Hermínio Bello de Carvalho, num dos melhores artigos escritos sobre o tema das biografias, disse que tem faltado discutir o aspecto propriamente cultural nesse caso. O debate veio embrulhado em questões jurídicas, políticas e monetárias — isso sem falar no festival passional de enganos, engodos e engulhos que testemunhamos na semana passada. Hoje, a Câmara dos Deputados começa a desembrulhar o aspecto legal do problema*. Portanto, vale retomar a discussão sobre as maneiras diferentes de pensar a história e a memória da cultura brasileira que estão confrontadas nessa história.
Quando a representante da associação Procure Saber publicou o primeiro artigo, em 5 de outubro, em O Globo, montou-se uma oposição entre biografias marrons, automaticamente associadas com biografias não-autorizadas que passariam a poder circular caso a Anel (Associação Nacional dos Editores de Livros) ganhe essa briga, e as chapa-branca, ou seja, aquelas que exigem autorização prévia do biografado. Além da autorização prévia, na proposta da Procure Saber, estaria prevista uma divisão monetária dos lucros advindos da exploração comercial, entre biógrafo e biografado ou seus herdeiros.
Acontece que, ainda que essa oposição possa existir, no nível da especulação abstrata, ela não tem o menor lastro nas biografias realmente existentes no Brasil nos últimos 25 anos. Não vou falar pelos biógrafos, pois um deles, o Mário Magalhães, já o fez com mais propriedade e competência. Como leitora, o que eu encontro, nas prateleiras das livrarias, são livros pesados, de muitas páginas e que sempre me impressionam pela relação de fontes e bibliografia consultadas. Como jornalista, percebo o esforço de pesquisa, checagem e construção da narrativa. Ou seja, mesmo com o perigo de generalização, pode-se afirmar que as biografias que têm sido produzidas aqui são obras de um rigor jornalístico que se tornou impossível em jornais e revistas e que, sim, têm tentado fornecer elementos para colaborar na construção de uma historiografia essencial para a compreensão do Brasil.
Na situação atual da legislação, esse trabalho se dá APESAR das restrições impostas na forma de autorização prévia. Os casos são conhecidos e não vou me estender sobre eles aqui. Agora, dois casos de biografias não-autorizadas mais ou menos recentes merecem um dedo de reflexão.
No primeiro, Roberto Carlos não gostou do trabalho de reconstrução de sua vida feito por Paulo Cesar de Araújo e mandou recolher. Era uma biografia marrom? Não; não foram apontados erros graves na pesquisa realizada por Araújo em 15 anos de trabalho; não houve uma batalha de versões sobre episódios controversos; não houve calúnia. Roberto não gostou de determinados trechos e fez recolher a biografia. Quando Chico Buarque tentou levantar suspeitas sobre a seriedade da pesquisa de Araújo, o resultado foi constrangedor.
No segundo e mais recente, José Dirceu foi biografado por Otávio Cabral, editor da revista Veja. Aos fogos de artifício espoucados pela revista na qual o jornalista dá expediente, veio à tona um elenco de erros factuais e problemas de pesquisa, apontados, sobretudo, pela resenha de Mario Sergio Conti que botava em risco a credibilidade de toda a obra.
A defesa de Cabral não poderia ser mais tíbia – e não contribuiu para melhorar a situação. Em reportagem sobre o assunto publicada na Folha de São Paulo, Cabral afirma: “Não errei por má-fé ou falta de trabalho. O problema foram fontes de informações erradas ou documentos oficiais sem credibilidade 100%”. Não sei qual explicação Cabral teria para justificar o fato de um jornalista experiente ter se fiado em “fontes de informações erradas ou documentos oficiais sem credibilidade 100%” (a reportagem, infelizmente, não se interroga a esse respeito). Mas o fato é que esses erros que se originam daí estão longe de ser mera “picuinha” ou “ideologia”, segundo Cabral discriminou.
É sinal de que a pesquisa foi insuficiente e, se a pesquisa foi insuficiente, estamos diante de duas hipóteses: ou ele não sabe fazer a pesquisa ou a pesquisa não era assim tão essencial para a elaboração da biografia. O tempo (seis meses, entre apuração e elaboração, segundo o autor) e a quantidade de pessoas ouvidas por Cabral (63) não são elucidativos para decidir qual é a hipótese mais provável. Mas, quando a credibilidade de uma biografia é posta em xeque dessa maneira, pode-se dizer que estamos diante de uma biografia marrom. E não foi classificada como tal apenas porque seu autor está amparado por dois dos grupos editoriais mais poderosos do país, a Abril e a Record, mas também porque o biografado deixou o biógrafo se queimar sozinho.
Pode até ser que, caso caia a exigência de autorização prévia, mais biógrafos do calibre de Cabral animem-se a escrever livros com desleixo semelhante. Que comece a ficar mais provável que editores se lancem em aventuras que escarafunchem a vida privada de celebridades. Mas, a julgar pela história recente, nem a autorização prévia coíbe a biografia marrom, caso haja interesses poderosos o suficiente para que ela seja afinal publicada e continue a circular (é significativo que, no caso Cabral, seu editor na Record tenha escrito um artigo de defesa logo que a resenha de Conti foi publicada), nem toda biografia não-autorizada transforma-se automaticamente numa obra de exploração mal-intencionada da vida alheia.
Em outras palavras, a Procure Saber está mesmo falando de biografias?
Na segunda parte deste artigo, “Esqueletos no armário”, levantarei algumas hipóteses sobre os problemas da transformação da vida privada em história.
Acho um certo exagero essa argumentação toda. Se não me engano Michel Jackson já tem 600 biografias não autorizadas…O poder de dispersão de uma biografia canhestra é bem relativo, tanto é que a de Dirceu pode-se dizer que saiu pela culatra. Devemos zelar pela liberdade de expressão e cuidar para que o poder judiciário realmente se democratize. O Resto é manipulação. Em tempos de internet, figuras públicas ficarem cheio de dedos com suas relações inconvenientes não ajuda. Acho toda essa ação afora os neuróticos, tipicamente argentária e torcida pelo fato do judiciário brasileiro ser ineficiente. O que não pode ser justificativa ao direito que temos de construir nossa história.
como diria a Sé -não a profana, mas a santa- nihil obstat. Imprimatur…
A questão é que tem que separar a parte pública das biografias da parte sobre a vida privada. A parte pública é de interesse geral, diz respeito à sociedade. A vida privada não é de interesse geral e não diz respeito a ninguém, por mais famoso que seja o biografado, isto independe da qualidade da biografia. Publicar uma obra sobre vida privada de alguém´, à revelia deste, viola o direito à vida privada.
“A defesa de Cabral não poderia ser mais tíbia – e não contribuiu para melhorar a situação. Em reportagem sobre o assunto publicada na Folha de São Paulo, Cabral afirma: “Não errei por má-fé ou falta de trabalho. O problema foram fontes de informações erradas ou documentos oficiais sem credibilidade 100%”. Não sei qual explicação Cabral teria para justificar o fato de um jornalista experiente ter se fiado em “fontes de informações erradas ou documentos oficiais sem credibilidade 100%””
Aula com a Veja, revista que certa feita que fez uma matéria tendenciosa, mentirosa, sem qualquer piso de realidade e sem consultar os biógrafos de Che Guevara transformando-o num assassino implacável, um Jason da Esquerda. Aliás, a Veja e seus gazeteadores tê sem especializado em matéria sem qualquer fundo de verdade. Basta a fonte ser contra o PT que eles ouvem e passam como a Verdade Divina.