Minha amiga querida, minha sista Vange. Muitas intersecções em mais de 30 anos de amizade. As mais importantes, futebol, música, política, sexualidade. E o que mais há?
Conheci a Vange pela música, num longínquo Festival da Feira da Vila, quando A Vila era a Vila Madalena, quando os bares eram o Bar da Terra e o Sujinho da Wisard num sobradinhos e mais sobradinhos para onde estavam migrando estudantes da USP e freaks variados. A Vange fazia backing n’Os Camarões, na verdade, banda do primo dela que era da minha classe, o Nando, e mais um povo da minha então escola, o Equipe.
Naquele Festival da Feira da Vila, Os Camarões apresentariam uma composição da Vange, “O Cheiro de Beterraba” (“o cheiro de beterraba/ das salas de cinema/a sedução dos seu olhos”, é tudo que eu me lembro da letra, se é que essa lembrança é exata, se é que qualquer lembrança é exata). Fui lá ver os amigos da escola e, de quebra, ouvi pela primeira vez Itamar e o seu “Nego Dito”.
Isso era 1980 e nós, eu e Vange e todo mundo, tínhamos, eu 16 e ela, 17 anos — era de maio a Vange, quatro meses mais velha que eu (e, desde sábado, quando soube que ela estava muito doente, pensei insistentemente nisso, por que será?). Era 1980, mas isso no Brasil, em São Paulo, era uma extensão dos 70, e vivíamos os restos de um cultura hippie tardia.
Estávamos em escolas quase antípodas, ela no Santa Cruz dos padres canadenses, escola no Alto de Pinheiros, mais ou menos careta; eu no Equipe dos ex-estudantes da USP de 1968, escola então na Bela Vista, bem da freak, mas dos dois lados havia nós, por exemplo, e foi naquele ano do terceiro colegial que as duas turmas se encontraram e as festas eram incríveis.
Porque tinha reggae falando de uma outra consciência e juventude, tinha a Marina cantando e exercendo uma outra sexualidade e já tínhamos toda a MPB de antes, dos shows no Centro Cultural do Equipe e da que viria e estava se gestando sob os nossos olhos e ouvidos.
De dia tinha futebol; ambas as escolas tinham times de futebol feminino e jogávamos juntas de vez em quando. A Vange, santista, era uma centro-avante forte, veloz e certeira; lembro bem de certa feita que fui tentar pará-la num avanço perigoso e, mais leve e menos safa que ela, tomar um tranco que me fez rolar pela quadra de cimento.
Uns poucos anos mais tarde, nos reencontramos no underground paulistano. De novo, em campos ligeiramente opostos. Eu, começando a trabalhar na revista Bizz, e ela, com o Nau, mas a constituição de opostos não era pelos motivos certos, eu jornalista, ela artista. Era por um desses equívocos da juventude, da inexperiência e da arrogância.
A revista Bizz era um bunker de jovens e pretensiosos quase-jornalistas e não-jornalistas encravado na editora Abril, onde exercíamos de forma esquizofrênica um jornalismo militante, de trincheiras, em defesa de uma suposta linha evolutiva da música brasileira que incorporasse o pós-punk de vanguarda e de extração europeia, sobretudo inglesa, e um jornalismo deslumbrado com a indústria fonográfica. Em outras palavras, dávamos a capa para o RPM e escrevíamos resenhas furiosas, mal-humoradas e, por vezes, francamente cruéis sobre os shows e discos que considerávamos menos ousados, menos bons, menos alinhados com o que achávamos que era a rota certa.
Enquanto isso, a Vange montava uma banda de instrumental seguro, pesado, para servir de cama para sua voz clara, de uma impostação quase teatral e as letras líricas. Era uma coisa mais pop do que admitíamos, nós, os pequenos poderosos do jornalismo musical. Era um som mais feminino e mais feminista do que o sexismo roqueiro apreciava. As questões de identidade que a Vange colocava estavam, claro, à frente daquele tempo e acima do machismo que imperava no jornalismo e na crítica de música Na longa linha do tempo, de lá para cá, me arrependo de ter pactuado , de forma tão automática, com os caras.
