Do alto de seus 76 anos, do vestido longo e dos sapatos de salto plataforma, Claudette Soares (carioca) evoca a pilantragem para o público que amanhece com ela no Theatro Municipal, no domingo paulistano de Virada Cultural.
A brava cantora que já foi princesinha do baião, dona da bossa nova, porta-voz da tropicália e ponta-de-lança de baladas de Roberto Carlos (capixaba) explica a pilantragem para os jovens presentes: era uma espécie de funk, de samba-rock da época do álbum Meia Volta – Rosa da Gente – Trem de Ferro (1969), que ela resgata na íntegra nesse manso show matinal.
Claudette evoca a pilantragem ao introduzir a “Correnteza” de Antonio Adolfo (carioca), autor de brancas toadas modernas que, em parceria com Tibério Gaspar (carioca), apretejou-se ao entregar “Sá Marina” (1968) para Wilson Simonal (carioca) e “BR3” (1970) para Toni Tornado (paulista interiorano de Mirante do Paranapanema, atual epicentro do Movimento Sem Terra).
[“Toada moderna”: eis aqui outra modalidade musical dos anos 1960, prima-irmã da pilantragem, que a carruagem da história emepebista ofical fez questão de devastar, implodir e dizimar. O Marcos Valle (carioca) e o Milton Nascimento (carioca-mineiro) de “Viola Enluarada” (1968) e a Beth Carvalho (carioca) pré-sambista de “Andança” (1968) não hão de nos deixar mentir ou omitir.]
Sem dar muitos nomes aos bois, Claudette explica que quem a converteu à pilantragem, à tropicália e ao estilo musical brasileiro denominado Jorge Ben (carioca) foi um certo Cesar Camargo Mariano (paulistano), que fora maestro de Simonal e depois de Claudette se tornaria maestro e marido do estilo musical denominado Elis Regina (gaúcha).
A voz macia de Claudette não tem nada e tem tudo a ver com a voz macia de Evinha (carioca). Uma loura, outra negra, ambas cariocas periféricas ao eixo Copacabana-Ipanema da MPB, as duas cantaram jovens guardas, bossas novas (e negras, no caso de Evinha), protestos, beatlemanias, clubes da esquina, toadas modernas, rocks rurais e pilantragens.
Mesmo separadas, Claudette e Evinha (ao centro na foto abaixo) estão juntas nesta Virada. Uma no Theatro Municipal, outra na Praça da República. Claudette sozinha, Evinha acompanhada por seus três irmãos do Trio Esperança (com o qual ela estreou em 1961, praticando trabalho infantil, aos 10 anos de idade) e pela mítica da jovem guarda de “Filme Triste” (1962), “O Passo do Elefantinho” (1963), “A Festa do Bolinha” (1966) e outras banalidades que fazem a delícia do palco negro da República às 13h do domingo ainda não chuvoso.
[Elza Soares (carioca do morro) resgatou o álbum pré-pilantragem A Bossa Negra, de 1961, no Theatro Municipal, mas eu perdi porque estava dormindo no gramado da República à espera de Evinha – seu guarda, eu não sou vagabundo (e AMO a Evinha)… A quantidade de excelentes atrações numa só Virada é desesperadora – e ainda há a violência, seu guarda, assim não é possível!]
[Enquanto dormia exausto na grama da República ao lado do Giovanni Reis (goiano), cujas fotos e vídeos ilustram este texto, um show de rap se desenrolava forte, potente, marcante no palco negro. Era o Projeto Nave, abrilhantado por toda uma constelação de nomes do hip-hop nacional. No meu semicochilo, só consigo me lembrar do som vibrante e de um rapper que contava, para o público, a experiência de 13 anos passados na prisão (quem era?).]
Aos 62 anos de vida e 52 de carreira, Evinha pôde revisar quase nada de sua quente fase adulta – cantou “Casaco Marrom (Bye-Bye, Cecy)” (1969), e olhe lá. A ausência de “Os Dentes Brancos do Mundo” (1969), “Samba Negro” (1969), “Teletema” (1970), “Abrace Paul McCartney por Mim” (1970), “Feira Moderna” (1971), “No Meio da Madrugada” (1972), “Olha Eu Aqui Oh! Oh! Oh!” (1974), “Vinte Léguas” (1974) etc. deixou o show de Virada com gosto guloso de quero-mais.
De sua própria fase adulta, o Trio deixou de cantar as incríveis “Noves Fora (O Progresso)” (1971),”Arrasta a Sandália” (1974) e, sobretudo, o hino “Replay (O Meu Time É a Alegria da Cidade)” (1974), que teria tudo e mais um pouco a ver com os atuais humores de Tensão Pré-Copa.
A “Andança” de Beth Carvalho apareceu (olha a toada moderna aí, gente!), em versão do, digamos, Quarteto Esperança – num bloco em homenagem aos Golden Boys, irmãos dos Esperança, que acompanharam Beth nas andanças dos festivais da canção).
