Segue abaixo a transcrição da entrevista com a cineasta paulistana Tata Amaral, norteadora da construção do texto “O esquecimento do presente“.

 

Captura-de-tela-2016-05-16-14.55.39

477380.jpg-c_215_290_x-f_jpg-q_x-xxyxxPedro Alexandre Sanches: Quando Trago Comigo foi pensado, idealizado e realizado?

Tata Amaral: Trago Comigo foi filmado em 2009. Foi gravado, porque inicialmente era uma série de televisão. A TV Cultura me chamou pra fazer parte de um projeto chamado Direções. Chamam diretores pra fazer minisséries de quatro episódios cada, e fomos eu, Beto Brant, Eliane Caffé e mais três diretores de teatro.

PAS: Nisso Antônia já tinha acontecido?

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TA: Antônia foi lançado em 2007. Como eu já tava preparando Hoje, achei tudo bem falar disso aqui também, não só de resgate de memória como resgate da ditadura, e aproveitar pra fazer pesquisa pro Hoje e de dramaturgia. Naquele momento eu tava preocupada em criar uma forma dramatúrgica de expressar uma relação problemática com o passado: como a gente expressa isso, o fato de não enfrentar, as histórias nunca serem claras. Vamos falar de esquecimento mesmo. A gente tinha muito pouco dinheiro. O orçamento total, se não me engano, era R$ 560 mil, pra quatro episódios. Falei: ou a gente enlouquece ou vamos fechar uma única locação – um teatro, por exemplo, já que o personagem do Telmo (vivido por Carlos Alberto Riccelli) busca fazer uma peça pra se lembrar. Na verdade, a grande maneira de expressar o passado no filme é o futuro, é a peça.

PAS: A Comissão da Verdade não existia ainda?

TA: Nem tinha, a Comissão da Verdade foi em 2012. A tônica da filmagem era: gente, esse negócio aconteceu, não é uma fantasia. Tanto que em determinado momento decido colocar depoimentos reais, porque via que as pessoas não se tocavam que aquilo acabou de acontecer. Temos agora uma ação de lambe-lambe que se chama “isso acontece(u) aqui”. Porque aconteceu, gente, e algumas pessoas estão aí pra contar a história.

PAS: A série foi ao ar pela TV Cultura quando? É a mesma coisa, ou outra?

TA: Em 2009 mesmo. O material é o mesmo, só que a série é bem diferente do filme.

PAS: É o processo contrário de Antônia, que foi filme e depois virou série?

TA: É. Havia um precedente de que me lembro, o Auto da Compadecida, uma minissérie do Guel Arraes que foi pro cinema. São as mesmas cenas, mas a série tem mais cenas. A série se espalha mais, tem mais depoimentos. Pro longa a gente cortou personagens. O filme até tem algumas cenas que foram desprezadas na série, mas todo o material foi filmado lá.  A série continua passando, a Sesc TV vai programar em julho.

PAS: Então não era originalmente um filme, mas depois virou. Por quê?

TA: Não era um filme mais ou menos. A ideia da série era muito mais trabalhar o esquecimento que as pessoas têm, falar: “Gente, acorda”. Hoje o filme ganhou outro sentido. Hoje você precisa lembrar, não dá pra fazer a egípcia, principalmente depois de 2013. A coisa da Polícia Militar ficou muito clara…

PAS: O filme me levou a pensar sobre o esquecimento do presente. Passo o dia inteiro dizendo que acaba de acontecer um golpe no Brasil, para pessoas que dizem que não é golpe. O esquecimento não é só sobre o passado.

CkxWYzBWsAERtWOTA: Exato, o esquecimento não é só sobre o passado, e quando você fala isso também fica claro e vem uma outra coisa que é a disputa das narrativas. Quem é que é o dono da narrativa? Isso é muito louco. Quem é que conta a história? Hoje a gente vai para o lançamento de um livro chamado A Resistência ao Golpe de 2016. Tem que estar documentado. Tem obras que caem no esquecimento, A Privataria Tucana, por exemplo, teve até meme (à direita) da Mariana Godoy que vai dar aquele livro lá do Fernando Henrique Cardoso para a Dilma Rousseff, eu não entendi aquilo, juro. Foi a coisa mais sem claquete que vi, não quero crer…

PAS: Sem claquete quer dizer o quê?