Mas a Vange era maior que isso e, nos diversos encontros em shows e casas noturnas, as mulheres acabaram fazendo uma liga que, se não teve reflexo imediato no cenário, nos ensinou alguma coisa preciosa para depois.
Além de Vange, à frente do Nau, havia dois grupos eminentemente femininos, as Mercenárias e as Garotas do Centro. As Mercenárias de Sandra, Ana, Rosália e Lou eram um grupo mais perto do imediato pós-punk; instrumental urgente e mínimo, com toques psicodélicos, vocal poderoso expelido com um chamado para a ação. As Garotas do Centro, formadas a partir de um núcleo que tinha acompanhado a Banda Performática, do Aguilar, fazia um som menos sisudo, mais perto da caricatura do B-52’s do que da Siouxsie. Entre elas, nós, que não tínhamos banda, mas íamos em todos os shows.
Honestamente, não sei se jogar futebol foi ideia da Vange, mas se não foi exatamente dela, ela encampou com muito entusiasmo. Pois muitas de nós éramos dessa geração de meninas que amavam o futebol, campo de sonhos esportivos e arena de experimentação de identidades femininas pós-feministas e além, e convencemos as outras.
A duras penas emergíamos da ressaca do show (não importa de quem, sempre tinha um no sábado) da noite anterior e nos encontrávamos no domingo final da manhã para jogar futebol. Era uma maneira de reencontrar o exercício físico e o esporte, numa época de vida noturna intensíssima, mas era mais; aos trancos, barrancos, tropeções e futebol ruim (Vange e Zaba eram as únicas boas de verdade), gestávamos ali uma irmandade. Depois, íamos para a padaria ou para o japonês, falar, beber e comer.
Ainda que não tenha durado muito, foi intenso e decisivo, ao menos para mim — e acho que não só para mim. Aos 20 e poucos, ter um grupo de mulheres, com histórias, origens e sexualidades as mais diversas, construindo um espaço de resistência, tolerância e amor certamente me deixou mais forte. Anos depois, nos nossos reencontros no Tubaína, para minha surpresa e encantamento, ouvi da Vange a mesma coisa (e fiquei de escrever e não escrevi e agora, né?, não adianta chorar sobre o futebol não narrado).
Amo a foto que ilustra essa aventura identitária-futebolística, resgatada da câmera da Anna, nas escavações de memória que as redes sociais acabaram proporionando, e nos mostra como 12 meninas, coristas de shorts, bambas e meiões.
[Nota do aluno-(não-)editor: para legendas e possíveis tira-teimas entre o ontem, o hoje e o sempre, favor consultar o perfil da Bia Abramo no (perdão, @na_faixa!) Facebook.]
Mais um hiato de tempo, antes do próximo ponto de intersecção. Já no final dos 90, Vange tinha deixado o Nau e a carreira solo quequase a transformou numa pop star, e estava enfronhada no ativismo e no jornalismo. Com os olhos brilhando, ela me contou da peça que estava escrevendo sobre a Djuna Barnes quando nos revimos na festa de uma amiga em comum. Eu chegara de uma temporada de ano e meio morando em Berkeley, na Califórnia, e o ambiente de ativismo LGBT tinha dado um salto. E Vange e Cilmara estavam lá, lançando para ainda mais longe as discussões sobre direitos e identidades.
Um dos pontos de reencontro, no qual as velhas amizades do colegial e da noite se refizeram e se ressignificaram foi a Livraria Futuro Infinito, primeira livraria especializada em questões de gênero, do amigo Sérgio Miguez, que funcionou na rive gauche da Oscar Freire naquele começo dos anos 2000. O outro era uma internet ainda discada, ainda lenta, ainda sem as redes sociais, mas para onde já convergiam as novas formas de comunicação ao largo da grande mídia e outros formatos de sociabilidade.
