Guardião daqueles que não têm medo de assumir a dor, de admitir que a partida do outro devasta, daqueles que já levaram uma porta na cara, José Ribeiro é uma antítese de si mesmo. Sorridente e sereno, canta alto, às vezes chora, mas consegue não carregar uma nuvem negra acima de si. Pelo contrário: o homem que vendeu 800 mil cópias do primeiro LP, lançado em 1972, é de uma bem-vinda leveza (parece que, de tanto cantar a música que o consagrou, mimetizou algo próprio de sua famosa rosa).
Sofrer: enquanto não houver vacina, brigamos contra. Se apressados, buscamos álcool, festa ou Prozac. Se com tempo, amor, terapia ou o Divino. Há, no entanto, quem entende o inevitável: o sofrimento é parceiro do álcool e da festa, namora a fluoxetina, é visto de mãos dadas com o amor e a terapia, comunga com o Divino. José Ribeiro sabe de tudo isso: desenvolveu uma relação íntima e segura com o Sofrer.
No começo, brigaram feio, depois foram cúmplices, depois quase se separaram. Mas são próximos demais. Fechou então uma espécie de trato: esse sentir em demasiado pode morar com ele sem ser molestado, desde que pague um aluguel simbólico. É simples: ele aparece, vem um chute, Zé compõe. Aparece, chega uma tapa, Zé canta. Aparece, um murro na cara, Zé sobe ao palco. É honesto: o cantor acertou com o próprio sofrimento que vai usá-lo continuamente para viver.
Não é à toa, atente-se, que o cantor o evoque seguidamente: ele aparece em “A Maior Saudade Minha” (“vou sofrendo a realidade/ nesta vida em que tudo tem fim”); em “Aqui Estou Eu” (“embora estivesse/ ao lado de outra, mas muito sofri”); em “Canção dos Namorados” (“não tenho jeito de dizer que já sofri”); em “Pensando em Você” (“…e que tudo fazia/ pra me ver sofrer”); em “Porteiro, Suba e Diga” (“a espero tremendo/ sofrendo e gemendo, morrendo de amor”); em “Sandra” (“em quem me faz infeliz/ se deixar vou sofrer”); em “Meu Coração Não É Brinquedo” (“às vezes finjo que não ligo/ sofro, mas não digo”).
Não havia como ser diferente: Zé Ribeiro, 78 anos, não sabe lidar com o mínimo, o sussurro, o volume baixo. O eixo de sua música é feito de abandono, saudade, fracasso, erros, paixão, bebida, mágoa, ciúme, partidas. Música de porta fechada na cara. A voz alta, dolorida, não bate com o atual momento cultural/comportamental no qual o amor surge domesticado em fotos esmaecidas ou sintetizado em um coração no Twitter. Seu amor é do tipo que aparece sublinhado com dois traços de caneta vermelha, é daquele que se traduz em boleros sobre a cerveja, a decepção, a terrível existência daquela mulher – aquela ingrata mulher – que não soube ser amada.
Essa adesão ao partido dos que admitem sofrer pode não conversar com o amor performático de hoje, mas, nos anos 70, não era feio dizer que o peito doía. Assumia-se a desgraça de não ser querido romanticamente por alguém. Tanto que 800 mil pessoas, aquelas que já haviam experimentado o abandono, o fracasso, a bebida e a porta na cara, compraram o primeiro LP de José Ribeiro (CBS, 1972). Compartilharam com ele o medo de perder um Alguém: “O teu suave perfume às vezes causa-me ciúme/ ao te beijar sinto no coração o pulsar da mais pura paixão”. “A Beleza da Rosa” (escrita por Pedro Ferreira da Silva), seu maior sucesso, tem um significado especial 40 anos após o lançamento: é verdadeira ode a um sentir não estilizado.
Com o tempo, estabeleceu uma relação dual com a sua famosa rosa: toda vez que pedem a música – o que acontece duas, três vezes em um mesmo show -, sente-se envaidecido. Nas primeiras notas, faz a relação clichê entre a flor e as mulheres e ameniza, talvez sem saber, o peso e a tristeza da letra que logo cantará. Ao mesmo tempo, os primeiros acordes o entristecem: significam que novamente ele não poderá mostrar suas novas canções. Quando o faz, percebe uma certa dispersão. “Tem umas 30 músicas que eu não posso deixar de tocar.” Parece ter menos medo do presente do que os seus fãs.
As músicas que fazem parte de seu show são apenas uma pequena mostra dos 28 discos lançados ao longo de uma carreira iniciada em 1967, quando gravou o primeiro compacto. “Me Casava com Ela” passou seis meses nos primeiros lugares das mais tocadas, um ranking que também incluía Roberto Carlos, o cantor que todos queriam ser – todos, menos José.