TA: (Risos.) É jargão de cinema. Fazer a claquete tem um sentido, que é sincronizar som e imagem na hora de montar. Quando a pessoa entra sem claquete, ela começou a filmar ou a atuar antes de as coisas estarem sincronizadas, sem noção. Como é que ela manda aquilo? A Privataria Tucana é um livro muito importante, e esqueceu-se. O meme foi esse, o mínimo seria a Mariana Godoy dar A Privataria Tucana.

PAS: Voltando a Trago Comigo, desde o início você sabia que ia virar um filme?

TA: Desde o início eu abri a possibilidade de fazer um filme, e aí decidi não fazer, porque logo depois batalhei o Hoje e em 2011 filmei. O Hoje foi pra Brasília, ganhou um monte de prêmio, aí ficou aquela luta pra lançar o filme, que foi difícil e não deu. Eu tava muito satisfeita com a série, mas depois de 2012 e de lançar o Hoje comecei a achar que gostaria de voltar a fazer o longa. Antes eu tava satisfeita, a série fez sucesso, reprisa pra caramba, deu recorde de audiência na TV Cultura, passou integramente no Festival de Direitos Humanos. As pessoas do movimento em defesa dos mortos e desaparecidos e das vítimas da ditadura pediam muito DVD pra TV Cultura. Me convenceram. Então comecei a ir atrás do dinheiro pra fazer o filme, e conseguimos a conta-gotas. Esta montagem é de 2012, 2013, acredite se quiser. Depois foi mais um dinheirinho pro som, e ficou pronto em abril do ano passado.

PAS: Parece que você estava esperando alguma coisa acontecer?

TA: Incrível. Não tenho explicação pra isso.

PAS: Ou é meio o ritmo natural de um filme?

TA: Eu batalhei muito nesse meio tempo, você não sabe as recusas que eu tive. Acho que é o ritmo natural de um filme não-comercial, que não é um blockbuster. Tem a ver com o Hoje, que também é um filme de pouco público nas salas de cinema – mas licenciei pra HBO, passa aqui, passa ali. Hoje em dia você espalha, mas Trago Comigo também não é um blockbuster.

PAS: Tudo que aconteceu nos últimos tempos no Brasil muda o sentido do seu filme?

TA: Eu acho que muda, sem dúvida, e como, né? Até o (coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante) Ustra acabou de aparecer, na boca do (deputado federal Jair) Bolsonaro, e é o cara que termina o filme. No DVD a tarja no nome dele continua, mas no texto final ele está mencionado, como a pessoa que foi reconhecida como torturadora pelo Supremo Tribunal Federal.

PAS: Não consegui me descolar do momento atual em nenhum momento do filme. Assisti pensando no hoje. Claro que não é tudo igual, mas no filme há o momento da disputa entre os termos “terrorista” e guerrilheiro, como hoje estamos disputando se é impeachment ou golpe.

TA: Estamos disputando “baderneiro” com estudante em luta, “corrupto” com petista. As disputas seguem. A disputa é simbólica, eu sei disso, eu sempre soube. Mas o acirramento que está agora, como assim? De certa forma, o filme tem uma antena, estava tratando de coisas que hoje, sete anos depois, são absolutamente contemporâneas.

PAS: E não resolvidas.

TA: E não resolvidas! Essa é que é a questão.

PAS: É a questão central do seu filme, e é a nossa questão como país. Tem gente que até hoje não acha que a ditadura civil-militar foi ditadura. Tem jornal que chama de ditabranda.

TA: Tem jornal que chama de ditabranda.

PAS: Alguém que não assimilou aquele golpe como um golpe, como vai assimilar o de agora, que é mais “suave”, como dizem?

TA: É, exatamente. O filme é atual infelizmente. Eu não poderia imaginar essa qualidade dele. E por que ele é atual? Porque até hoje a gente não fez a lição de casa. A gente não identificou os criminosos. Como sociedade a gente não decidiu, por exemplo – e isso é uma disputa de narrativa -, que torturador era criminoso. Quando você decide que torturador é criminoso, o que você faz? Investiga, julga e prende. Qual é a mensagem que a sociedade brasileira dá pra ela mesma? Que você pode continuar torturando. Por quê? Porque no final você vai receber uma anistia. As pessoas (que torturaram) que estão morrendo, que estão velhas, morrem com pensão do Estado. Não há nem vestígio de punição, ao contrário. O que existe é uma premiação. E, quando alguém pleiteia uma reparação financeira do Estado pela tortura, é criticado como aproveitador. Ou seja, a sociedade brasileira não contou pra ela mesma.