Uma, duas, três gerações tinham nos vindo depois de nós e, escrevendo e circulando, agora de maneira também virtual, começamos a entender que aquilo que tínhamos vivido, 15, 20 anos antes, fazia sentido para quem era 5, 10, 15 anos mais novo que a gente. Nada mais normal e natural, estávamos chegando nos 40 anos, claro, mas a gente é mesmo lerdo em perceber essas coisas.
Mais ainda, quando as relações de amizade se transformaram tão profundamente com as redes. À parte dos encontros reais na vizinhança e na esteira da academia com a Vange, passei a rever Vange e Cilmara todo dia no twitter. Discutindo política, falando de música e futebol, e retraçando teias de afeto.
Coisa impressionante: a calma e o equilíbrio da Vange, a inteligência ferina da Cilmara, a doçura de uma, o acolhimento generoso da outra eram pontos focais no mar confuso daquele rede nervosa e sucinta. Aprendi o que era legal fazer no twitter observando a Vange e a Cil, entendi como escrever ali com elas e fiz muitos, muitos amigos por ser amiga delas. (E fiz relações ali tão fortes, que, um ano menos dois dias atrás, quando entendi que o Senshô tinha morrido por um tuíte do Esper, chorei diante de pixels).
O combate rápido de ideias-fragmento, de provocações-bomba dos 140 caracteres com elas conseguia se tornar uma conversa, a possibilidade de construção de um argumento e, de quebra, um convite a estender tudo isso para um encontro caloroso.
A combatividade política da Vange e da Cil, nos moldes da velha esquerda festiva, não prescindia do bar e das mesas cheias de amigos. E das ideias malucas levadas a sério, como a do Bloco Soviético. Essa vontade de estar junto, de agregar, de se divertir falando sério, de falar sério se divertindo, ficou plasmada no Bloco Soviético, bloco carnavalesco inspirado no imaginário das revoluções socialistas, e suas duas gloriosas saídas.
Na primeira delas, em 2013, atravessei a Consolação com a Vange e o Félix, meu filho. Éramos poucos e não deu para parar o fluxo de carros. Esperávamos o sinal e comentei com a Vange: “Meu, olha isso. Estamos cantando ‘A Internacional’ na Consolação!”. E ela: “Sista, fizemos tudo o que fizemos foi para isso”. E atravessamos juntas.
Podicrê, Vange. Desta vez, você atravessou, e eu estou ainda na calçada, sista. Continuarei cantando, driblando e escrevendo para você, querida.
Convivemos juntos, desde essa gravação do disco Feira da Vila até a Marcha da Maconha 2, nem amigos, mas contemporaneos do mesmo lado das causas. Vange em sua partida dramática nos deixou pensativos e melancolicos sobre o fim das coisas. Era querida. Era amada. Quase fui junto com elas tomar uma cerveja belga no jardim do mosteiro, na Bélgica, pelo tuite. VLW!
Pena, só de ser contemporâneos e estar nas mesmas brigas, somos, de certa forma, amigos, né? brigada, dear. beijo
Bia, foi importante pra mim ler este texto seu. Sobre aquela época, sobre Vange, sobre nós todos.
Um beijo d longe e perto—-
Marina
Pô, Marina, eu é que, de certa forma, me sinto importante de ter conseguido escrever alguma coisa que foi importante para você. 😉 brigada! beijo
Que lindo. =^*
Jean, thanx, querido!
Poxa, a Vange É amada de muitas e diferentes formas! Por quem a conhecia e por quem apenas a seguia pelo twiter, feito eu. Com ela aprendi o quanto o amor vale a pena, a beleza da inteligência que não se afirma pela força, mas pelo acolhimento, pela convivência com o diferente. Múltiplas vozes, sentimentos e amores voaram com a Vange e a embalaram nessa partida. À Cilmara, tão bela quanto a Vange, desejo todo o amor que couber nesse mundo.