Um cientista livre-docente da Universidade de São Paulo, especializado em engenharia química e nuclear, vice-diretor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, mantém relações improváveis com a arte e a cultura caipira. José Albertino Bendassolli é presidente do Centro Rural de Tanquinho, mais conhecido como o local onde ocorre a tradicional Festa do Milho, na zona rural de Piracicaba. Nos três finais de semana dos festejos deste ano, que começaram no dia 5 de março e prosseguem até o domingo 20, Bertinho, como é chamado no centro, incorpora o típico interiorano paulista que puxa nos erres e está sempre disposto a um bom dedo de prosa. “Lutamos para manter a tradição caipira que já dura mais de 40 anos.”
Mais exatamente 42 anos. A Festa do Milho tem um objetivo declarado: arrecadar o máximo com a venda de produtos como pamonha, curau, bolo, espiga cozida, suco e pão de milho. O dinheiro atenderá a 60% ou 65% dos recursos financeiros para manter o centro rural – o restante é garantido por meio de um convênio com a prefeitura de Piracicaba. É um orçamento que gira em torno de 1,2 milhão de reais, mas que em 2015 ficou em 760 mil reais (“choveu muito”, diz Bertinho). A festa, contudo, tem ambições maiores e grandiosas: quer evitar o êxodo do homem do campo, em meio à mecanização crescente e da monocultura em expansão.
“Sou um ruralista convicto. A zona rural tem de ser fortalecida e temos de dar condições para que os mais jovens permaneçam no campo”, afirma Bertinho. O Centro Rural de Tanquinho é um sobrevivente entre tantas iniciativas semelhantes que emergiram nos anos 1960. Preocupado com as crescentes migrações do homem do campo para as grandes cidades, o governo paulista estimulou a criação pelo interior de 16 unidades como a de Piracicaba. Doava terrenos desapropriados e oferecia assistência técnica para as atividades iniciais. Nelas, seriam oferecidos também serviços para as famílias, como saúde e educação.
O Centro Rural de Tanquinho sobreviveu para contar história. Desde 2011, passou a produzir milho por conta própria, o que lhe deu fôlego rumo à sustentabilidade. Possui hoje 37,2 mil metros quadrados de área construída (uma grande área de eventos, basicamente) e arrenda outros 83 mil metros quadrados para o plantio. No total, produz milho em 60 mil metros quadrados. Essa produção é toda vendida nas festas anuais. Dentro do centro, localizado a 18 quilômetros da área central de Piracicaba, às margens da SP-127 (rodovia que liga Piracicaba a Rio Claro), funcionam uma escola municipal e um posto de saúde básico (clínica geral, ginecologia, fisioterapia, pediatria e odontologia), que realizou em 2015 mais de 10 mil atendimentos.
Bertinho està à frente do centro rural desde 1989. É um sobrevivente, inclusive por sua história pessoal. Há 27 anos, ele foi diagnosticado com leucemia, na véspera de seu casamento. Graças a um irmão, que doou sua medula, sobreviveu para contar sua história. Foram mais de 150 transfusões para que pudesse, hoje, ostentar energia e disposição nos dias da festa e também ao longo do ano. No centro, ele é presidente voluntário, isto é, trabalha de graça. Já lhe acusaram de desviar recursos do centro, mas garante que nada foi provado contra ele.
A longevidade dessa Festa do Milho se deve a um símbolo que parece estar em crise de identidade, a pamonha. Tornou-se célebre o carro vendendo o doce com os dizeres “pamonha, pamonha, pamonha de Piracicaba, é o puro creme do milho”. O jingle, que remonta aos anos 1970, se espalhou pelas ruas dos interiores e também da capital paulista. A iguaria continua sendo o carro-chefe da festa. Neste ano, esperam-se vender mais de 20 mil unidades. Mas é tanta concorrência em todo o estado paulista afirmando que vende a “pamonha de Piracicaba” que o centro rural quer dizer agora que a verdadeira é a “pamonha de Tanquinho”.
Ana Maria Moraes Rosales, que fabrica o doce há 35 anos, está há 23 à frente da Festa do Milho. Ela é a encarregada de organizar os 15 funcionários que produzem o doce no próprio centro rural, em um galpão de 500 metros quadrados. O processo hoje é semi-industrial, muito diferente de quando se fazia o doce na roça, de maneira artesanal. Do debulhar do milho até o ralar, embalar e cozer, máquinas facilitam o processo de fabricação.
Na primeira festa, pediram a “Ana da Pamonha”, como ela prefere ser chamada, que produzisse 3 mil unidades. No ano seguinte, queriam 8 mil, o que a deixou apavorada. Fez 9,4 mil e descobriu que não era impossível bater recordes de produção. Saltou para 12 mil, 14 mil até chegar a 22 mil unidades, em 2011. De lá para cá, e com exceção do ano passado (com 10 mil), foram fabricadas mais de 18 mil pamonhas por ano. “Aqui, ninguém vende, nem compra a ‘pamonha de Piracicaba’, só a de Tanquinho”, afirma ela.
A preservação da cultura caipira paulista é mantida por festas tradicionais como a do Milho, em Piracicaba. Nos seis dias do evento, são realizados shows com bandas de baixo cachê, que tocam de tudo – de sertanejo universitário a forró eletrônico, de moda de viola a funk. A última vez que houve um show “grande”, segundo Bertinho, foi em 2013, com Milionário & José Rico. De lá para cá, optou-se por grupos da região, que cobram entre R$ 1 mil e R$ 8 mil por apresentação.
Famílias de Piracicaba e de cidades vizinhas, como Rio Claro e Iracemápolis, frequentam a Festa do Milho todos os anos. Chapéus de vaqueiro começam a perder espaço para o festival de bonés utilizados pelos mais jovens. E é para disputar o imaginário da cultura caipira que pessoas como Basílio de Moura, de 66 anos, capitão da reserva dos Bombeiros, fazem questão de levar e tocar o berrante sem que ninguém peça. “Essa cultura precisa ser preservada a todo custo”, afirma ele, para logo tocar “Rebatedouro”, que aprendeu apeando gado junto dos peões de fazenda.