Edifício Família

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Uma grande família vive unida na aprazível residência da avenida 9 de Julho, 210, no centro de São Paulo. A matriarca, a gerente comercial Carmen, orienta a filharada com prazer, rigidez e determinação. É heterogênea essa grande família. A filha Janice, a Preta, é publicitária formada. Alexandre, corretor de seguros, já foi vendedor, bombeiro civil, garçom, barman, dono de empresa de telemarketing. Simone se formou na faculdade de enfermagem, trabalhou como doméstica em casas de outras famílias paulistanas e atualmente ama ser manicure. Marineide se alterna com o marido, dia e noite, no ofício de taxista no ponto de táxi da vizinha rua Formosa. Jaci é pedreiro e trabalha na construção de um edifício de luxo de 28 andares na Barra Funda. Nesse domingo de Páscoa, Lindamara, mais conhecida como a Loira do Segundo, trabalha em dupla com o pedreiro na tarefa de depenar, limpar e assar os frangos que serão servidos em almoço às crianças e aos adultos dos 170 núcleos que compõem uma família realmente grande, de mais de 500 membros, sem contar os convidad@s de famílias amigas da vizinhança.

Independentemente dos laços sanguíneos que as novelas da Rede Globo tanto apreciam, o sobrenome em comum de Carmen, Preta, Alexandre, Simone, Marineide, Jaci, Loira e dezenas de outros parentes é Movimento Sem Teto do Centro, MSTC. O endereço da avenida 9 de Julho é o antigo e antigamente badalado Hotel Cambridge, que decaiu com o passar dos anos, deixou de pagar impostos, foi desapropriado pelo poder público e passou uma década vazio, entregue ao abandono e à deterioração. Há quase três anos, os 15 andares de ex-quartos de hotel foram ocupados pel@s MSTC, um ramo da família nacional de sobrenome Frente LIVRE por Moradia, FLM. A grande família trouxe de volta à vida não só o ex-hotel abandonado, mas também a vizinhança que se esparrama entre o vale do Anhangabaú, a praça das Bandeiras, o histórico e trágico Edifício Joelma, o Bar Bin Laden, as baladas noturnas modernas, a feira livre que foi expulsa da praça Roosevelt, os mercados, a padaria 24 horas, os restaurantes e comércios do centro antigo, o ponto de táxi da rua Formosa, a Prefeitura Municipal.

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Uma dor comum a todos os membros da grande família é ter de enfrentar cotidianamente os preconceitos de gente como nós, que moramos do lado de fora e reproduzimos voluntária ou involuntariamente os sensos comuns criminalizadores dos movimentos por moradia, metralhados ininterrupta e impiedosamente pela blitz repressora do poder midiático. Movid@ por esses sensos comuns, você faz suas compras na loja favorita e depois ofende a vendedora classificando-a como “vândala”. Você mora em seu edifício de alto padrão e depois rotula o pedreiro que o construiu de “invasor”. Você vai ao salão de cabeleireiros e depois xinga a manicure de “vagabunda”. Você faz seguro de vida e depois tacha de “criminoso” o homem que segurou sua vida. Você e eu fingimos que a Ocupação Cambridge não existe, que os sem-teto são invisíveis e que não estamos enxergando um palmo adiante dos nossos narizes.

A grande família é emotiva, chorona. #JornalistasLIVRES, eu e o fotógrafo e cinegrafista Sérgio Silva passamos o domingo de Páscoa com nossas irmãs e irmãos do MSTC. Entrevistamos essa gente quente que nos acolhe com amor num dia de festa em que não estamos com nossas famílias de sangue. Vári@s de noss@s entrevistad@s choram diante de nós, quase sempre no momento em que se referem a esta comunidade como uma família, uma verdadeira e grande família.

“Eu sofri muito. O que eu faço hoje é o que alguém fez por mim”, diz, sem conseguir conter a vontade de chorar, Carmen da Silva Ferreira, 54 anos, baiana de Salvador, mãe de oito filhos sanguíneos, líder comunitária da Cambridge e de mais cinco ocupações do MSTC no centro velho e maltratado de São Paulo.