Na Argentina, os julgamentos eram televisionados, as pessoas aprendem nome de coronel torturador na escola. Aqui você não sabe que (o general Artur da) Costa e Silva, que é o nome do elevado em São Paulo, foi um presidente que instituiu o AI-5. Tem outra coisa que me deixou chocada quando a gente estava fazendo a pesquisa dos personagens. Eu não conhecia nenhuma daquelas pessoas reais que aparecem dando depoimento. A gente encontrou, naquele grupo (de sobreviventes da tortura), pessoas que se dispunham a falar – tem muita gente que não quer nem expressar.

PAS: Você não pensou em colocar entre elas a então presidenta da República?

TA: Quando eu filmei a Dilma era ministra.

PAS: É verdade, não era presidenta ainda. Em 2009 a gente nem tinha se tocado muito de quem era essa personagem ainda, né?

TA: Não, não tinha. Depois, em 2010, é que veio a Dilma guerrilheira, encontraram a foto dela.

PAS: Teve gente envolvida com a ditabranda falsificando documento…

TA: Teve gente falsificando, exatamente, com a dita cuja. Nem sei se as pessoas sabiam que a Dilma tinha sido guerrilheira. Minha condição é de quem começou a militar no movimento estudantil, mais ou menos interessada em história, mais ou menos informada…

PAS: Você já disse que não tem um histórico familiar de ligação com a repressão, não é algo que você foi procurar por razões pessoais.

TA: Não. Meu primo começou a militar e leu Galileu Galilei quando entrou na USP, eu tinha 13 anos e ele 18. Mas isso já devia ser 1973, 1974, ele mantinha um certo segredo. Mas não tinha, não. O que eu fiquei muito chocada na pesquisa foi quando soube que as pessoas lembravam os nomes (dos torturadores). Foi quando a ficha caiu, eu falei: “Gente, mas torturador tem nome”.

PAS: Ou seja, aí você se tocou que você própria tinha se esquecido de uma coisa que nem sabia que existia…

TA: Exatamente, os caras têm nome, tem rosto. Depois, conversando com eles… Quando decidi botar tarja (nos trechos de depoimentos em que torturados citam nomes de torturadores), eu falei com eles. Ivan Seixas, o cara que fala que o pai foi torturado até a morte na presença da mãe, contou que uma vez pegou um metrô e viu um dos caras que o torturaram. Quando ele levantou, o cara saiu abruptamente, de medo. Eles devem ter muito mais horror do que a gente. Os caras têm uma vida X aí. Tudo isso pra dizer que eu, nessa condição de participante do movimento estudantil no final dos anos 1970, mas sem histórico, me choquei com a falta de conhecimento.

PAS: No debate na estreia do filme em São Paulo, falou-se que ao nomear um trauma se consegue colocar ele presente, reconhecer sua existência.

TA: Quem falou foi a (psicanalista MariaNoemi de Araujo, que trabalha com as Clínicas do Testemunho.

PAS: É muito o que o filme faz, não sei se você tava ligada nisso, nomeando um trauma nacional.

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TA: Sinceramente, eu tava muito ligada. Eu tanto tava que eu tava justamente lidando com um trauma meu. Finalmente, eu tinha acabado de contar pra minha filha (a cineasta Caru Alves de Souza, diretora de De Menor, foto acima) que o pai dela tinha se suicidado. Foi aí que me toquei de um monte de coisas. Ela me perguntava: “Quem sabe?”. Eu dizia: “Ah, todo mundo, na época falei pra todo mundo”.

PAS: Qual é essa história?

TA: Serguei, meu primeiro marido, pai da Caru, a gente era muito novinho, apaixonados, e fomos morar juntos. O sonho dele era ter filho, eu estava apaixonada, se ele dissesse “vai pra China” eu ia. Agente perdeu um bebê antes da Caru. Engravidei de novo, Caru nasce, quando ela tinha três meses ele se suicida. A vida inteira eu conto que ele morreu, virou estrelinha. A família dele é muito próxima da gente.

PAS: Ele era artista?

TA: Não, ele tinha 20 anos, eu 19, não tínhamos nem profissão ainda. Não tinha dado tempo. A gente queria fazer cinema. Eu nem lembrava, uma amiga me disse que ele queria fazer cinema. Quando Caru me perguntou quem sabia e eu falei que todo mundo, fui contar pra minha mãe. Ela não sabia. Fui contar pra minha irmã, “imagina, contei pra mamãe, ela não sabia”. Minha irmã começou a chorar. Tinha um monte de gente que não sabia, que eu não contei.

PAS: Você supunha que as pessoas sabiam.