Namoradinhas, brotos e calhambeques não faziam parte do repertório do rapaz nascido em Minas Gerais que chegou ao Rio sonhando com a possibilidade de ser uma estrela da música. Seu grande ídolo, Luiz Gonzaga, fazia imenso sucesso, e era nele que o jovem se inspirava. Cantava baião e escrevia as letras usando o nome de batismo, José Cipriano. Mas o tom anasalado da voz e o desvio para o vermelho – “loucamente”, “abandono”, “saudade”, “fracasso” – o carimbaram para sempre na música popular que trata das dores do coração.
“Eu vivo o drama da música”, diz Zé, sentado no sofá e cercado por flores de plástico que decoram a sala da casa localizada em um bairro popular da região metropolitana de Recife. Foi morar ali depois de um período vivendo no Hotel Central (rua Manuel Borba), no centro comercial da capital, onde lojas, mercados e escolas misturam-se a bares, boates e cortiços. Lá, era conhecido entre os ambulantes, trabalhadores, michês e prostitutas, seus vizinhos e às vezes confidentes acidentais.
O quarto de hotel não era novidade na vida do artista, que percorria todo o país a cada lançamento de disco: quando estava na CBS (de onde saiu em 76 e depois voltou em 78), entrava em estúdio todo mês de abril. “Fui um dos primeiros artistas a fazer turnê no interior do Brasil.” Esse contato aproximado com um público que tinha pouco acesso à produção musical nacional o notabilizou, impelindo-o ao sucesso popular. Foi disputado por várias gravadoras (PolyGram, para onde foi em 1977, e Copacabana, para onde foi em 1981, quando gravou “Bom-Dia, Meu Amor“, outro grande sucesso).
A vida pessoal, é claro, sofreu várias reviravoltas, tanto no momento em que ele estava no auge quanto, a partir do envelhecimento do público e surgimento de novos estilos musicais, sua carreira foi entrando em declínio. Casou-se três vezes, tempo em que negociou quase diariamente com o sentimento que morava de aluguel dentro de seu peito. Teve quatro filhos, que vivem hoje no Rio e em João Pessoa, cidades que abrigam ainda seus seis netos e um bisneto.
Seu maior contato com o mundo exterior é a esposa Mônica, que conheceu em uma das temporadas que morou no Hotel Central. Há mais de dez anos ao lado de José, ela o acompanha em shows, sessões de fotos, entrevistas em rádios. Também criou diversas páginas divulgando o trabalho do marido, onde expõe fragmentos de sua vida pessoal (“sou José Ribeiro, o cantor da beleza da rosa, sou casado e muito feliz com a minha esposa”, lê-se em uma das páginas).
A vida atribulada passada foi um processo até certo ponto natural para o cantor: segundo ele, mulheres e bebidas eram extensões do sucesso musical. O afastamento da família, assim, foi apenas uma consequência dessa justaposição. Há tempos não vê os filhos, sobrinhos, irmãos. “O artista nasceu para sofrer”, observa José, mostrando novamente o inquilino que traz consigo e que trabalha constantemente com o cantor: juntos, fazem shows semanais e, cercados pelas flores de plástico, compõem.
Nota: Durante a apuração desta matéria, um parente de José Ribeiro que vive em outro estado entrou em contato com a reportagem. Queria informar que, apesar da distância, nutria carinho pelo tio. Também mandava dizer que uma tia tinha falecido havia mais de um mês. Que não julgaria as decisões que o parente mais famoso tomou na vida. “Agora só tem o senhor, meu pai e a tia”. Finalizava: “Mando foto em anexo”.
(Fabiana Moraes é jornalista e socióloga, repórter especial do Jornal do Commercio (Recife), autora de reportagens especiais como “Ave Maria“, “A Vida é Nelson“, “O nascimento de Joicy” (Prêmio Esso de reportagem em 2011) e “Os sertões” (Esso de Jornalismo em 2009). Publicou, no formato livro-reportagem, Os Sertões (2011) e Nabuco em Pretos e Brancos (2012). A série “O clube dos corações partidos” foi publicada originalmente no Jornal do Commercio.)
Prezada Fabiana Moraes,
Meu nome é Marcio Barreto, sou neto do falecido Fernando Barreto, compositor de A Padroeira e Me casava com ela, músicas que José Ribeiro gravou em seu primeiro compacto em 1967. Gostaria muito de saber o contato de José Ribeiro.
Obrigado!
Marcio Barreto