São Paulo e dona Francisca

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Aconteceu numa segunda-feira de chuva em São Paulo, 3 de novembro de 2014, dois dias após alguns milhares de cidadãos paulistanos saírem pela avenida Paulista pedindo o impeachment de uma presidenta recém democraticamente reeleita (eles têm esse direito). Parte desses, dizem que uma minoria, pediam uma intervenção militar para tirar do poder a primeira presidenta mulher da República Federativa do Brasil, 50 anos depois de uma intervenção militar pedida pela população civil e com apoio norte-americano, que deveria abrir caminho para eleições democráticas um ano depois, mas durou 20 anos de trevas. Não, eles não têm esse direito, não mais.

São Paulo sempre foi isso aí que se escancarou nesse interessante ano e pouco desde junho de 2013, reacionária, racista, xenófoba, arrogante e estúpida, mas sempre foi muito, muito mais que isso. Esses aí são o aspecto mais deplorável de uma cidade que também fermentou muita coisa legal, apesar de tudo sempre conspirar contra. Nessa noite de segunda, caminhava eu pelo chão molhado das ruas do centro de São Paulo, como é sempre molhado o chão das ruas de São Paulo cantadas pelos músicos desta terra, aqui nascidos ou acolhidos. Com o humor  afetado pelas notícias da tal manifestação de sábado e por uma tão paulistana sinusite alérgica, normalmente estaria em casa, mas tinha um encontro com a música que se produz agora, neste novembro finalmente molhado de 2014, nas franjas mais cabeçudas, na falta de palavra melhor, da cultura tão diversa e tão rica e tão autocentrada e tão aberta de São Paulo. Seria um encontro longo e intenso, que me impeliu, mesmo estando lá como mero ouvinte e não jornalista, crítico ou o que o valha, a escrever sobre essa noite.

Era noite do III Grande Concerto da Casa de Francisca, realizado pela primeira vez no tão simbólico Theatro Municipal de São Paulo, após duas edições no não menos simbólico e tão antagônico Teatro Oficina. Ceder o maior e mais histórico palco paulistano para seis dezenas de músicos paulistanos ou que se encontraram aqui, de uma diversidade atordoante, num evento de dimensões épicas que teve cinco horas de duração, foi iniciativa pessoal, dizem, do secretário municipal de cultura, Juca Ferreira, e apoiada pelo prefeitão pop Fernando Haddad, que no fim de semana mitou, como dizem os jovens meméticos nas internets, ao pixar um Pato Donald (!) no túnel de acesso à Paulista, e na segunda recebeu um aplauso que esteve entre os mais efusivos da noite. Talvez só esta impressionante dama negra que é Juçara Marçal tenha rivalizado com o prefeito em aclamação pelos mais de mil paulistanos que encheram as cadeiras de veludo vermelho do Municipal em plena segunda feira chuvosa.

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Fui informado do concerto por um amigo que entende do riscado e disse que este seria o “grande evento da música em São Paulo neste ano”. Nunca fui à Casa de Francisca (foto acima), mas sei que é um espaço já quase mítico da música de São Paulo, fazendo companhia a outros lugares que viraram lenda, como o teatro Lira Paulistana, para citar apenas um. Sei que a pequena casa tem apenas 44 lugares e as reservas são disputadas. Talvez por isso mesmo, nunca fui. Mas conhecia parte dos mais de 60 músicos anunciados para se apresentarem em três blocos, cada um com direção artística de um artista representativo da música mais inquieta da cidade, e sabia que simplesmente precisava estar ali para ver e ouvir o que eles iriam fazer. Como disse, não fui preparado para escrever sobre o que aconteceu naquele palco, jornalisticamente. Fui tão relapso que nem o programa do espetáculo peguei pra me guiar agora. Mas senti que o que aconteceu foi histórico o suficiente para merecer esse registro.

(Nota-intromissão do editor-jornalista PAS: acontece, meu caro Paulo, eu também vivo esquecendo de fazer anotações das coisas…)

Enquanto muita gente ainda chegava, o concerto começou com um solo de sanfona de Lulinha Alencar, que valeria por si só, escancarando o o quão profunda é a sanfona do sertão nordestino de Luiz Gonzaga e tantos outros. Apareceu o diretor musical do primeiro bloco, o pianista Benjamim Taubkin, que deu o tom jazzístico e mais “acadêmico” da primeira parte do concerto. O ponto alto foi a presença necessária de pai e filho, Manoel e Felipe Cordeiro, e sua eletricidade paraense, precedida pela não menos necessária fala de Taubkin de que “A única coisa que faz sentido neste país é norte, sul, leste, oeste, juntos”, lembrando a vergonhosa xenofobia de parte daquela que se considera “elite”  de alguma coisa nesta cidade e neste país.

A primeira evocação a Heitor Villa-Lobos foi de Nelson Ayres, pianista do Grupo Pau Brasil, antes de tocarem um jazz sobre a ária das “Bachianas Brasileiras Nº 4”, lembrando que 88 anos atrás, durante a Semana de Arte Moderna de 1922, o maestro regeu a peça naquele palco, com os pés descalços. A inevitável referência à  Semana de 22 veio também por José Miguel Wisnik, que citou Macunaíma, de Mário de Andrade, e Renato Braz, que cantou em seu tenor uma canção da peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, encenada pelo Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa em 1967, despertando a ira dos anticomunistas que ainda estão vivos e andando entre nós.