O emotivo Alexandre de Sant’Anna Loyola, 43 anos, é paulistano, morador desde sempre do centro de SP, e chegou à Ocupação Cambridge à beira de ter de ir viver nas ruas. Aos prantos, ele define a grande família e a mãe Carmen: “Parente é uma coisa, família é muito mais forte. Eu tenho uma família. Está aqui, tenho centenas de irmãos. Eu ganhei uma mãe. A minha está viva, não mora muito longe daqui, mas ganhei uma mãe que é mãe de todos, que cuida de todos aqui como filhos, não se permite perder nenhum. Participar disso é impagável”.

A ocupação é uma usina inversora de sensos comuns. Como aponta Carmen, “a ordem deles é a nossa desordem, e a nossa desordem é a ordem deles”. Eles, talvez, sejamos nós, todos nós que não olhamos com afeto, cuidado ou atenção para a grande família. Os exemplos da espetacular inversão são inúmeros. Experimente comparar, por exemplo, Hotel Cambridge e Ocupação Cambridge. Na versão hotel, pessoas que se desconheciam ocupavam por poucos dias ou horas unidades autônomas, isoladas umas das outras; tal qual nos edifícios comuns de 2015, pagavam pelo conforto de não ser incomodados por nenhum vizinho. Na versão ocupação, eventos festivos e áreas comuns estritamente bonitas e bem cuidadas estimulam a convivência entre moradores e moradoras também autônomo@s, mas interconectados numa atitude que Carmen tem como pilar tanto da ressocialização de gente que chega ali “totalmente arrebentada, mas arrebentada mesmo” como de um processo coletivo de aquisição de informação, cidadania, espírito político e solidariedade.

“Nós não queremos pessoas presas dentro de ocupação”, afirma Carmen, que era administradora bem remunerada em Salvador, sofria violência doméstica por parte do ex-marido, separou-se dele à revelia, saiu da terra natal a princípio sem trazer os filhos, morou na rua e em albergue na agressiva cidade de São Paulo. “Em todas discussões políticas da cidade o nosso povo vai. Sabem o que é um conselho participativo, um conselho gestor, de habitação, de política urbana, do idoso. Sabem o que é o plano diretor, o IPTU progressivo.” Quant@s de nós podemos dizer o mesmo que Carmen diz de suas filhas e filhos?

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A “mãe de todos” é durona. Nas áreas de vivência não se bebe, não se fuma, não se consomem drogas. Higiene é cláusula pétrea: poucos minutos após terminado o almoço de Páscoa em que as crianças se esbaldam de brincar e os adultos de comer, um forte aroma de limpeza invade o salão e as áreas vizinhas. “Água e limpeza, corredores sempre brancos, muita água e muita comida pro povo”, resume Carmen, sabedora de que a escassez de teto é filha da especulação imobiliária como a escassez de água é fruto da especulação privatista do governo estadual e a escassez de notícias positivas sobres trabalhadoras e trabalhadores é herdeira direta da especulação midiática. Sobre cada uma dessas modalidades de escravização humana, Carmen sabe discorrer com brilho, fluidez e sabedoria. Quant@s de nós?

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A ideia de especulação midiática, lançada pela líder, explica por que o MSTC deposita n@s #JornalistasLivres uma confiança que os meios tradicionais de comunicação não lhe inspiram: “Somos abertos a qualquer mídia, mas a gente tem uma mágoa. A mídia tá pra vender: vender imagem, vender jornal. O que dá dinheiro e ibope eles publicam. A verdade, não. Essa é a nossa grande mágoa: eles não falam a verdade. É uma mídia especuladora também, que não vive a serviço da informação”.

Alexandre, que é um dos coordenadores de um edifício que não tem síndicos nem zeladores (porque to@s o são), ilustra a mágoa com a mídia que tacha os movimentos de moradia de invasores enquanto estampa anúncios de edifícios de luxo nas páginas vizinhas: “Eu nem cogitava a situação de entrar dentro da ocupação, porque a minha visão era completamente deturpada, formada pela mídia e pela sociedade. Achava que não eram ocupações, eram invasões. Que não era uma situação de direito, era uma situação de contravenção, ou até de crime. Hoje faço parte da luta de trazer a sociedade pra dentro da ocupação, para que enxerguem a maravilha que é isto aqui, o projeto de recuperação de pessoas que é desenvolvido aqui”.

Outra das coordenadoras, a mineira Simone Aparecida Lourenço, 42 anos, revolve e decanta a mágoa: “O povo fala invasão, invasão. Não é invasão. A gente ocupa, dá função social ao prédio, faz o que governadores, presidente, prefeitos têm que fazer. A gente tira o lixo e limpa com nossas próprias mãos. A gente está lutando por um ideal. Se o prédio está ali, porque o governador e o prefeito não fazem uma parceria, baratinho pro povo? Não fazem porque não querem. Eles não estão nem aí pra gente. Deitam nos seus travesseiros de pena de ganso, tomam banho com seus melhores sais. Não sei como conseguem dormir”.