TA: É. Chegou uma hora que falei: “Caru, e agora, o seu avô?”.

PAS: O pai do Serguei?

TA: É. Muito depois ela perguntou pra uma prima, que disse que, sim, eu contei pra ele na época, no dia.

PAS: Como Serguei se matou?

TA: Ele jogou fogo. Jogou e não queria mais, correu pro banheiro, e pegou na cortina. Não tinha como o corpo respirar mais. Ainda viveu quatro dias e morreu dia 26 de agosto. Foi melhor assim, não tinha nem como.

PAS: E quando você foi contar pra Caru?

TA: Em 2007.

PAS: A princípio, não teve nada a ver com a série Trago Comigo?

TA: Não, não teve nada a ver. Minto, não foi em 2007. Conto pra ela em 2005. Ela tinha 26 anos. Logo depois, Betty Faria me apresenta o livro do Fernando BonassiProva Contrária, que depois adapto como Hoje. Lá tem uma cena de suicídio, eu quis fazer o filme só por causa dessa cena. A cena do filme não é a do livro, é a minha, é o meu suicídio que tá lá. Eu quis fazer porque tava nessa de fazer análise, não posso morrer sem falar pra minha filha como o pai dela morreu. Tem que dar um jeito de criar coragem e falar.

PAS: E foi menos ruim do que você imaginava?

TA: Exato.

PAS: Sempre é, né?

TA: Sempre é. Foi muito dolorido, sem dúvida. Mas, por exemplo, a Caru começou a fazer análise, porque precisou reposicionar a história dela. Ela falava: “Eu já sabia que tinha alguma coisa”. Porque eu contava que o bujão tinha explodido, contava a coisa do queimado, não conseguia esconder tanto. Mas pra maior parte dos meus amigos eu não contei, depois vim a descobrir, porque bloqueei mesmo a minha memória. Daí essa ideia do esquecimento e de trazer à luz e então ver, perceber o que aconteceu e criar uma narrativa coletiva… Tudo isso que tô te falando um pedaço eu lembro, mas, por exemplo, não lembro de ter contado pro meu sogro. Lembro de ter andado naquela rampa do Hospital das Clínicas com ele pra lá e pra cá.

PAS: É curioso que você não lembra de ter contado pra quem contou e não contou quem achava que contou.

TA: Incrível, né?

PAS: É igualzinho história de tortura, ditadura, golpe, qualquer coisa. Mecanismo de desligar a cabeça…

TA: De desligar a cabeça, de esquecimento provocado por trauma. Dá um bloqueio ali.

PAS: Então, quando vai começar a fazer Trago Comigo você já tinha assimilado o seu trauma pessoal? Ele nasce disso?

TA: Já, já tinha assimilado. Ele nasce disso, mas nasce mesmo. Faço três trabalhos nessa época, de 2009 a 2011: Trago Comigo, a série, Hoje O Rei do Carimã, um doc TV (de 2010). Esse é um episódio da vida do meu pai, que morreu em 1984, um episódio que fiquei sabendo no dia em que minha mãe morreu, contado pelo irmão dele, meu tio. Ele conta mais ou menos, é uma história difusa, depois vou perguntar, outro tio conta de outro jeito… Meu tio comenta situações que implicam que meu pai tivesse dinheiro. Eu falava: “Mas tio, como assim, com que dinheiro?”. “Ah, você não sabe?, ele tinha muito dinheiro”. “O que aconteceu, cadê?” “Ah, pois é, isso foi muito antes de conhecer sua mãe, ele teve um problema, teve que ir pro Mato Grosso.” “Mas que problema?” O Mato Grosso fazia parte do ideário do meu pai, que ele ia, caçava, contava muitas histórias.

PAS: Você já filmou em Mato Grosso?

TA: Não.

PAS: Vai um dia? Mato Grosso é maravilhoso…

TA: Já fui pra um ou outro lugar, mas nunca filmei. Mas, então, são três filmes que falam disso. É que, como os processos são demorados, a coisa se arrasta.

PAS: Voltando a unir os pontos dos traumas, você falou disto no debate também, de como uma história particular pode contar uma história coletiva de uma maneira eficaz. Você parte de uma história individual e termina fazendo um filme que explica tanta coisa sobre o presente do Brasil. Só se pode dar um golpe como deram na Dilma, em alguém que foi torturada, porque as contas do passado não foram acertadas.

TA: Porque se não, no mínimo, se teria um respeito por ela.

PAS: Não têm nem esse respeito, né?

