Recuso + aceito = receito (*)

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No papo eu me safo. Minto, reminto, remato, mato, morro, me entrego, me tomo todo e a bola sempre acaba no fundo das redes. Marco meu gol. Como Garrincha, sem saber como, guiado pelo fôlego, pelo sopro, pela grandeza escondida da inteligência pobre, magra, marginal – de um universo parelelo ao da cultura. No papo eu me safo. A fada é a fala. É como se não fosse minha. É santo baixado, xaxado. A gente tira de letra, de cor e salteado. Escrever é diferente. A caneta na mão me dá outro babado. Responsabilidade. É como o fim de um circuito cuidadosamente montado, sofisticado, resultante de uma consciência poderosa, central de energia que guia as ideias para que elas se escrevam, sejam inscritas, registrem, invistam, capitalizem, reinem, escravizem, imperem. Escrever pra mim é como submeter minha cuca a uma disciplina militar. Eu detesto isso, é sem swing, o fim da picada. Detesto.

Pois, um golfinho de mares cariocas resolve tirar o meu sossego ajudado pela ingenuidade ou pela burrice de meia dúzia de pessoas que de repente resolvem achar importante o fato de eu aceitar ou não um prêmio que me deram. A velha mania brasileira de se meter nos problemas domésticos do vizinho. Mesmo se o cara mora na Inglaterra.

Para mim, a essa altura, aceitar ou não prêmios ao trabalho que fiz no Brasil já não tem a menor importância. Agora eu estou on the road. Sábado passado no Festival Hall, amanhã, depois e sempre em outros lugares – i’m wasted but i can’t find my way home. Repito que recusar ou aceitar esse prêmio não tem a menor importância e eu resolvi recusar para ver se vocês estão a fim de entender alguma coisa.

Pois é. Porque não acredito como pensam meu pai & amigos do Brasil que o golfinho me tenha sido concedido por aqueles que reconhecem meu trabalho, que realmente gostam de mim e não pelos que me menosprezam e ignoram. Ingenuidade. Embora muita gente possa realmente respeitar o que fiz no Brasil (talvez até mesmo gente do Museu), acho muito difícil que esse museu venha premiar a quem, claramente, sempre esteve contra a paternalização cultural asfixiante, moralista, estúpida e reacionária que ele faz com relação à música brasileira. Sempre estive contra toda forma de fascismo cultural de que o museu – à sua maneira – vem representando uma parcela do Brasil. Se, quando eu estava aí, eu nunca perdi tempo atacando diretamente organizações como o Museu da Imagem e do Som é porque o meu trabalho já fazia isso; minha música já assumia essa responsabilidade. E se eu continuasse aí não sei o que estaria fazendo, mas de qualquer forma tenho certeza que não estaria sendo premiadão.

Claro que eu não acredito nesse prêmio. Pelo que me é dado saber o museu continua o mesmo e portanto eu continuo contra e recusar o prêmio é só pra deixar isso bem claro. Se ele pensa com “Aquele Abraço” eu estava querendo pedir perdão pelo que fizera antes, se enganou. E eu não tenho dúvida de que o museu realmente pensa que “Aquele Abraço” é samba de penitência pelos pecados cometidos contra “a sagrada música brasileira”. Os pronunciamentos de alguns dos seus membros e as cartas que recebi demonstram isso claramente. O museu continua sendo o mesmo de janeiro, fevereiro e março: tutor do folclore de verão carioca. Eu não tenho por que não recusar o prêmio dado para um samba que eles supõem ter sido feito zelando pela “pureza” da música popular brasileira. Eu não tenho nada com essa pureza. Tenho três LPs gravados aí no Brasil que demonstram isso.

E que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que “Aquele Abraço” não significa que eu tenha me “regenerado”, que eu tenha me tornado “bom crioulo puxador de samba” como eles querem que sejam todos os negros que realmente “sabem qual é o seu lugar”. Eu não sei qual é o meu e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo a mesa dos senhores brancos e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil. Por isso talvez Deus tenha me tirado de lá e me colocado numa rua fria e vazia onde pelo menos eu possa cantar como o passarinho. As aves daqui não gorjeiam como as de lá, mas ainda gorjeiam.

