É uma história bela e antiga. A música brasileira nunca esteve distante das crianças e a associação conheceu um ápice histórico a partir de 1960 (e ao longo de toda aquela década, e além) com a coleção Disquinho. O homem por trás da iniciativa era ninguém menos que Braguinha, o João de Barro, diretor da gravadora Continental e autor de clássicos da música (e do carnaval) do Brasil como “Carinhoso”, “As Pastorinhas”, “Cantores do Rádio”, “Chiquita Bacana”, “Yes, Nós Temos Bananas”, “Copacabana” e dezenas de outras. Algumas gerações, dali em diante, foram marcadas pelas canções orquestradas pelo maestro Radamés Gnattali, que povoavam de cor e som histórias infantis como Festa no Céu ou A Cigarra e a Formiga.
Uma dessas histórias musicadas, lançada em 1961, se chamava Os Quatro Heróis e foi uma das fontes de inspiração para uma revolução musical infantil ocorrida 16 anos mais tarde por obra de Chico Buarque. A fábula dos quatro bichos (burro, cão, gato, galo) abandonados por seus donos por estarem ficando velhos tomou ares circenses e virou Os Saltimbancos, peça teatral musicada e LP gravado com músicas e narrações.
Dois dos integrantes do conjunto MPB 4 interpretaram o jumento e o cachorro, e duas meninas entraram na história: Nara Leão como a gata, Miúcha como a galinha. O disco circula ainda hoje, seduzindo gerações com uma trama progressista de luta de classes e reivindicação de igualdade e versos hoje clássicos nos moldes de “au, au, au, hi-ho, hi-ho/ miau, miau, miau/ cocorocó”, “jumento não é, jumento não é/ o grande malandro da praça/ trabalha, trabalha de graça” e “todos juntos somos fortes/ somos flecha e somos arco/ todos nós no mesmo barco/ não há nada pra temer”.
No mesmo ano de 1977 ocorreu outro marco indelével. A Globo estreou a série Sítio do Picapau Amarelo, inspirada na obra infantil de Monteiro Lobato, que ficaria no ar anos a fio e, logo de cara, acrescentou um álbum histórico de música brasileira infantil, sob direção musical de Dori Caymmi. Além da música-título de Gilberto Gil, canções adultas para crianças (e/ou vice-versa) ganharam vida própria em vozes como as de Sérgio Ricardo (“Emília”), João Bosco (“Visconde de Sabugosa”), Dorival Caymmi (“Tia Nastácia”) e Jards Macalé e Marlui Miranda (“Tio Barnabé”). Era de arrepiar – e é até hoje.
Secundado por Dori, Chico estava conduzindo, provavelmente sem saber, a música para crianças para um plano distinto daquele das historinhas musicadas da coleção Disquinho. Apesar da centralidade da história de Os Saltimbancos, foram as canções que sobressaíram a ponto de se descolar das historinhas e ganhar autonomia. O momento seguinte seria dado por Vinicius de Moraes, em parceria com a Rede Globo, no especial infantil A Arca de Noé, em dois episódios de 1980 e 1981.
Poemas de Vinicius para crianças ganhavam música (na maioria dos casos composta por Toquinho). No programa televisivo restavam resquícios de enredo, mas o disco viraria objeto de culto ao enfileirar canções sobre bichos (“O Pato”, “A Foca”, “A Corujinha”, “As Abelhas”, “A Pulga”, “O Leão”, “O Porquinho”, “O Peru”…) e sobre coisas (“O Relógio”, “A Porta”, “A Casa”). O elenco de cantores era estelar: Milton Nascimento, Elis Regina, Fábio Jr., Ney Matogrosso, Marina Lima, Fagner, Tom Jobim, Clara Nunes, Paulinho da Viola, Grande Otelo, e daí adiante.
O formato explodiu na tela da Globo dos anos 1980. Especiais de uma hora de duração somavam pouca história e muita música em títulos como Pirlimpimpim (1982), Plunct Plact Zuuum (1983), A Turma do Pererê (1984), entre vários. Agora não havia mais autores fixos para as canções, e diversos compositores e intérpretes colaboraram na criação de temas lembrados até hoje: “Lindo Balão Azul”, de Guilherme Arantes, com Moraes Moreira, Baby Consuelo e a menina Bebel Gilberto; “Cuca”, de Angela Ro Ro; “O Carimbador Maluco” (abaixo), de Raul Seixas; “Sereia”, de Lulu Santos, com Fafá de Belém; “Brincar de Viver”, de Guilherme, com Maria Bethânia; “Grande Final”, de Moraes Moreira, com Gal Costa…
A próxima revolução não seria tão generosa. Com Xuxa, a partir de 1986, o cancioneiro infantil perdeu em teor educativo, em esmero musical e na integração de elencos musicais criativos e audaciosos. A música para exercitar a inteligência infantil sobreviveu, nas décadas seguintes, em projetos como o Castelo Rá-Tim-Bum e o Palavra Cantada. Nesse meio tempo, artistas que eram crianças nos anos de existência de disquinhos, arcas de noé e conspirações saltimbancas sentiram saudade da própria infância (e/ou tiveram filhos) e passaram a homenagear as iniciativas agora antigas de Vinicius, Chico e demais emepebistas.
Os projetos infantis mais consistentes destes anos 2000 pertencem a essa filiação, num movimento em que atuam nomes como Zeca Baleiro, Pato Fu, Zé Renato, o trio Arnaldo Antunes–Edgard Scandurra–Taciana Barros (com o Pequeno Cidadão), Adriana Calcanhotto (na versão Adriana Partimpim), André Abujamra e Bixiga 70, em material frequentemente adaptado, mas também especialmente composto (em especial no projeto Pequeno Cidadão).
O Pato Fu, por sua vez, inverteu princípios dos anos 1970 e 1980: no álbum Música de Brinquedo (2010), todo tocado com brinquedos sonoros, adaptou para o imaginário infantil canções anteriormente adultas de Roberto Carlos, Rita Lee, Tim Maia, Zé Ramalho, Ritchie, Titãs e até Elvis Presley e Paul McCartney. Nesse caso, a música voltou a primeiríssimo plano, deixando à distância a fórmula antiga dos contadores de fábulas da coleção Disquinho. E assim segue a história, até que alguém venha virar tudo de ponta-cabeça outra vez.
(Texto publicado originalmente no site Ideias Online, do Centro Cultural Banco do Brasil, a propósito do Festival CCBB de Música Infantil Brasileira, que acontece em São Paulo nos dias 12 e 13 de outubro de 2013.
cara, você não lembrou do Villa Lobos, lastimável
Poxa,teve o disco incrível do programa Ra tim bum na Tv Cultura,maravilhoso produzido pelo Edu Lobo,e que embalou minha infância!
http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI00877
Coloquei ele aqui, Arthur (acredita que eu não conhecia até esta semana?!):
http://farofafa.cartacapital.com.br/2013/10/13/radio-farofa-musica-de-crianca/
Bacana!!Engraçado que conheço poucas pessoas da minha geração (tenho 23 anos) que se lembram desse disco,tenho o k7 até hoje!!Hahaha!Um barato!E a proposito,muito massa o texto “A babá eletrônica” , felicíssimo na descrição!
oi gostaria de saber como faço para encontrar a revista farofafá? faço mestrado sobre o universo infantil, a programação televisiva para criança e a música acho que esta revista pode me ajudar muito, obrigada
Claro que existe inúmeras obras mas vc colocou algumas mega famosas sim…posso dizer que OS SALTIMBANCOS na relação conta tudo…é um marco!
É demais, né, Consuelo?! <3
A revista farofafá é apenas online?