TA: Não têm nenhum respeito por essa pessoa, muito pelo contrário. Se você visse na página do Trago Comigo os comentários das pessoas… “Ah, foi preso por quê? Meu pai era sapateiro e não teve nenhum problema na ditadura. Deve ter aprontado alguma.”

PAS: É a fala do personagem do ator jovem no filme.

TA: É. “Quer virar herói?” Você lembra o que disse o (deputado federal) Orlando Silva no debate? Achei sintomático. Vamos tirar o nome do torturador da rua, vamos botar Frei Tito? É um herói, evidentemente, um cara martirizado. Aí o papo (dos moradores da rua com nome de torturador) é “como vai botar o nome de um suicida na rua?”. Você entende? O torturador não tem problema, mas o suicida é péssimo. Rita Sipahi me deu uma chave no depoimento, ela fala: “A sociedade que não trata a tortura é uma sociedade que aceita a tortura“. E é verdade, a gente tá vendo isso, ficou muito claro em 2013 quando você via aquela polícia que antes tava escondida, lá longe, mesmo nas chacinas do Geraldo Alckmin, as Mães de Maio. Em 2013 aquela polícia ficou evidente. Quando fui pra rua em 17 de junho, fui pra lutar contra a Polícia Militar. Quando chega lá você encontra o Brasil acordado, o gigante.

PAS: E dá no que dá.

TA: E dá no que dá! Você não sabe nem de onde veio aquele gigante. Ali foi uma virada muito grande. Em 2010 foi uma virada de internet muito forte, as campanhas. Mas em 2013 você viu o bicho. Ali a gente viu o tamanho do bicho. Eu não poderia imaginar. Foi muito forte, muito.

PAS: Essa questão da sociedade que aceita a tortura a gente vê também no caso recente do estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro. É basicamente a mesma coisa, todo mundo tentando justificar.

TA: É, “também, ela entrou”, “também, ela se drogava”, “também, dava pros caras”, “também…” Na série Causando na Rua, decidi que não ia deixar nenhuma fala sem informação. Começamos a fazer pesquisa de dados. Num dos episódios acho que completei essa minha concepção da nossa sociedade. É o tapete-manifesto, uma mulher faz um tapete na rua e um grupo de teatro faz uma peça que fala de violência contra a mulher, só de gesto, não tem palavras. Pergunto pra ela: “De onde veio a ideia?”. “Tapete-manifesto vem de duas tradições, a festa de devoção e o assassinato de mulheres”. Ãhn? Aí começo a pesquisar. Brasil é o quinto país do mundo em violência contra a mulher. Um estupro a cada 11 minutos. O estupro é subnotificado. 23% da população acham que mulher que usa shorts merece ser estuprada. Merece. Que que é isso? É tudo a mesma coisa. Outro dia estava vendo Domingão do Faustão, são só bundas. Não tem rosto nem pé, é só bunda rebolando pra câmera. Bom, realmente, uma bunda não tem uma personalidade, não tem um ser humano. Aquilo dura horas, vai e volta, vai e volta. Que que é isso que essa televisão tá fazendo?, milhões de pessoas vendo isso todo santo domingo.

PAS: Outro dia o site da Globo falava de um cara que tinha estuprado várias meninas e a manchete era “caso intriga a polícia”. Intriga a polícia.

TA: É muito cinismo. No final da série, depois de todas as pesquisas, pensei: meu, se a maioria da população brasileira é de mulheres e negros, cadê essa representatividade? Realmente é uma cultura de branco macho hétero. Não tem o que fazer, é isso. Tudo que a gente tá vendo, o pouco que a gente conquistou os caras querem tirar. É meio Afeganistão pós-talibã, né?

PAS: E a gente acha que o Afeganistão é lá longe.

TA: Esses caras ficam financiando a direita mesmo. Primeiro, tira o dinheiro, dá uma desesperança pra uma parcela grande da população, e segundo constrói um discurso. É em todo lugar, olha o discurso do Ken Loach em Cannes. Cannes este ano, eu fui, era uma loucura, a cidade tava sitiada, com navio no mar, encouraçado apontando, pra chegar é barreira e interrupção a cada hora, abre a bolsa, passa no detetor de metais. É meio avião, mas pra cada andadinha. Uma grana.

PAS: São sinais de que não somos só nós aqui que não lidamos bem com os esquecimentos… Essa paranoia toda tem raízes.