O que meu pai precisa saber é que o museu sempre esteve contra o meu gorjeio, que sempre achou desnaturado, desarmonioso, inautêntico e incômodo; sempre esteve contra tudo que na música, no disco e na TV, tenha tido um sentido de abertura compatível com a liberdade criativa de um povo novo e fogoso como o brasileiro. Pelo que sei as aristocráticas e puritanas prateleiras do museu não guardaram até hoje um só programa do Chacrinha, o mais lindo que alguém pôde encontrar em qualquer televisão do mundo.

Para mim o museu e o nazi-fascismo comem no mesmo prato, e, exatamente por não compreenderem isso, meu pai e meus ingênuos amigos acabam comendo também desta suculenta e colorida pasta de miséria tropical, sal, mal, mel, fel & fé (a geleia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia – e O Pasquim também?).

Acho que só a falta de fé vai nos salvar a todos. E o preço da salvação vai ser bem alto & muitos vão morrer sem ver o dia & eu nunca mais talvez seja Narinha e Marília e as marinaravilhas Bahia & o rapaz que eles mataram ontem foi meu colega no colégio dos irmãos maristas que eram quase todos espanhóis e a favor de Franco & por isso que o demônio está vencendo & por isso eu sei que os anjos descerão dos céus para nos ajudar a encontrar, entre as ruínas, a cidade dos homens.

Na verdade nem sei porque estou estendendo este papo. Eu, o museu e o Brasil somos uma coisa só: o nazismo oficial, a esquerda policial, o fascinismo de Nelson Rodrigues, o amor obsessivo e impertinente de meu pai, a imbecilidade de um velho que pensa me ameaçar me chamando de moleque ( quisera eu ser realmente um moleque!), o sentimentalismo barato de um povo de bom coração que insiste para que eu receba um prêmio sem ter em mente a minha vitória. Por isso nos confunde e nos reúne a todos, a mim e ao museu. Por isso eu bem que poderia aceitar o tal golfinho. Mas eu estou longe, sozinho e não quero saber de nada. Por favor entendam, é fácil, é primário.

Mesmo de longe eu posso compreender tudo. Mesmo na Inglaterra a embaixada brasileira me declara persona non grata para as agências de notícias. Nenhum prêmio vai fazer desaparecer essa situação. Vocês que me amam e me respeitam sabem que eu não os estou confundindo com o inimigo; vocês sabem quem são meus inimigos. Agora os campos estão bem definidos e quem não está comigo está contra mim. E os que estão comigo estão comigo há muito tempo, desde que perceberam o meu amor por eles; não agora, depois de eu ter que declarar o meu amor em prantos, do meio da rua, já posto pra fora de casa, num samba que apenas quer dizer a mesma coisa que a balada “alienada” da Martinha: eu te amo mesmo assim.

Eu devia ter aberto a cabeça de vocês a machadadas para que vocês entendessem o que eu estava dizendo. Talvez seja o que estou tentando fazer agora. Se a machadada tem que ser dada, a marcha será dada. Não foi por bem, vai por mal. Aguentem o tombo e por favor sosseguem e entendam. E não me deem mais prêmio nenhum. Vão cuidar de aprender as coisas que elas estão no mundo – coisas do mundo, minha nêga – e Paulinho da Viola que é bom sambista já nos avisou há mais de dois anos atrás, num samba:

RECUSO + ACEITO = RECEITO

Receito uma dose de formicida tatu para esse assunto. Não há nenhum herói nem nenhum gênio para ser condecorado; não há nada para ser premiado. Somos todos muito pobres e eu já estou longe, muito longe, vendendo minha miséria pra comer.

Meu pai fique tranquilo. O que eu fizer está bem feito. Ou está mal feito. Mas está feito e de qualquer jeito eu vou ter de aguentar. E se eu não aguentar DEUS é maior do que tudo e a nossa fé vai nos salvar…

PS: Com a publicação desta carta, o prêmio está implicitamente recusado. Que o golfinho volte para as águas tranquilas de sua insignificância.

 

(*) Texto publicado originalmente em 1970, no tabloide O Pasquim, e reproduzido do site oficial de Gilberto Gil. Os grifos são de FAROFAFÁ.

 

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