30 anos da axé music transformaram a música baiana para sempre

2
3880
Ivete Sangalo e Carlinhos Brown - Foto Facebook

Como a partir de “Fricote”, de Luiz Caldas, lançada em 1985, um carnaval antes sem expressão se tornou um fenômeno da cultura de massas de Salvador para o mundo

Foi em 1985 que o Brasil foi tomado de assalto pelos versos “Nega do cabelo duro/ Que não gosta de pentear/ Quando passa na baixa do tubo/ O negão começa a gritar/ Pega ela aí/ pega ela aí”. A música de Luiz Caldas poderia ter sido apenas mais um hit com direito ao Fantástico, da TV Globo. Foi muito além disso. Trinta anos depois a aposta do carnaval de Salvador é em Neto LX, dono da música-chiclete “Gordinho Gostoso”, autodenominada “arrocha ostentação” (uma mistura de arrocha e funk ostentação, com um refrão “Eu não sou Friboi/ mas tô na moda/ a mulherada gosta/ a mulherada gosta do papai”.

Entre uma música e outra houve uma transformação cultural sem precedentes. Poucas pessoas têm uma percepção tão privilegiada e íntima desse período quanto o jornalista Hagamenon Brito. Crítico musical e editor de Cultura do jornal Correio*, da Bahia, ele é o responsável pela criação do termo “axé music”, dois anos depois do hit de “Fricote”. Na entrevista a seguir, Brito faz uma reflexão sobre os 30 anos do gênero.

Vamos começar explicando sua participação na criação do termo “axé music”.

luiz caldas magiaBem, Luiz Caldas (o autor de “Fricote”, de 1985, o hit marco zero da cena) e outros artistas carnavalescos de sua geração diziam que aquela música tinha potencial de conquistar até o mercado internacional. Eu não acreditava naquilo e achava que, da sonoridade às roupas que eles vestiam, tudo era “brega”, de gosto mais que duvidoso. Na época, nós, roqueiros de Salvador, usávamos o termo “axé” como sinônimo de coisa brega. Então, para satirizar as pretensões internacionais daqueles artistas, peguei o sufixo music e criei o termo axé music, usando-o em minhas matérias e críticas no jornal A Tarde, onde eu trabalhava então. O termo foi criado de modo pejorativo, em 1987, para designar aquela cena musical.

O que tinha escrito naquela crítica? Quem eram seus “alvos”?

Não foi uma crítica específica, mas uma série de matérias e críticas escritas a partir de 1987. O alvo era toda uma cena musical simbolizada na figura de Luiz Caldas, que me parecia um pós-tropicalista brega e rebolativo. Ou seja, tudo aquilo que eu e minha turma de amigos, curtindo o pós-punk, o dark e o começo do rock nacional dos anos 80, achávamos de péssimo gosto estético. Nós sonhávamos com Londres e morávamos em Salvador (risos).

Qual foi a repercussão junto dos artistas de axé?

Por saberem da intenção pejorativa do rótulo, eles não curtiram. Outros, por desconhecimento, achavam que eu estava debochando do termo iorubá axé, que significa energia, força, poder. O que mudou a percepção do termo foi que a mídia do Rio e São Paulo passou a usá-lo também e, com isso, ele conquistou a indústria, perdeu o sentido satírico inicial e foi assumido como um bom termo. Demorou uns cinco ou seis anos para os que artistas baianos começassem a relaxar. Hoje, Carlinhos Brown me agradece pela criação de um bom termo pop para a sua geração.

De certa maneira, conseguiu viralizar o termo “axé music” numa época em que nem havia a internet e as redes sociais.

Pois é, em 1987 nos vivíamos em outra galáxia (risos). Ajudou muito nunca termos parado de usar o rótulo em Salvador e, claro, o fato do showbiz brasileiro abraçá-lo bem.

E nos anos seguintes, quando a axé music havia se tornado um fenômeno nacional, sua visão em relação à primeira crítica se modificou?