TA: É. Mas, por exemplo, falei pra uma amiga parisiense essa coisa dos nomes das ruas, que impressiona. Ela disse: “É como se em Paris tivesse a avenida Adolf Hitler“. Aqui no Brasil não teve o ajuste de contas. Glenda Bessarola fala que a questão é que não teve julgamento imediato e nunca teve julgamento. Quem fez ação foi a família Teles, que quando a gente filmou Trago Comigo tinha acabado de ganhar em primeira instância contra o Ustra. O Ustra foi declarado torturador, mas nunca foi julgado. Ou seja, a partir dali alguém poderia pedir a investigação dos crimes dele e sua punição. Mas foi só isso: foi reconhecido torturador. Faltou o passo seguinte, que é, em sendo torturador, ser responsabilizado pela tortura.

PAS: Se reconhecemos e não punimos, estamos novamente dizendo que é legal torturar.

TA: Exatamente, o cara tem lá a pensãozona de sei lá quanto, a família dele.

PAS: Falando sobre a cena em que o jovem ator confronta o diretor, eles praticamente rompem e em seguida se abraçam. Eu já via isso em Antônia, você mostra um respeito muito grande pelas novas gerações. Aquele menino não tem culpa de não saber essa história que até nós mesmos esquecemos. O conflito acontece, entre duas gerações, e eles imediatamente se reconciliam.

TA: Não é uma história particular, é uma história pública que não foi tratada como pública.

PAS: Será que na vida real eles iam mesmo se reconciliar ali?

TA: Então, não sei também. Os processos de teatro são muito mais afetivos e catárticos. Cinema até também. Não sei se o cinema tem tanto essa possibilidade. O teatro tem uma vivência maior, os personagens são construídos, a duração dos ensaios é maior, tudo vira um processo, as pessoas se misturam, vão aprendendo com o personagem, vão levando pra vida.

PAS: Vão fazendo DR…

TA: Tem muita DR. É meio isso que o filme fala. Me perguntaram se não pensei em fazer um filme (dentro do filme) em vez de peça. Acho que não, o filme teria um monte de gente, seria outra história. Essa história é o diretor e o elenco.

PAS: O filme é cinema e teatro e televisão, e é um desnudamento. Você fica ali contando, entregando a mágica, os truques. O cinema tem feito isso, Dogville (filme de 2003 do dinamarquês Lars von Trier)… Você peita isso muito de frente.

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TA: E eu gosto, sabe? Sempre gostei muito de processo, tenho pesquisa sobre isso. Acho que desnudar é muito interessante, em todos os filmes eu tento fazer isso. A história dos relatos, dos testemunhos, vem de muito tempo. O Hoje inteiro é em cima de relato. O depoimento da (atrizDenise Fraga é um depoimento da Elza Lobo, Denise viu aqueles depoimentos tanto quanto o Riccelli. Essa coisa do esquecimento, “pau-de-arara foi depois, não, foi antes”. A gente traz muito no filme esses momentos de busca do Riccelli, que não consegue lembrar, tem uma imprecisão.

PAS: Bloqueios.

TA: Bloqueios. O relato é muito importante, independe de ser cinema, teatro ou televisão. Tenho certeza que não poderia ter feito esse filme se não tivesse assistido ao Jogo de Cena, (documentário de 2007) do Eduardo Coutinho, aquele que é só relatos, atrizes contando histórias. Enfim, é um jogo de cena.

PAS: Outra visão generosa do filme é em relação ao personagem que aponta para ser o delator, que virou político e mecenas da peça teatral, e no final ele também não é nem o mal nem o bem.

TA: Não é mal nem o bem. A ideia desse filme, que é muito clara pra mim hoje, é que sob tortura não há o quê, não há discussão. Depois eu soube, de várias formas, que existiam a turma que tinha delatado e a turma que não, e era uma questão, você delatou, você não, você fraquejou, você não. Eu aprendi a olhar e a respeitar, principalmente depois de um capítulo do livro do (Bernardo) Kucinski (K. – Retrato de uma Busca) que fala da culpa e conta a história da escolha de Sofia, essa mulher que acabou se suicidando anos depois, por uma culpa que não teve, que é a culpa de escolher um dos filhos. É a crueldade tal… Só li esse texto depois de ter feito os dois filmes, e por isso ele se colou nos dois filmes de uma maneira muito intensa. A tese é em relação a entregar ou não entregar, eu hoje nem quero usar essa palavra delação, embora se usasse na época.

PAS: E está muito em voga novamente – e, de novo, uma sociedade que permite isso permite qualquer coisa.

