Uma mulher brasileira completou 90 anos e esperou quatro dias para morrer, em 8 de março de 2015, Dia Internacional da Mulher. Como declarou a própria filha da mulher que é morta, não foi por acaso que Inezita Barroso esperou para morrer nesse que é (ou deveria ser) um dia de celebração para todas as mulheres e para todos os homens deste planeta.
Moça de sociedade paulistana, Inezita não teve a palavra “feminismo” para alicerçá-la, mas feminista foi o que ela foi desde os dois primeiros grandes sucessos, lançados em 1953, penúltimo ano do governo constitucional trabalhista do gaúcho Getúlio Vargas.
Num deles, o samba paulista “Ronda”, de Paulo Vanzolini, a narradora, moça ~de família~, rondava a cidade da garoa noite adentro, sozinha, “no meio de olhares”, “abatida”, “desenganada da vida”, porém com “perfeita paciência” – a mesma que ela, mulher, acalentaria vida afora.
“Ronda” à parte, o pulo da gata se escondia mesmo era no lado A daquele compacto de imenso sucesso em 1953, “Marvada Pinga”, tema de autoria controversa, creditado a Laureano. Ali, Inezita começava a se consolidar como CAIPIRA, em orgulhosas letras maiúsculas negritadas.
Fazia-o algo alcooleira, mas feminista da cabeça aos pés. “Com a marvada pinga é que eu me atrapaio/ eu entro na venda e já dou meu taio/ pego no copo e dali num saio, ali memo eu bebo, ali memo eu caio/ só pra carregar é que eu dou trabaio”, começava, esparramando no chão qualquer esperança de bom-mocismo conveniente a(os pais-maridos-patrões d)as mulheres submissas d’antanho.
“O marido me disse, ele me falou/ largue de beber, peço por favor/ prosa de home nunca dei valor“, chutava numa estrofe logo a seguir, bancando quem é que dava as ordens naquela saudosa maloca. “Num bebo de vez porque acho feio/ no primeiro gorpe chego inté no meio/ no segundo trago é que eu desvazeio”, zombeteava, mandando às favas quaisquer boas maneiras que mamãe tivesse de ensinar a sinhazinha menina-moça.
Após uma sequência avassaladora de versos impagáveis, o encerramento da “Marvada Pinga” era feminino, autônomo, feminista – e sexual – até a medula: “Eu bebi demais e fiquei mamada/ eu caí no chão e fiquei deitada/ ai, eu fui pra casa de braço dado/ ai, de braço dado com dois sordado, ai, muito obrigado”. Vejamos bem, meninas de hoje: a bebadoida de 62 anos atrás poderia ter sido levada carregada no colo pelos meganhas da vigilância paulista, mas, não, foi de braços dados, caminhando pelas próprias pernas. E eu aposto que se divertiu à beça na cama com os dois sordado.
Assim andou a admirável cantora e fomentadora cultural brasileira ao longo de toda sua formidável trajetória: pelas próprias, irreverentes, altivas e inteligentes pernas.
Interiorana paulistana (pois o que é São Paulo, senão uma enrustida cidadela de interior?), Inezita assumiu no peito a pecha de CAIPIRA, sempre negativizada por nós que somos, fomos e/ou fingimos não ser aspirantes provincianos a nova-iorquinos ou londrinos.
Ao longo de sua existência artística pós-bossa nova, foi rechaçada e isolada por sucessivas gerações MPB que fantasiavam (fantasiam) um Brasil ~cosmopolita~ e litorâneo, senão propriamente europeu, branco como as noites nas quais índias e índios não rondam. Mais ou menos como faria muito depois a moça de classe média carioca Beth Carvalho ao abraçar o samba contra a bossa e a MPB, Inezita jamais prescindiu do valor CAIPIRA, até porque se o fizesse deixaria de ser ela, brasileira, mulher, mulher brasileira.
Não era “apenas” feminista e nacionalista (e a moda “Lá Vem o Brasil“, de 1956, não deixa possibilidade de dúvida quanto ao princípio de orgulho brasileiro, entre tamoios, mães pretas, Lampião, vatapá, candomblé, violas, samba, braseiros de fogueiras…). A música de Inezita era (é) uma declaração de amor perpétuo pela diversidade, pela soma de todas as riquezas.
O sincretismo religioso, por exemplo, era a marca já do primeiro LP, Inezita Barroso (1955), que começa com uma “Prece a São Benedito” imediatamente seguida pela linda “Banzo”, do alagoano Hekel Tavares, de celebração à umbanda, ao candomblé, aos orixás, a Exu, aos rituais pagãos.
Tanto “Prece a São Benedito” como “Banzo” são exemplos de canções anti-racistas numa obra cuja afronta ao racismo, aos racismos, é onipresente: “Funeral de um Rei Nagô” (1955), “Casa de Caboclo” (1956), “Caboclo do Rio”, “Zabumba de Nego”, “Saudade de Loanda” e “Rainha Ginga” (1958), “Leilão” (1960), “Tayeiras” (1962), “Nação Nagô”, “Dança Negra” e “Festa de Ogum” (1966), “Mestiça” (1969)…
A diversidade adorada por Inezita precisava da integração de todos os brasis, não apenas de um Brasil metropolitano, não apenas de um Brasil Rio-São Paulo, não apenas de um Brasil litorâneo sempre de costas para o interior. Ainda em 1955, por exemplo, ela lançou um álbum inteiro de Canções Gaúchas. Em Vamos Falar de Brasil, de 1958, “Peixe Vivo” celebrou, sob um doido arranjo tipo Disney World, a mineiridade cigana do presidente Juscelino Kubitschek: “Como poderei viver/ como poderei viver/ sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia?”.
O Pará de Waldemar Henrique foi o mote de “Uirapuru” (1962) e de “Tamba-Tajá” (1961), que a aprendiz Fafá de Belém, futura ~caipira moderna~, regravaria em 1976.
O Pernambuco de Luiz Vieira disse presente na divertida “A Troco de Quê?”, um subversivo canto de não-trabalho, de vagabundagem, mais uma afronta de Inezita às normas.
A Bahia reluziu na regravação de 1959 para “Na Baixa do Sapateiro”, do mineiro Ary Barroso, ou nos “Três Pontos de Santo” de 1962.
A andança cigana só fez se espraiar: “Galope à Beira-Mar” (1956), “Adeus, Minas Gerais” (1958), “Na Serra da Mantiqueira” e “Luar do Sertão” (1959), “Sertão de Areia Seca” (1961), “Mineirinha” (1962), “Rio de Lágrimas” (o Piracicaba) e “Campo Grande” (1972), “Curitibana” (1997), “Perfil de São Paulo” (2000)…
O leque é amplo, mas voltemos à questão feminina-feminista. Foi Inezita a mulher que, em 1958, dedicou um álbum completo, Inezita Apresenta, a composições brasileiríssimas de mulheres brasileiras cujos nomes, diferentemente do dela, se perderiam com o tempo: Leyde Olivé, Edvina de Andrade, Juracy Silveira, Babi de Oliveira, Zica Bergami.
Dessa última, em especial, Inezita eternizou o sucesso duradouro “Lampião de Gás” e o pungente canto de pregoeiro “Batateiro”, ambas ítalo-paulistaníssimas.
Inezita não compunha (ou não mostrava o que compunha?), mas sempre selecionou autoras mulheres para suas gravações: Dilu Mello, Georgina Mello Erismann, Orádia de Oliveira, Inara Simões de Irajá, Lina Pesce, Georgette Cutait, Diva Jabor, Aplecina do Carmo, Mary Buarque. (Jabor, Buarque.., esses sobrenomes nós conhecemos, mas…)
Não sabemos quem foram essas mulheres, e não há nada de casualidade ou coincidência nisso: Inezita, com o vozeirão impositivo que possuía, tinha de gritar, sozinha, por uma multidão de mulheres, porque no passado, de fato, ninguém queria ouvir o que tinham as mulheres a dizer. No passado?
Mais triste que isso, precisamos demonstrar como a mudança de tal padrão atávico é comprida, demorada e ainda absolutamente incompleta. Para tanto, voltemos ao dia em que Inezita escolheu morrer, à noite de celebração em que Inezita houve por bem se despedir.
Talvez no mesmo instante em que Inezita morria, a presidenta da república do país Brasil, a mineira Dilma Rousseff, falava sobre economia e sobre feminicídio na televisão.
Primeira mulher presidenta, eleita, reeleita e crescentemente detestada pela parcela que não a elegeu e menos ainda a reelegeu, Dilma anunciava, em honra e orgulho ao Dia Internacional da Mulher, o advento de uma lei que transforma o assassinato de mulheres em crime hediondo no país onde Inezita nasceu.
Uma parcela da população, notadamente dos braZileiros ditos mais ricos, cultos, estudados, viajados, informados e inconformados (a propósito, inconformados COM O QUÊ?), reagiu à fala LIVRE da presidenta de maneira incomum: foi às sacadas de suntuosos edifícios de bairros ~nobres~ de capitais ~cosmopolitas~ para bater panela, gritar, vaiar, tacar ovo, mandá-la calar a boca, estender dedos médios, xingar a mulher mais importante do país no momento de palavrões misóginos.
Na forma de um mal-educado panelaço (~lugar de mulher é na cozinha~?), acrescido de estúpidas manifestações antidemocracia e antiliberdade (fotos à esq. e aqui), a parcela mais tacanha de nossa população ~homenageava~ assim o Dia da Mulher, a lei do feminicídio, a presidenta Dilma do Brasil e a cantora CAIPIRA Inezita que nunca deu valor a prosa de homem e respirava ali seus últimos suspiros.
Nos desejos espúrios dessa parte da população conterrânea, Inês, mais uma vez, é morta – assassinada, sejamos mais diretos.
Acontece que, cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar, Inês é viva, viva, vivíssima. Inês é viva e se chama Ignez Inezita Edvina Juracy Leyde Babi Zica Dilu Georgina Orádia Inara Lina Georgette Diva Aplecina Mary Suzy Elis Zaira Cilmara Evangelina Eleonora Dilma Rousseff da Silva.
Agora Inês é imortal.
Nossa! Seu texto caiu como uma luva. Estava precisando dessas palavras para começar mais uma semana cada vez mais difícil nesse país cada vez mais tacanho e intolerante. Parabéns. Viva Inezita e viva a mulher que luta!
Que belo, e esclarecedor, texto, Pedro A. Sanches!
Que bela homenagem a Inezita e mulheres do Brasil!
Parabéns por mais esse!
textão. grata pas.
As reações dessa elite “inconformada” chegam a ser infantilizadas, mas seria apenas cômico se eles não detivessem o poder que têm.
a cigarra sertaneja foi dormi para acordar no ceu, essa mulher que tanto esaltou a poesia do campo nos deixa imensa sadade
Inezita conseguiu encantar gerações e gerações… enquanto embalava uma, já sorria com o gingado maroto da mocidade, e enquanto isso, acalentava o coração daqueles que não abriam mão de suas saudades… Inezita brincava com o tempo, num constante ir e vir, fazendo brotar os mais cálidos sentimentos, fossem de tristes recordações ou de animadas gargalhadas. Inezita, Inezita! Continua com suas melodias a encantar a nossa caminhada, perpetuando o seu próprio encanto. Cante, Inezita, a canção da eternidade!
excelente texto, sanches, obrigado! e a entrevista também é otima. so conhecia e inezita de assisstir de vez em quando o viola minha viola, muito bom saber da importancia dela. é como no caso do mussum, nao sabia que os originais do samba ja foram protagonistas nos anos 60 e 70, so agora com a biografia fiquei sabendo…
Que texto esclarecedor. Brilha. Tem a transparência do cristal. Obrigado, precisa ouvir isto. Pensava que tudo estava perdido, eis que surge uma voz clamando no deserto, novo João Batista.
Parabéns pelo escrito… O problema é que querem culpar a Nossa Presidenta por problemas milenares do Brasil, a culpa é de cada um de nós de deputados eleitos, prefeitos eleitos, governadores eleitos e é claro, de cada um de nós pobres eleitores, iludidos e esperançosos…