito forte, muito.”

Mais um exemplo aproxima Trago Comigo de hoje. O coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), homenageado pelo deputado federal reacionário Jair Bolsonaro em seu voto antiDilma, é o torturador citado no encerramento do filme de Tata. “O Ustra foi declarado torturador, mas nunca foi julgado. A partir dali alguém poderia pedir a investigação dos crimes dele e sua punição, mas foi só isso: foi reconhecido torturador. Faltou o passo seguinte, que é, em sendo torturador, ser responsabilizado pela tortura.”

Nos dias instáveis que correm, Trago Comigo ganha camadas e camadas de significados. Um país que não nomeia torturas pode torturar e torturar novamente, em moto contínuo. Na roda viva seguem girando, como se fossem perpétuos, preconceitos de toda natureza, estupros coletivos e não coletivos, golpes que se repetem e nunca são assumidos no ato como tal (ao menos não pela maioria de nós).

Conforme Trago Comigo evolui, revela-se que Tata Amaral mirou no individual, no “pequeno”, e acertou no universal, no grande. O esquecimento de que o filme trata refere-se ao passado, mas se refere igualmente ao presente. É possível que estejamos nos esquecendo automaticamente do que está acontecendo neste exato instante? Quantas décadas demoraremos para plasmar os traumas que estivermos anestesiando hoje mesmo?

“Quando as pessoas ficam vivas e podem falar, é uma cura”, reflete durante a entrevista (aqui, na íntegra) a mesma Tata Amaral que minutos antes brincou de imaginar o que poderia acontecer se a repressão ideológica à moda dos anos 1960 e 1970 se intrometesse a querer arreganhar os dentes de novo nos anos 2010.

 

 

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