TA: Num outro sentido, né? Essa palavra merece que a gente estude e não simplesmente esqueça. Na época se usava a delação…

PAS: Hoje se usa e se premia.

TA: E se premia a delação, delação premiada, exatamente. Na época era um horror. O cara que entregava era um rato.

PAS: Ao mesmo tempo você está falando da autopunição, de quem delatou e se culpa depois, eventualmente se suicida depois.

TA: Todos eram demonizados, e a tortura é um crime ignóbil, ignominioso, horrível. Submeter uma pessoa à tortura é uma coisa muito ruim, então não é possível julgar a pessoa. Tinha a coisa das 48 horas, o depoimento do Ivan fala isso: não entregou o ponto, entregou um ponto falso, apanhou pra caramba, voltou, percebeu que já eram 19 horas porque ouviu A Voz do Brasil, entregou a casa dele. Aí ele vai com os caras na casa dele e estão lá a mãe e as irmãs. Ou seja, ele entregou. Só que ele achou que não. A Lúcia Murat foi minha consultora, tinha lido o roteiro, foi ela que me descreveu como era assalto a banco, tinha uma cena da série relatada pelo Telmo que era a tortura dela.  Depois que viu a série, ela falou: “Isso é muito difícil, porque acho que falei de alguém, porque não tava aguentando mais e porque achei que o cara não estava mais. Só que esse cara morreu depois. Eu nunca vou saber se foi porque falei o nome dele ou não”.

PAS: E vai carregar sempre isso, “trago comigo”.

TA: Trago comigo. Quando as pessoas ficam vivas e podem falar, é uma cura. Ou se responde ou fica aquele assombro, aquele fantasma. Mas quando a pessoa morre a culpa que você carrega é horrível. A culpa, no livro do Kucinski, cai muito bonito, porque ele fala da culpa dos que simplesmente sobreviveram. “Por que eu sobrevivi e ele não? Como? Será que ele foi mais sacaneado do que eu?” Tem toda uma construção em que a pessoa que sofre a violência de Estado continua extremamente assombrada. Muitos deles não conseguem nem falar. Tanto que tem esse programa, a Clínica do Testemunho, que é falar, enfim, falar. Os psicanalistas preparam as pessoas pra falar, pra dar o depoimento, pra pedir a indenização. Porque é muito forte. A Lúcia mesmo, que eu conheço, faz filme pra caramba, quando foi falar na Comissão da Verdade eu ouvi pela internet uns dias depois e não acreditava. Meu, não é possível, é minha amiga, que tá aqui, tendo vivido esse tipo de coisa. É muito forte. É muito forte.

Então essa generosidade vem de uma tese, de uma coisa que eu acredito. Claro, um pode ter fodido com o outro. Eu queria dar muito mais ambiguidade à cena do que consegui naquele momento, mas de qualquer forma o que eu tinha certeza que queria dizer, conclusão da obra, é que não tem como julgar. É uma escolha de Sofia.

PAS: Outra coisa do filme que me traz muito pro momento de hoje é aquele personagem ator da peça, que não é negro, mas é um mano da periferia, certamente resultado de sua experiência na Brasilândia, em Antônia. Ele dá uma zoada no diretor, que porra de movimento de elite era aquele? Ali você dá uma sacaneada na esquerda, não sei se generosa ou não, mas merecida: a reação não se espalhou pela sociedade toda. E nós não sabemos o que está acontecendo agora, quem tá reagindo ao golpe de 2016 e quem não tá, de quais classes sociais.

TA: Tem tudo a ver, sim, tem tudo a ver, não pode se isolar. Eu vi uma coisa assim, principalmente filmando recentemente a série Causando na Rua. Tem um lance acontecendo na periferia que é irreversível. Se for ver o povo da série que fiz, é um nível… Claro que você vê que falta muita coisa, falta uma educação mais completa… Mas os caras tão muito ligados. E o PT é a direita pra eles. É que tem a coisa do poder também, o PT no poder na cidade, no governo federal.

PAS: Aí é também um pouco da rebeldia com a autoridade, seja lá qual for.

TA: Vira e mexe eu falo: gente, vocês negociam com o Alckmin? Não. Então. É melhor Geraldo Alckmin ou Fernando Haddad, que negocia? “Ah, mas o Haddad não sei quê”. Por que não vai negociar com Alckmin? O cara some, desaparece, não tem papo, bota a polícia.

PAS: Mas a sociedade que aceita tortura de vez em quando aceita golpe militar, aceita golpe não militar, golpe civil… A coisa prospera porque não há uma real resistência. Não perguntei, mas a gente concorda que foi um golpe, né?

