O sertão está virando mar

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“Vou contar uma história, na verdade é imaginação/ abra bem os seus ólho pra enxergar com atenção.”

A história musical pode ser recontada hoje, quase 50 anos mais tarde, no primeiro relançamento em CD da trilha sonora do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, do cineasta baiano Glauber Rocha (1939-1981).

Sergio Ricardo (Forma FM-3) - original

Editada originalmente pela efêmera gravadora Forma, a trilha luxuosa era dita “cancioneiro do Nordeste composto e interpretado por Sérgio Ricardo“, sob versos poéticos de Glauber. O resgate, conduzido pelo selo carioca Discobertas, integra a caixa Bossa Romântica & Trilhas – Sérgio Ricardo – 1959-1964. O pacote inclui ainda a rara trilha do filme Esse Mundo É Meu (1964), além de três discos medianos da fase inicial do cantor, compositor e cineasta paulista hoje com 81 anos e ainda ativo militante cultural brasileiro.

A reedição sonora da Discobertas não é das mais caprichadas – um aparente furo de sulco de velho LP corta da terceira faixa uma das passagens da palavra “milagreiro”. Outros pulos ocorrem adiante, no extenso “Discurso de Sebastião”.

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Saltos à parte, o disco é aquilo que os mais reacionários gostam classificar de “arte panfletária”. Na figura de um cantador cego nordestino, Sérgio Ricardo faz deslizar pelas faixas musicadas (e entremeadas por trechos de diálogos do filme) um desfile das mazelas culturais brasileiras “lá nos confins do sertão”. Por ironia histórica, a obra-prima glauberiana filmada em 1963 viria à tona em meio ao carregado ambiente do golpe civil-militar de que as Organizações Globo só se “arrependeriam” oficialmente em 31 de agosto de 2013 (à dir.), portanto com 49 anos de atraso.

“Manuel e Rosa vivia no sertão/ trabaiando a terra com as própria mão”, Sérgio começa a apresentar o casal de protagonistas, em ambiência desolada e desoladora. Aos poucos, vão chegando à história personagens mais ou menos fictícios, mais ou menos reais.

Apresenta-se o beato fanático-messiânico Sebastião, “que era santo, que era santo, que era santo e milagreiro”. “O homem não pode ser escravo do homem. O homem tem que deixar as terra que não é dele e buscar as terra verde do céu”, ele discursa, nem tanto à terra, nem tanto ao céu.

Sempre na voz do cego violeiro, surge a voz profana da (i)legalidade, a sombra do Estado paralelo se abatendo por sobre uma terra sem Estado: “Jurando em dez igreja/ sem santo padroeiro/ Antônio das Morte/ matador de cangaceiro”.

O cangaço – o crime – cruza os caminhos de Manuel e Rosa: “Entrou na vida deles/ Corisco/ o diabo de Lampião”.

As próximas chegadas, irreais, são de Lampião, o rei do cangaço, em pessoa, e de Maria Bonita – iriam eles ressuscitar, num levante comandado pelos camponeses explorados Rosa e Manuel?

Apresentados os personagens do drama, a cantiga segue, monocórdica, até desembocar no confronto físico entre o cangaceiro e o matador de cangaceiros – Estado versus crime, crime versus crime, (ausência de) Estado versus (ausência de) Estado. Deus contra Deus, Deus contra o diabo, diabo contra diabo? “Não é tudo a mesma coisa, Sebastião, Virgulino?”

O crime resiste, confundido e misturado com o desejo de liberdade: “- Se entrega, Corisco/ – eu não me entrego, não/ eu não sou passarinho pra viver lá na prisão”. “Mais fortes são os poderes do povo!”, sonha Corisco, antes de morrer.

“O sertão vai virar mar/ e o mar vai virar sertão”, encerra o coro de camponeses. Ergue-se a máxima corrosiva glauberiana, de que Deus é o diabo é Deus é o diabo é Deus é…, acabam-se o filme e a trilha do filme. Não é tudo a mesma coisa?

 

P.S.:

Em abril de 2012, participei da inauguração de uma das casas Fora do Eixo em Belo Horizonte. Fomos em grupo, de “ônibus hacker”, numa turma que incluía, entre muitos, o líder FdoE Pablo Capilé, a professora Ivana Bentes Pedro Rocha, um dos filhos de Glauber.

Um texto publicado pelo cineasta baiano no Jornal do Brasil em 1979 circulava de mão em mão, excitando o entusiasmo de vários, sobretudo de Capilé. Não propriamente nestas palavras, ele lamentava a bundamolice dos tempos atuais, em contraste com a metralhadora verbal giratória de Glauber. Contagiado pela empolgação, pedi aos herdeiros do autor de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe (1967) a autorização para republicar “Câncer na Cultura Brazyleyra” em FAROFAFÁ – e obtive.

Preparei o texto, abrindo parágrafos onde antes não havia (que tarefa difícil!), mas preservando na íntegra o linguajar peculiar de Glauber. O texto parecia fazer sentidos loucos naqueles dias burocráticos sob Ana de Hollanda no Ministério da Cultura, mas o tempo se passou sem que eu (inexplicavelmente) apertasse o botão de “publicar”.

Pois é hora de fazê-lo, ainda mais agora, quando todos parecem habituados e prontos a ler do início ao fim uma infinidade de relatos copulosos sobre os fora-da-lei, digo, os fora-do-eixo. Glauber era fora-do-eixo antes de a expressão virar logomarca para Deus e para o diabo.

Reproduzido aqui, “Câncer na Cultura Brazyleyra” fica como uma homenagem a acompanhar uma simples notificação sobre o relançamento de uma trilha sonora de um filme de Glauber. Serve, ao mesmo tempo, para que os curiosos naveguem um pouco pelos humores que inspiram os fora-do-eixo e a(s) cultura(s) fora-do-eixo. Lido hoje, o texto glauberiano, povoado por metáforas cancerígenas, é dupla e triplamente perturbador.

Perturba pelo tom paranoico-persecutório que Glauber, dois anos antes de morrer (em 22 de agosto de 1981), imprimia às opiniões que (naquela época) nossos jornais tinham coragem e desassombro em publicar. Um espanto para quem esteja acostumado com o jornalismo domesticado de hoje em dia: em tempos iniciais de “abertura” (ou “aberturas”, no plural de Glauber), o Jornal do Brasil, hoje praticamente defunto, dava “ora bolas” aos perigos da roda-viva e atirava Glauber Rocha para lá e para cá à exposição pública.

Mas se o quase-testamento glauberiano de 24 anos atrás pode perturbar 2013 é, sobretudo, pelo modo chocante como o artista lucidoido expõe não as diferenças, mas antes as semelhanças entre brasileiros “de direita” e “de esquerda”.

Capilé não devia saber disso 15 meses atrás, mas essa mesma geleia geral estava prestes a se intrometer feito um oceano no sertão pós-matogrossense dos fora-do-eixo, logo após o “pecado original” da visita dos Mídia Ninja à Roda Viva do tucanato paulista, em 5 de agosto passado. Quem é de esquerda, quem é de direita, quem não é nada-disso-muito-pelo-contrário, na geleia de mocotó da primavera brasileira de 2013?

 

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