Uma década depois, quando Daniela Mercury já havia conquistado o país e dado um verniz pop ao axé, eu já pensava diferente em vários pontos. Não poderia ficar indiferente ao que estava acontecendo em Salvador, com a transformação cultural provocada pela axé music na vida da cidade – para o bem e para o mal. Antes do axé, daquela geração que transformou uma música sazonal em uma música para ser ouvida, cantada e dançada em qualquer estação do ano, Salvador era melancólica e decadente. As coisas só aconteciam no verão, quando os turistas (em número muito menor do que hoje) e Caetano Veloso, Gilberto Gil e seus amigos vinham do Rio para curtir a praia do Porto da Barra e uns poucos shows. Passado o verão, o marasmo voltada à vida cultural da cidade. Os saudosistas que me perdoem, mas a Salvador pré-axé music parecia um marchinha carnavalesca cantada por Rodrigo Amarante (risos). Era melancólica.

Daniela Mercury no esquenta do carnaval 2015 - Fotos Célia Santos/DM
Daniela Mercury no esquenta do carnaval 2015 – Fotos Célia Santos/DM

Antes da axé music, isto é, 40, 50 anos atrás, como era o carnaval de Salvador?

O carnaval de Salvador começou a ganhar ares pop, digamos, com a criação da guitarra baiana e do trio elétrico por Dodô & Osmar na década de 1950, sob a influência do frevo pernambucano. Entre os anos 1960 e 1970, foram sendo incorporando outros elementos musicais e participativos, incluindo blocos de índios, os lendários encontros de trios elétricos na Praça Castro Alves, Armandinho já incorporada ao trio Dodô & Osmar, os Novos Baianos (Moraes Moreira foi o primeiro cantor de trio), as canções de carnaval que Gil e Caetano lançavam em compactos anuais… A transformação do carnaval baiano em algo grandioso, como é hoje, aconteceu a partir da axé music. Antes, a folia acontecia basicamente no trecho entre o Campo Grande, Praça Castro Alves, Rua Carlos Gomes e Pelourinho. Hoje, vai do Pelourinho ao bairro de Ondina, passando por toda a Barra. Enfim, o circuito aumentou: são mais de dois milhões de pessoas nas ruas.

“Fricote”, de Luiz Caldas, foi o primeiro grande sucesso da axé, em 1985. Poderia ter sido só mais um dentre vários hits que surgem e depois desaparecem. Ou então ficar circunscrito localmente. O que ocorreu foi uma expansão. O que deu certo? Ou o que deu errado? (risos)

Tanto no balanço, quanto na letra, “Fricote” era inovadora. Uma canção que captava o pulsar da rua, que misturava balanço caribenho com guitarra e que tinha malícia – e de malícia o povo baiano, o povo negro, entende desde os tempos da umbigada no terreiro de sinhá (risos). Foi a canção certa na hora certa, tendo o apoio decisivo do rádio baiano, que passou a tocar artistas independentes, músicas que eram gravadas ao vivo em ensaio, contrariando a lógica das grandes gravadoras multinacionais. Veja: “Magia” (1985), o álbum independente de Luiz Caldas que trazia “Fricote”, vendeu cem mil cópias apenas na Bahia. Foi um fenômeno regional que só depois, quando Luiz passou a aparecer no programa do Chacrinha, na Globo, ganhou o Brasil. Eu, como um jovem roqueiro, não gostava daquele som. Mas, como jornalista fissurado em cultura pop, me interessei por aquilo. Do contrário, eu deveria mudar de profissão.

Sem a força da mídia, o que teria acontecido com a axé music?

Sem a força da mídia, penso, as coisas não duram muito quando falamos de cenas ou movimentos musicais. E, principalmente, sem o poder de comunhão entre uma cena musical popular e o povo que ela representa. O manguebit, nos anos 1990, que o diga. Por mais que Chico Science e sua geração tenham sido inovadores e vibrantes, conquistando até a crítica nacional, o manguebit não foi capaz de conquistar a grande população e o rádio e a televisão de Recife. Isso foi prejudicial para o movimento.

Qual é a relação da imprensa local com a axé music?