TA: Pô, estamos indo lá no debate sobre o golpe (risos). Nós concordamos.

PAS: Por que você escolheu Riccelli como protagonista? No meu imaginário ele remete muito para a televisão…

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TA: Pra mim era só por causa de Eles Não Usam Black-Tie (filme de 1981 de Leon Hirszman, cena acima), onde ele faz o Tião, o pelego, e o personagem de Dois Córregos (filme de 1999 de Carlos Reichenbach), onde ele faz um guerrilheiro que aparece, por causa da voz que ele tinha.

PAS: Como se falou no debate, a cena do embate de gerações em Eles Não Usam Black Tie se repete, mas com papéis invertidos, Riccelli era o jovem, hoje é o velho. É muito legal isso, você fez intuitivamente?

TA: É muito legal. Eu me toquei, sim, que ele era pelego lá e aqui não. Isso sim, isso eu me toquei. Mas não foi só por ele jovem lá. Ele era um jovem pelego, mas também tinha a grande cena dele que era a grande cena de virada, do embate, como a grande cena aqui é a do embate. É que Riccelli vai com tudo desde o primeiro momento, está completamente internalizado ali, faz um ziriguidum bem louco.

PAS: O fato de numa época ele ter sido presente na TV não foi relevante pra você? Porque tem o personagem do ator jovem no filme, que é um ator de TV que chega lá pra fazer teste humildemente.

TA: Querendo dar um sentido à sua vidinha.

PAS: E feito por alguém que também foi pra televisão, que é seu caso, quando foi fazer Antônia na Globo.

riccelli-aritana-xxzTA: Mas eu tenho um problema, não vejo televisão. Claro que sei de Aritana, mas acho que não vi um capítulo da novela (exibida na TV Tupi em 1978-1979). O universo que me marca não é esse da TV. Pra minha sorte, porque desconfio que se tivesse visto… Não é o tipo de interpretação que eu goste. Toda vez que vejo, as pessoas mandam links da Globo pra prova de elenco, gente, não dá pra ter ninguém, vamos zerar, melhor não me mostrar essa foto. A interpretação de novela pra mim é uma coisa insuportável.

PAS: Mas você chega a tentar evitar ator de TV, ou não? Não tem no filme…

TA: Não tem. O Riccelli nem tá na TV.

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PAS: A Selma Egrei tem feito bastante TV recentemente.

TA: Mas na época ela tava completamente esquecida. É maravilhosa. Acho que ela já tinha feito o filme do Chiquinho (Francisco Cesar Filho), Augustas. Não foi pro cinema, só estreou no Canal Brasil.

PAS: Você brincou no começo, se a repressão baixasse na Tangerina… Pensa nisso a sério?

TA: Não. Não, não, de verdade não, mas penso, sim.

PAS: Pode não ser a sério, mas pensa.

TA: Sério, não. Realmente não penso, mas sei que tem uma direita que tá um pouco sem freios, sem limites, sem limites sociais. É um sofrimento tão grande que eu não consigo imaginar o que vai acontecer, só consigo plasmar o que eu quero que aconteça. Mas nos últimos anos o cinema se profissionalizou, a produção passou a ser sistemática. Até eu, que trabalho numa área muito independente, de baixíssimos orçamentos, não paro de trabalhar. O cinema brasileiro tá em todos os lugares, é uma política pública que leva o cinema pra Cannes, Oscar, hoje é impossível falar qualquer festival que não tenha quatro ou cinco filmes brasileiros. Um documentário brasileiro venceu em Cannes. A produção brasileira tá chegando à televisão. Há um mapeamento do Brasil, de diversos lugares onde alguma produção audiovisual tá acontecendo, e esses lugares tão sendo incentivados a continuar a produzir. Tem discussão de gênero, racial, dentro do cinema e de todas as artes, muito forte.

PAS: Não tem medo de censura rola? No jornalismo, por exemplo, tá acontecendo. Estão tirando verbas dos blogs tidos como petistas.

TA: É uma forma de censura, lógico. Eu não tenho. Eu já tive, mas nunca deixei de falar por isso. Não tem como ter, você não pode deixar de se colocar por medo. A gente tem de mandar ver, se expor. No caso da extinção do Ministério da Cultura os artistas fizeram isso, né? Todos nós nos colocamos muito. E foi uma luta vitoriosa, né? Agora precisa ver se vai ser só um ministério de fachada.

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