BESTIÁRIO

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Craque é coisa tão rara que sua detecção muitas vezes é defeituosa. Ou seja: enxergamos craques onde queremos ver, onde gostaríamos que eles estivessem.

Campbell, da Costa Rica, virou craque muito rapidamente, e também deixou de ser em pouquíssimo tempo. Nem tem mais gente falando nele.

Adoro ver a papagaiada das melhores crônicas sobre craques que proliferam nessa época de Copa. Há algumas muito boas. E algumas muito ruins, especialmente em programas de TV de segunda categoria fazendo o elogio do craque. Adoro essas, principalmente. Vi uma outro dia na Band que quase me mata de rir – até a locução, de uma normalista pré-coerente, era deliciosa.

Me pongo aqui a analisar os caras que considero craques na Copa que vi até agora, de uma perspectiva rock’n’roll. Para fazer minha contribuição ao bestiário da Copa.

Muller é o craque-Joey Ramone. Tem um tanto de Rivaldo na estrutura física, meio desequilibrada nas pernas e na corcunda displicente que nem é muito regra entre os alemães. Falso lento, tem facilidade em postar-se tanto no centro quanto na esquerda e na direita e tem cabeceio preciso. Tem vezes que me lembra o Alan Kardec, pelo jeito de disfarçar a presença em campo.

Messi é o minicraque fulminante, o craque Van Morrison. Pelo tamanho e forma de correr, lembra um filhote de pato, aquele bichinho com a bunda pesada demais para o corpo carregar. Mas sua finalização é como se fosse um ferrão de marimbondo. Tem uma precisão espantosa. Também tem uma pequena dose de arrogância, o que faz com que alguns duvidem de sua grandeza.

Cristiano Ronaldo é o craque-dândi, o craque Thin White Duke. Seu time é muito ruim, então é pena; mas notem que mesmo em cada jogada malograda dele não há vulgaridade. É elegante até no jeito de bater de chapa. Exagerou um pouco na malhação, e seu tórax parece o do Johnny Bravo, não bate com o resto do seu corpo.

Suárez é o craque-The Clash, o falso primitivo, o homem-banda que vive de contrariar expectativas. Onde me querem punk, sou refinado. Onde me querem refinado, sou vampiro. Parece se guardar por boa parte do jogo, para só então aproveitar a chance única, mínima. Fez dois gols que não foram pinturas contra a Inglaterra, mas que 99% dos centroavantes perderiam.

Rooney é o craque-pedreiro, o craque The Pogues. Não há graça em sua arte, apenas valentia, perseverança, desdentamento. Entretanto, sabe fulminar o adversário, tem precisão em todos os fundamentos. Mas lhe falta alegria, lhe falta um pouco de savoir-vivre – mais Guinness, menos concentração. A eliminação não o torna menor.

Pirlo vai ser minha exceção: não é roqueiro, é jazzista. É o craque-Brad Mehldau. Pode eventualmente tocar Nirvana, mas é bandleader de jazz, e sua forma circular de desenhar os trajetos pelo gramado não tem equivalente no esporte atualmente. É como se concentrasse Pitta e Airton Lira num só indivíduo.

Benzema é o craque lobo solitário, é o mais roots da Copa, um tuaregue do Tinariwen. Seu jogo é igualmente básico, três acordes, um toque de bola que é mais blues do que rock progressivo, mais um árabe cantando por trocados no meio da rua no Marché aux Puces de Clignancourt.

Por ser santista, deveria me considerar impedido de analisar Neymar, mas ele nem é mais santista, é do Barcelona. Me sinto liberado.
Neymar sonha o novo, sua sintaxe é daquele tipo que ainda não foi descrita pelos linguistas. Neymar é um Hendrix do fut. Não há forma de prever seu trajeto, interceptar seu bailado. Não há mandinga, não tem despacho de encruzilhada que o detenha. É talhado para as grandes plateias: quando o jogo começa, há apenas um marcador nele, mas quando termina já há uns três ou quatro.
Neymar é o craque Radiohead, so fucking special/don’t belong here, embora ele preferisse mesmo ser o craque Tiaguinho.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter desde 1986 e escritor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019), Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021) e O Último Pau de Arara (Grafatório, 2021)

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