Na missão de tentar transmitir uma interpretação mais realista (e menos deturpada pela especulação midiática) do que é uma ocupação, Sérgio e eu fazemos um trajeto que Carmen, Alexandre e tantos outros já fizeram. Entramos com o mesmo coração aberto com que a líder e sua filha Preta nos acolheram na Páscoa da ocupação. No caminho, conhecemos Marineide, Loira, Jaci, Simone e um sem-fim de grandes brasileir@s.

 

Marineide

Marineide Jesus da Silva, 35 anos, vive num apartamento do terceiro andar com o marido e cinco filhos. A casa é pequena, mas organizada e aparelhada. A baiana de Jacobina nos recebe com mesa farta no domingo de Páscoa: peixe, lasanha, maionese com coentro, refrigerantes, vários doces de sobremesa. Eu e Sérgio almoçamos com prazer, mas moderadamente, pois sabemos que um almoço coletivo nos aguarda. De #JornalistasLivres, passamos a #JornalistasBocaLivre, gracejamos, contentes com a recepção amorosa.

Marineide e o marido são taxistas, ela no período matutino, ele no noturno. O ponto de táxi do casal fica na rua Formosa, a 200 metros do Cambridge. “A gente morava em Santo Amaro, eu saía de casa às 5h30 e chegava às 19h30. Agora tenho mais tempo pra ficar com as crianças”, ela comemora. No labirinto da cidade desorganizada, todos colaboram para o trânsito caótico, jogando trabalhadores para morarem muito longe de seus locais de trabalho, inibindo transportes coletivo, tentando fechar ciclovias, tornando a cidade hostil para os pedestres. Da desordem, o MSTC produz sua própria ordem, que ajuda a ordenar o caos geral.

Marineide se considera uma militante, mas confessa que receio medo de entrar nele. Inicialmente, vinha somente aos fins de semana, como num teste, temerosa de expor os filhos pequenos a situações policiais e riscos que tais. Hoje, diz que a grande organização é o que a agrada na Cambridge. Mais tarde, a reencontraremos ajudando no almoço coletivo, enquanto os filhos se divertem com a criançada.

 

Loira

Gaúcha de Soledade, Lindamara Frandoloso da Silva, 42 anos, aceita com resignação o apelido de Loira do Segundo, ou mais simplesmente Loira. Na padaria coletiva que o movimento construiu num dos andares baixos do edifício, ela participa do processo de feitura do almoço de Páscoa. A encontramos sentada em frente da “televisão de cachorro” onde são assados os frangos, zelando pela refeição do dia, que ela própria ajudou a depenar e limpar. Mais tarde, Loira servirá nossos pratos no almoço coletivo, com frango assado, macarrão parafuso, farofa, maionese,  refrigerantes – e, de sobremesa, colomba pascal trazida por Carolina Trevisan, d@s #JornalistasLivres.

Há 28 anos em São Paulo, Loira vem às lágrimas ao lembrar sua chegada à ocupação, dois anos atrás. Foi difícil, e, sim, ela se considera uma militante também. “A luta ensina, te dá coragem, te levanta”, afirma. “Como você não vai no ato? Tem gente que acha que a gente vai pra rua pra gritar. Não, a gente vai lutar.”

 

Jaci

Jaci Ferreira Lacerda, de 48 anos, cuida dos frangos enquanto Loira conversa conosco. Depois, ele vem conversar também. Baiano de Vitória da Conquista, pai de três filhos, Jaci morava na região de Perus antes de vir para a Cambridge. Já foi cozinheiro de restaurante e lanchonete, hoje é carpinteiro na laje de uma grande obra residencial na Barra Funda, em frente ao elegante Shopping Bourbon. Na época de Perus, acordava às 4h da manhã para chegar às 5h30 na obra.