[Talvez o Brasil seja o único país do mundo a possuir uma família de OITO irmãos musicais, todos eles intérpretes inspirados de bossa negra. O BraZil é o único país do mundo que tem isso e não dá o menor valor a isso que possui.]
[Depois de 1974, com o encolhimento até o sumiço de sua carreira no país natal, Evinha exilou-se e passou a viver na França.]
Na fase adulta e solo, Evinha foi apadrinhada por Wilson Simonal em pessoa.
Todos os artistas citados acima estiveram de alguma maneira, direta ou indiretamente, envolvidos com o levante de black music bras(Z)ileira e com a explosão pré e pós-tropicalista da pilantragem, que a oficialidade político-emepebista varreu do mapa com todas as forças a seguir. Todos viveram intensamente a Copa do Mundo de 1970, no México, com a qual o Brasil pretejou o mundo e após a qual a ditadura civil-militar reprimiu violentamente o boom black power que se insinuava. [A Rede Globo, em sua edição 1970 do Festival Internacional da Canção da Rede Globo, glorificou e em seguida destruiu o estrelato musical de Toni Tornado.]
[#ProcureSaber: muitos artistas que praticaram toadas modernas e pilantragens musicais até hoje minimizam e recusam valor aos estilos musicais que um dia praticaram; com o tempo, tudo se homogeneizou em MPB de vertente tropicalista, quando muito em pitadas de samba-rock.]
[Corte. Passam-se 44 anos.]
A Copa do Mundo do Brasil de 2014 está para começar. No Palco República, a poucos quarteirões do pomposo Theatro Musical, a doçura pop de Evinha e do Trio Esperança divide espaço com o Projeto Nave e, às 9 horas da mesma manhã, com o encontro arrasa-quarteirão dos rappers Dexter (paulistano) e MV Bill (carioca).
Hoje com 40 anos, Dexter esteve preso por 13 anos [Simonal amargou poucos dias de prisão em 1974, mas a pena artística a que foi condenado foi perpétua], e é um dos artistas mais cortantes e completos do atual hip-hop brasileiro. No show da Virada, Dexter canta os raps de MV Bill (também 40 anos) que canta os raps de Dexter que canta os raps de MV Bill.
[A ponte artística Rio-São Paulo é possível, e não há resquício de pilantragem, malandragem ou “jeitinho brasileiro” no ar. Pilantra é você, que gosta de chamar os outros de pilantras sem nunca dar uma espiadinha no próprio espelho.]
A plateia áspera de Dexter e Bill canta em coro cada verso de cada rap dos ídolos, como cantava em coro também a plateia suave de Evinha e do Trio Esperança (aí incluído um segurança branco que contagiava a geral sorrindo, cantando “confesso, não gostei dos modos da Glorinha“, tirando fotos para o pessoal – e parecendo se divertir mais que todos nós juntos).
A plateia da República, como Evinha e Dexter e (Claudette e) Bill e o Trio Esperança, era negra e branca e intermédia.
[Meu, como houve negros nesta Virada!, fossem eles artistas, trabalhadores, seguranças, policiais ou frequentadores.]
A violência na Virada Cultural é negra e BRANCA e intermédia.
[Quem faz iPhone-ostentação é PARTE do rolezinho da violência, não é vítima da exclusão social que pratica como se não fizesse parte do mundo.]
[[[iPhones são roubados a granel em festivais público-privados gringos co-organizados pela Globo e coalhados de atrações estrangeiras, como Lollapalooza e congêneres. Nem por isso a cobertura da mídia braZilEUA transforma esses festivais em eventos de mundo-cão policial. A mídia BraZilEuro guarda a deturpação grosseira para sabotar festivais públicos, gratuitos e fundados na música braSileira. A música braSileira enerva, irrita e enfurece o BraZil que gosta de viver agachado. Como cantava Elis, o BraSil se ajoelha para o BraZil, e o BraZil não conhece o Brasil – mas a Copa do BRASIL vai começar, e aí é que nós vamos ver o que vai acontecer quando Zumbi chegar nós vamos ver.]]]
A alegria e a tristeza, na Virada e fora dela, são brancas e negras e intermédias. A Copa do Brasil é a Copa da ÁFRICA, da Europa e da América, sublimada neste quintal nosso do qual ninguém poderá fugir, a não ser que pule fora do planeta.
O encontro de civilizações já começou, aqui mesmo na Virada onde os arrasteiros são os arrastados e os violentadores não suportam se sentir violentados – mas são.
O funk de Valesca Popozuda (carioca), o rap de Dexter e Bill, o samba de Mart’nália (carioca) e o tecnobrega amazônico da Gang do Eletro são a pilantragem do ano 2014, e ninguém nunca mais vai (auto)destruir a música (e a vida) de Wilson Simonal.
Sua bênção, São Jair Rodrigues (paulista interiorano de Igarapava, na fronteira com Minas Gerais): a taça do mundo é sua, é nossa, é de quem vier.
Que ótimo texto! PS, evinha cantando eu e a brisa, PQP um beijo na alma!