Com raras exceções, a imprensa baiana não tem criticidade em relação ao axé. Se comporta como uma gigantesca “assessoria de imprensa”, numa relação de compadrio. Tem horas que parece que imprensa, axé music e turismo baiano são uma coisa só (risos). Mas nós, baianos, adoramos esse tipo de relação de compadres e comadres, como se fosse a Seleção da Bahia contra a Seleção do Resto do Mundo (risos).

Poderia destacar quando ocorreu o auge da axé music? Por quê?

O apogeu foi na década de 1990, com o sucesso da então iniciante Daniela Mercury a partir de sua histórica apresentação ao meio-dia no vão do Masp, em São Paulo, em 1992, quando reuniu 20 mil pessoas e parou a Avenida Paulista. Esse auge durou até o começo da era 2000, quando a axé music (e não apenas ela) já sofria as consequência da crise da indústria fonográfica. Entre Daniela e essa crise, a axé music se profissionalizou, criou um showbiz que exportou um modelo de festas (micaretas, os carnavais fora de época) e vendeu milhões de discos no rastro das conquistas do Plano Real, na era FHC, quando toda uma geração de brasileiros comprou aparelhos de compact disc e trocou seus vinis por CDs. Com a axé music, Salvador gerou seu próprio showbiz, criou bons estúdios e fez com que milhares de pessoas, direta ou indiretamente, vivessem dessa indústria, algo inédito nessa dimensão pop fora do eixo Rio-S. Paulo, além de aumentar a autoestima do povo baiano, que já não era pequena (risos). Foi uma cena que teve o poder de trazer até Salvador, através de seus elementos afros, astros internacionais como Paul Simon e Michael Jackson e que influenciou o Pet Shop Boys. Nunca a indústria musical tinha visto isso acontecer fora do eixo Rio-São Paulo e, obviamente, entre 1985 e os anos 1990, as grandes gravadoras, todas, queriam ter artistas e bandas baianas no elenco.

Sua visão crítica em relação ao gênero deve ter causado algumas dificuldades com os artistas, as gravadoras. Poderia nos lembrar de alguma que lhe marcou?

Com as gravadoras não ocorreram maiores problemas, mas com artistas e empresários, sim. Passei a ser persona non grata para muitos. Alguns empresários, donos de bandas, se queixavam ao então poderoso senador Antonio Carlos Magalhães – cuja família é dona do jornal Correio*, onde trabalho desde 1993 -, pedindo minha cabeça. Felizmente, ACM era mais sagaz do que os seus bajuladores. O cantor Netinho, por exemplo, também fez esse tipo de queixa, dizendo que eu o “perseguia” (risos). Margareth Menezes uma vez me ligou, na redação, desejando “luz” para mim, porque eu havia criticado um disco no qual ela tentava cantar MPB. Anos depois, eu e ela rimos desse episódio. Mas é assim mesmo, artista baiano, de axé ou não, é melindroso demais (risos). O insuperável Caetano Veloso, por exemplo, não gostou de uma crítica que eu fiz na época do show Circuladô Vivo (1992) e me chamou, em pleno palco, de “Hagamenor” (risos).

Ivete Sangalo e Carlinhos Brown - Foto Facebook
Ivete Sangalo e Carlinhos Brown – Foto Facebook

Como avalia a axé music hoje? Qual é a contribuição da axé music para a música brasileira?

A axé music não tem produzido hits musicais nacionais nos últimos anos, assim como a cena sertaneja produz, por exemplo. Isso é fato. Além disso, a maior parte dos seus astros envelheceu e não teve o saque de estimular novos artistas e bandas que, com competência, deixassem a máquina seguir engrenada, azeitada. Foram egoístas artisticamente e incompetentes empresarialmente. Nessa realidade, é claro que o axé encolheu no mercado, o que também não é privilégio dessa cena, vide o que aconteceu também com o segmento do rock nacional, que parece um zumbi. Ainda é assim, é uma música capaz de gerar estrelas nacionais como Carlinhos Brown, Ivete Sangalo e Claudia Leitte, além de conservar a sobrevivente rainha Daniela Mercury e amadurecer o talento de Saulo. Por outro lado, com o axé encolhido, Salvador viu florescer uma cena pop/MPB muitíssimo bem-vinda, com Marcia Castro, Marcela Bellas, BaianaSystem, Maglore, Vivendo do Ócio, Russo Passapusso, Mariella Santiago e Dão, entre outros. Ah, e não vamos esquecer que foi da cena alternativa soteropolitana paralela ao axé que saiu o grande nome do rock brasileiro no século 21: Pitty. As maiores contribuições do axé para a MPB foram: uma música dançante e brasileiríssima para todas as estações e produzir astros populares como Ivete Sangalo e Carlinhos Brown, que é o maior compositor de sua geração e cuja carreira já alcançou Hollywood.