A primeira parte se encerrou com a primeira das grandes damas negras que se apresentariam, Alaíde Costa, que aos quase 80 anos fez questão de interpretar à capela naquele teatro as “Bachianas Brasileiras Nº 5”, e não ouso dizer que aquela interpretação que me levou às lágrimas foi tecnicamente falha. Teve mais boa música no primeiro bloco, com batidas afro e jazz latino, mas esses foram os momentos simbolicamente mais importantes para esta narrativa.

No segundo bloco, Arrigo Barnabé, personificação da improvável e irreproduzível vanguarda paulistana conhecida nos anos 1980, mas que germinou ainda no final da década de 1970 numa Universidade de São Paulo urrando por democracia e liberdade em gritos atonais e dodecafônicos. É música difícil, mas me peguei balançando ao ver as novas claras e os velhos crocodilos dodecafônicos sobre a prosa de narrador da escuridão da cidade de Arrigo. Entre essa narração televisiva/mundo-cão e a singeleza do “Dia Útil” de Maurício Pereira percebi o quanto a música falante paulistana gosta de falar do cotidiano sempre frenético-urbano e tão prosaico dessa metrópole que amamos odiar.

Os instrumentos, claro, sempre estão nessa afinação que reproduz os barulhos da, conforme os Mutantes (que não estavam ali mas estavam), maior cidade da América do Sul. A polícia, outro orgulho dos tristes paulistanos que marcharam sábado pela Paulista, foi lembrada pelas imensas Vange Milliet e Suzana Salles, em urro primal sobre o peso de Itamar Assumpção, outra ausência que lá estava, e sua banda Isca de Polícia. Elas lembraram a todos ali que, se chamar polícia, elas querem matar, matam a cobra e mostram o pau, e a boca espuma de ódio.

Já era quase meia-noite quando começou o terceira e última parte, mas boa parte do público permaneceu, afinal esse bloco traria a amostra da mais atual música paulistana, cujo símbolo é o guitarrista Kiko Dinucci, cria do punk torto da garotada hardcore da qual eu era parte na adolescência e que inventou um novo jeito de tocar guitarra ao se encontrar com as batidas do candomblé e com o samba de São Paulo (sim, ele existe), de redutos irredutíveis como o Ó do Borogodó, ponto de peregrinação dos muitos gringos que passam por aqui e que foi recentemente salvo da especulação imobiliária por uma família tão tipicamente paulistana.

Foi esse samba torto que não consegue e não quer (e não precisa!) se desvincular do barulho punk rock que se impôs em São Paulo entre os anos 1980 e 1990 que sintetiza a música dessa cidade que quer ser Londres, Manchester, Nova York, mas sempre estará na América do Sul, no Brasil. Portanto, é índio (os bandeirantes matavam índios, mas também eram índios), é de terreiro (Bixiga e Liberdade são tão negros quanto são italianos e japoneses), é a plebe fugida da recém-unificada Itália que chegou aqui por baixo, como a nossa mais perfeita tradução, Adoniran Barbosa, mas agora se arvora xenófoba como os racistas italianos que ficaram lá (w meu sobrenome me autoriza dizer que sim, nós italianos brasileiros somos racistas).

Faltava o rap, e foi justamente através de Adoniran, cronista da vida do lado de baixo da metrópole como os rappers de hoje, que Emicida, esse talento absurdo da prosa, trouxe mais uma mácula desta terra: a falta de um teto para tantos dormirem, atualizando a “Saudosa Maloca” e o “Despejo na Favela”, situando-os em uma ocupação de prédio vazio no centro da São Paulo atual, despejada por Justiça, governo e polícia desta terra em conluio com os interesses econômicos do qual são lacaios.

Ainda faltava o final, com o Metá Metá, que melhor mistura todas as contradições paulistanas e por isso é o grupo mais importante da música de São Paulo hoje, com a voz assombrosa de Juçara Marçal, acompanhada pela guitarra de Kiko Dinucci e o saxofone também torto e genial de Thiago França, e com a rima instantânea de Leandro Emicida fazendo “Obá Iná”, grito afro-candomblé que fez todos se levantarem das cadeiras de veludo e dançarem.

Quando finalmente acabou, 1h da manhã em ponto, eu saí pelas ruas ainda molhadas, vazias e silenciosas desta cidade que ainda amo como parte do meu corpo, sabendo que precisava escrever este texto. Não preciso falar que o formato do show é uma insanidade completa sob o aspecto logístico e para a resistência do público, ou que faltou um fio condutor na forma de talvez um MC, e que houve altos e baixos, coisas de que eu gostei menos ou não gostei. O que importa é que, neste momento, com essa feíura de São Paulo expondo seu aspecto mais grotesco sem vergonha, é como é bom saber que tantos quanto são os corações cheios de ódio e rancor são os que querem viver uma vida boa neste lugar, e narrar essa experiência traduzindo-a sob a forma da música. Que bom.

(Paulo Noviello nasceu em São Paulo há 32 anos e sempre viveu na cidade. Formado em jornalismo pela ECA-USP, com um trabalho de conclusão de curso sobre a vida noturna em São Paulo, é apaixonado pela cidade e pela música. Atuou em veículos como Folha Online, UOL e Terra e atualmente trabalha com comunicação institucional.)

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