Hoje, morando ao lado do metrô Anhangabaú, chega à Barra Funda em 10 minutos. Pergunto se Jaci conhece o samba “Pedreiro Waldemar”, de Wilson Baptista e Roberto Martins, gravado por Blecaute no longínquo 1948. Ele diz que já ouviu falar, mas nunca escutou. Espero que Jaci passe por aqui e escute o samba agridoce de quase sete décadas atrás: “Você conhece o pedreiro Waldemar? Não conhece, mas eu vou lhe apresentar/ de madrugada toma o trem da circular/ faz tanta casa e não tem casa pra morar/ (…) o Waldemar, que é mestre no ofício,/ constrói um edifício e depois não pode entrar”.

Da dissolução da antiga ordem se faz a ordem nova: graças à vida cooperativa com o MSTC, o pedreiro Jaci tem casa, tem edifício e não precisa acordar de madrugada para tomar o trem da circular.

 

Preta

Trazida por Carmen de Salvador aos 12 anos, Janice Ferreira Silva, a Preta, 30 anos, chegou a São Paulo já morando em ocupação, na mesma avenida 9 de Julho, número 584. O primeiro endereço fixo da mãe no Sudeste era um prédio federal do INSS, que o movimento ocupou de 1997 a 2003. “Lá a gente aproveitou muita oportunidade de estudo, escola, trabalho. E o que aconteceu? A gente foi crescendo. Aí, não acho justo e correto eu ter condições de morar em outro lugar e tirar o espaço de quem não tem condições”, explica. Alguns irmãos moram na Cambridge, outros em outros endereços, Preta e Carmen alugam um apartamento na rua Santo Amaro, também na região central.

Formada publicitária, Preta é militante por moradia desde os 12 e gosta de lidar preferencialmente com jovens. “Nosso desejo sempre foi mostrar para a sociedade que no movimento não tem maloqueiro, quebrar essa barreira entre sociedade e movimento sem teto”, explica. “Mas a gente praticamente mora aqui, vive aqui a maior parte do tempo”, observa, abrindo um grande sorriso.

Preta explica alguns dos ensinamentos que a mãe transmite a@s filh@s, sejam de DNA ou não: “Ela não quer ninguém parado sem ler um livro, sem saber se expressar. Gosta que você tenha argumentos pra não deixar ninguém te humilhar. Por exemplo, não pode não saber explicar o que é o movimento sem teto. A participação ativa de todo mundo é fundamental”.

O estudo e o conhecimento trazem nova consciência, a ordem naquilo que outros consideram desordem: “Nós não estamos fora da lei. Temos um acordo com a prefeitura, estamos aqui com a concepção deles. Nós não desafiamos a lei, a lei desafia a gente. A lei desafia a gente quando eu pago meu imposto e o rico não paga o dele. Por que o rico é melhor que eu? Quem desafiou a gente foi a lei. É mais importante um prédio vazio, com ratos morando, e pessoas na rua? Não, foi a lei que invadiu meu direito”. Como explicará Carmen mais tarde, “a gente entra ilegal, mas a cada dia a gente vai se tornando legal, procurando os meios jurídicos, combatendo a lei com a lei”.

Pergunto se Preta sente que os panelaços e xingaços em voga entre as classes média e alta contrariadas são dirigidos a ela própria. Responde que sim, muito. “Eles estão pedindo a volta dos militares. Se os militares voltassem você acha que os moradores estariam aqui nesse prédio? Lógico que não. As pessoas pedem a volta dos militares porque não foram elas que foram torturadas, não foi nenhuma dessas mulheres que usam bolsas caras que foram violentadas. Essas manifestações são contra mim, contra meus princípios, contra tudo o que vivo aqui.”

Os meios de comunicação tradicionais são parte ativa dos movimentos que buscam cassar direitos da grande família de Preta. “A mídia não vem no prédio, como vocês estão fazendo, para mostrar como funciona realmente. A mídia só diz que aqui é tudo vagabundo, que ninguém faz nada, que ninguém trabalha.”

Mesmo diante dos obstáculos, Preta vê a situação atual de forma positiva, a começar pela quebra da invisibilidade que deixa nervosa muita gente das classes superiores. “A luta maior já aconteceu, que foi fazer com que a sociedade enxergasse a gente. Algumas pessoas entendem, outras não, mas aí cabe a mim explicar, porque eu tenho o conhecimento, elas não têm”. Como ensinou Carmen, não saber explicar o que é o movimento sem teto não pode. Quant@s de nós conseguimos explicar os movimentos em que estamos mergulhad@s?

 

Alexandre

Ex-desconfiado com os movimentos por moradia, o paulistano Alexandre de Sant’Anna Loyola, 43 anos, é hoje um dos coordenadores da Ocupação Cambridge, além de um defensor fervoroso do modelo a que aderiu após se ver na iminência de ir  viver na rua.

“Alcei voo muito alto empresarialmente. Tive uma corretora de seguros, uma empresa de telemarketing, uma de agenciamento de serviços e produtos. Expandi demais, não tinha como dar suporte financeiro a tudo isso”, descreve. “Não bebo e não uso drogas. Não podem falar que eu era um bêbado, não foi por alcoolismo, não foi por ser toxicômano. Foi simplesmente por não conseguir dar andamento empresarial no que montei. Iguais a mim existem muitas pessoas. Fui decaindo, decaindo, decaindo, até o ponto que resolvi aceitar um convite que há muito era feito. Carmen me convidada a ocupar e fazer a luta há já pelo menos 16 anos, e eu vinha resistindo, por soberba.”

O clique para a mudança de compreensão foi o momento mais radical, aquele que, mesmo deixado no passado, enche seus olhos de água. “Para não me corromper eu ia realmente morar na rua. Eu estava a dois dias de morar na rua, e me foi dada a chance aqui. Agarrei com unhas e dentes. Eu tinha consciência de que, uma vez em situação de rua, dificilmente eu voltaria. A sociedade não dá oportunidade. O poder público não faz questão de ressocializar pessoas. O interesse maior é sempre a exploração, a exploração e a exploração. Quanto mais escravizado e explorado o cidadão, mais aquela fatia de 1% da sociedade goza.”

Alexandre não abandonou a profissão que exercia, mas demonstra que ela não é mais sua razão principal de viver. “Consegui manter minha corretora de seguros, minha carteira de clientes, os tenho até agora. Hoje eles me dão subsídio para eu conseguir empenhar o máximo de tempo aqui para o movimento. Hoje, meu segundo plano é a minha empresa. Meu primeiro plano é o movimento. Da hora que acordo até a hora que durmo, eu penso em melhorar isto aqui”. Quant@s de nós colocamos nossa vida à frente de nosso trabalho assalariado e/ou da obrigação de “fazer dinheiro”?

 

Simone

 Mineira de Ipatinga, Simone Aparecida Lourenço, 42 anos, é outra das coordenadoras da Ocupação Cambridge. Tatuada e de cabelos tingidos de vermelho, define-se como “doida”, mas mesmo no domingo feriado trabalha séria e compenetrada no escritório da ocupação, tratando da coordenação da limpeza e em quantas outras atividades apareçam. “Meu serviço aqui é ajudar para ser ajudada”, diz. “Antes de ser coordenadora, eu sou moradora, Preciso como todos aqui precisam.”

Com discrição e expressão grave, conta que passou por um processo de recuperação de uso de drogas, depois passou a cuidar de uma casa de recuperação. Chegou à ocupação trazida por um pastor evangélico, depois de “dar muita cabeçada”. De enfermeira formada em Minas a empregada doméstica em São Paulo e ao sonho de abrir um salão de cabeleireiros dentro da Cambridge, Simone recebeu ajuda e hoje vive de ajudar. A rede é de solidariedade. “Eu achei a família MSTC-FLM pra me abraçar.”

Também pergunto a Simone sobre panelaços e xingaços. O olhar dela é crítico: “A sociedade burguesa não vê nós com bons olhos. Eu, uma simples sem teto, como se diz, morar em plena 9 de Julho, pagando um valor xis, de frente pra um edifício bem famoso, com um monte de burgueses? Eles ficam pê da vida, né?’. Conta de uma rara cliente que lhe deu razão em sua luta. “Ela disse que eu estou certa e ela, errada. Que  se fosse lá fora eu seria chique, seria chamada de homeless. Lá o governo paga, dá trailer para o cidadão morar em estacionamento se ele não tiver condição”, diz a manicure e coordenadora, descrevendo aquele país ultra-socialista-comunista chamado Estados Unidos da América.

Hora de almoçar, Simone deixa o escritório, desaparece por alguns minutos e volta para a festa, toda bonita, maquiada e bem-vestida. Ajudar a distribuir para as crianças os docinhos cuidadosamente embalados como presentes de Páscoa é mais um prazer para quem está acostumada a ajuda para ser ajudada para ajudar para ser ajudada para ajudar… “Doida” ou não, Simone é a filha que toda grande família sonha ter.

 

(com fotos e vídeos de Sérgio Silva)

 

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