A axé music virou uma marca registrada do carnaval de Salvador. O Estado baiano deu e continua dando o suporte necessário para o desenvolvimento do gênero musical?

O Estado baiano e a axé music praticamente se tornaram algo só. E por Estado baiano leia-se também a Prefeitura de Salvador. Bem, mas estranho seria se eles não dessem apoio a uma música que mudou a cara de Salvador nos últimos 30 anos, influenciando fortemente o turismo e outras artes, como a comédia teatral feita em Salvador.

Alguns críticos dizem que a axé music acompanha a decadência da indústria fonográfica, aqui e lá fora. Ou seja, não haveria uma crise desse tipo de música, mas de toda a indústria envolvida nela. Concorda com isso?

Acho uma visão simplista colocar todos no mesmo saco. É claro que axé music sofreu o baque da crise da indústria fonográfica, mas ela também cometeu muitos erros – entre eles, não soube se renovar e seus empresários foram gananciosos demais quando estavam no auge. O sertanejo, que assim como a axé music e o pagode romântico são filhotes populares da era 90, soube se renovar, administrar seus interesses financeiros e virou o som da balada, além de absorver elementos de outros gêneros (inclusive, do axé).

Qual o futuro que prevê para a axé music?

É incerto, pois seus dois últimos artistas de sucesso, Claudia Leitte e Saulo, já têm dez anos de carreira e não existe ninguém novo hoje com star quality, alguém que possamos projetar favoravelmente para 2025, por exemplo. De qualquer modo, não acabará, pois virou sinônimo da cena musical popular baiana cuja maior vitrine é o carnaval e que também incorpora agregados, como o pagode baiano (Xanddy, Marcio Victor, Léo Santana) e o arrocha (Pablo), que é o novo brega baiano. Além disso, uma banda alternativa como a BaianaSystem, que mistura dub jamaicano com guitarra baiana, vem cada vez conquistando mais gente em seus shows e no carnaval. Domingo passado (8/2), a BaianaSystem arrastou uma multidão no Farol da Barra, com todos comentando o fato na cidade. Ou seja, surpresas sempre hão de pintar por aí.

Podemos apostar que ocorrerá o oposto do que prevê? (risos)

Que os orixás te ouçam, porque eu quero continuar prolongando meus 15 minutos de fama (risos).

Crítico musical e editor de Cultura do Correio*, Hagamenon Brito - Foto Lorena Vinturini
Crítico musical e editor de Cultura do Correio*, Hagamenon Brito – Foto Lorena Vinturini

 

PUBLICIDADE

2 COMENTÁRIOS

  1. Em um estado que se notabilizou pela produção de navios negreiros vemos um cara val cada vez mais elitizada e embranquecido. É o único carnaval do país onde os principais artistas e donos de bloco enriqueceram espetacularmente. Antes ainda tínhamos uma horda de seguidores denominados pipoca que hoje quase não existem mais. Um carnaval sofrível.

  2. É muita pretensão!!! Salvador é cult desde, pelo menos os primeiros anos 70. Multidões de jovens iam a Salvador!!! Salvador é intrincamente POP. O fato de uma musiquinha fazer sucesso, ou não. Ou se um crítico utiliza uma expressão cafona, com mais ou menos pegada, altera muito pouco a cena. Quando o mercado de consumo se expande no Brasil, Salvador é Salvador. Ponto final.

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome