A edição das caixas de CDs “Festivais da Canção” coloca a nu o modo como a televisão forjou a “música popular brasileira” moderna e em seguida a destruiu.
Era uma vez um país arbitrário que moldava sua identidade assistindo a festivais da canção pela televisão. O país era o Brasil das décadas de 1960 e 1970, que vivia sob uma ditadura crescentemente feroz e de repente descobriu a vaia como manifestação possível de voto dentro de uma sociedade sem direito ao voto propriamente dito. A música, música popular brasileira, era o veículo, o cavalo-de-batalha.
Festivais da Canção, um lançamento sob responsabilidade do selo independente carioca Discobertas, consiste de dois caixotes com sete CDs cada e abrange a história completa do Festival Internacional da Canção Popular, o FIC, que esteve em vigor em sete edições entre 1966 e 1972. Contém boa parte da intrincada história de formação da MPB como a conhecemos até hoje, governada por chicos e caetanos e obedecida por seus discípulos. Penosa, a passagem pelos 14 CDs contendo discos originais da época e sequências-bônus permite (re)aprender como o Brasil e sua música se tornaram o que são.
A atenção pontual ao FIC deixa de fora a origem do formato sessentista de festivais competitivos destinados a revelar novos talentos musicais, tateado pela TV Record em 1960, consolidado pela extinta TV Excelsior em 1965 (quando Elis Regina se consagrou cantando “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes) e transformado em coqueluche a partir de 1966 pelos Festivais da Música Popular Brasileira da Record.
Foi nessa emissora paulista, então hegemônica no trato com a canção brasileira, que despontaram para o estrelato Elis e Edu, Roberto Carlos, Chico Buarque, Nara Leão, Geraldo Vandré, Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Mutantes e dezenas de outros. O FIC de 1966, encampado inicialmente pela Secretaria de Turismo do Estado da Guanabara e pela TV Rio, não fazia nem suspeitar o que os festivais se tornariam logo a seguir.
O gancho principal parecia ser menos a renovação da música nacional que o encaminhamento de uma vencedora brasileira para concorrer na etapa definitiva, internacional, em que nomes da música mundial viriam competir por troféus e prêmios na “Cidade Maravilhosa”. Festivais da Canção se detém ao conteúdo nacional dos FICs.
Ali, no Rio de Janeiro, foi travada a primeira das várias batalhas épicas de que o ginásio do Maracanãzinho seria palco. Grosso modo, os concorrentes espalhados por dois LPs ornados pelo galo-símbolo desenhado pelo cartunista Ziraldo se dividiam entre as velhas e as novas gerações, entre os antigos e os novos modos de compor e cantar. À primeira turma pertenciam intérpretes e compositores como Altemar Dutra, Capiba, Lana Bittencourt, Herivelto Martins, Stelinha Egg, Miltinho, Silvio Cesar, Doris Monteiro. Na segunda, contavam-se Elis, Edu, Vandré, Simonal, Taiguara, MPB 4, Quarteto em Cy… Na corda bamba entre duas eras, equilibrava-se a estrela Maysa, jovem de voz antiga desde a adolescência.
Os “novos” surraram os “velhos” na classificação e no pódio. A jovem Nana Caymmi, filha de Dorival, venceu o festival interpretando “Saveiros”, uma canção à moda do “Arrastão” de Elis, composta por seu irmão Dori Caymmi e por Nelson Motta. Levou a primeira grande vaia da era dos festivais.
Tanto os que apelavam à tradição quanto os que buscavam algum grau de modernização tinham algo em comum nesse I FIC: compuseram canções arrasadoramente melancólicas, um festival de depressão. Como lembra Zuza Homem de Mello em sua crucial biografia A Era dos Festivais – Uma Parábola (editora 34, 2004), o crítico José Ramos Tinhorão, integrante da comissão executiva do evento e inimigo visceral da bossa nova, culpou aquele gênero musical, já então em baixa, pelo aguaceiro de tristeza e baixo astral.
Não era bem assim. Do “Canto Triste” de Elis a temas batizados “Canção a Medo”, “Crepúsculo”, “Não Se Morre de Mal de Amor”, “Morte do André”, “Canção do Amor Que Não Vem”, “Vou Tão Sozinho” ou “Chora Coração”, aquele punhado de músicas deprimidas e depressivas parecia datar do início dos anos 1950, não de 1966. Se fosse ser assim, não estaríamos hoje conversando sobre “era dos festivais”.
O ano de 1967 demarcaria a grande mudança. Antes mesmo da finalíssima do I FIC no ano anterior, Chico Buarque (“A Banda”) e Geraldo Vandré (“Disparada”) haviam disputado a renovação no festival da Record de 1966. Inaugurada em abril de 1965 sob financiamento do grupo norte-americano Time-Life, a Rede Globo viu-se levada a apanhar para si o FIC, para tentar competir com o sucesso do festival da Record em 1966.
De casa nova, o II FIC ocorreu praticamente ao mesmo tempo que o III Festival da Record, e comeu poeira. Na emissora paulista, com Edu Lobo (“Ponteio”) e Chico Buarque (“Roda Viva”) de um lado e Gilberto Gil (“Domingo no Parque”) e Caetano Veloso (“Alegria, Alegria”) do outro, secundados por um elenco estelar de novos artistas, travou-se a segunda disputa épica da era dos festivais, entre a tradição nacional-popular e a invasão “universal” de rocks, guitarras e atitudes assumida pelos inventores tropicalistas. Ao contrário do que acontecera no I FIC, tudo ali tinha frescor de novidade, fosse a tropicália, fosse a tradição sambista-universitária-bossanovista encarnada por Chico e Edu.
Na Record se estapeavam Edu e Marília Medalha, Gil, Nana e Mutantes, Chico e MPB 4, Caetano e os Beat Boys, Vandré, Nara e Sidney Miller, Roberto Carlos, Simonal, Elis e Dori, Renato Teixeira e Gal, Sérgio Ricardo, Francis Hime e Jair Rodrigues, Elza Soares, Erasmo Carlos etc. Enquanto isso, no II FIC, um novato chamado Milton Nascimento tinha de trabalhar praticamente sozinho (Chico Buarque enviou “Carolina”, mas deixou a interpretação para a dupla baiana Cynara & Cybele, metade do Quarteto em Cy).
Milton, evidentemente a grande, quase solitária novidade trazida pelo festival da Globo, classificou nada menos que três canções: “Travessia”, “Morro Velho” e “Maria, Minha Fé”. Interpretou as duas primeiras e deixou a terceira a cargo de seu padrinho musical “velha guarda” Agostinho dos Santos. Nem assim obteve a vitória. Gutemberg Guarabyra, aos 16 anos, liderou o Grupo Manifesto (do futuro homem forte das trilhas globais Mariozinho Rocha) e faturou o festival, com a infanto-juvenil “Margarida”. O FIC, a Globo e o governo da Guanabara não pareciam estar compreendendo os ventos de transformação que varriam a agora apelidada MPB.
Enquanto a gravadora Philips, de matriz holandesa, bancava o lançamento de 36 canções concorrentes da Record em três LPs, um selo independente nacional liderado por Agostinho dos Santos, Ritmos-Codil, encarregou-se de um álbum único – e bagunçado – para o II FIC, com metade das faixas gravadas ao vivo no próprio evento e o restante completado por regravações de intérpretes que não estavam na competição e até por canções desclassificadas da final. Conforme o formato festivalesco começava a se revelar uma mina de ouro também discográfica, a pequena Codil precisava se virar com o que tinha a seu alcance.
Em 1968, a batalha, não tão épica, foi travada por Record e Globo, e pela primeira vez a segunda saiu vitoriosa. O III FIC é o do escândalo de Caetano com “É Proibido Proibir”, da segunda colocação para “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando)”, de Vandré, e do triunfo da aparentemente neo-romântica “Sabiá”, parceria de Chico Buarque com o veterano bossanovista Tom Jobim. Foi, sobretudo, o ano em que o voto interditado nas urnas se esvaiu em vaias, fossem para a inovação tropicalista, fosse para o formalismo tradicionalista de “Sabiá”, impiedosamente apupado nas figuras frágeis das intérpretes Cynara & Cybele.
A Codil ainda insistiu num volume único do III FIC, com Agostinho dos Santos e um elenco obscuro cantando 14 concorrentes apanhadas de modo aparentemente aleatório. A novidade, nesse ano, foi que as gravadoras majoritárias Odeon e Philips lançaram três volumes cada, abrangendo todas as competidoras finalistas em gravações de variados intérpretes. Mesmo desclassificada por decisão do próprio Caetano, “É Proibido Proibir” aparece na compilação da Philips, com o autor, e da Odeon, em versão mais comportada de Rosa Maria.
Os volumes da Philips estão ausentes do projeto Festivais da Canção. Dono do selo Discobertas, o jornalista e pesquisador carioca Marcelo Fróes explica: “O projeto, quando iniciado há dois anos, envolvia os primeiros discos, viabilizados em parceria com Ricardo Cravo Albin. Empresas extintas, contratos caducados, era pura burocracia. Com o passar do tempo, iniciamos parceria com a EMI (detentora do catálogo da Odeon) e percebi que ela detinha direitos sobre os demais”. Sobre a falta dos históricos volumes da Philips (atual Universal), até hoje inéditos em CD, ele afirma: “Adoraria ver todos reeditados. Quem sabe no futuro amarra-se algum conceito e corre-se atrás da burocracia”.
Os volumes da Odeon contam uma história suculenta, mas parcial. Já naquele momento, a Philips encampava a tropicália e agrupava maioria acachapante do elenco de renovação da MPB (e da Record). A Odeon tinha Taiguara, Beth Carvalho e Marcos Valle, e de resto se virava com intérpretes pouco conhecidos de seu elenco. A novata e ainda não sambista Clara Nunes, por exemplo, reinterpretava “Sabiá”.
Por conta dessa contingência, mal se percebe a passagem da tropicália pelo III FIC no resgate da Discobertas – um momento de exceção é a obscura “Dança da Rosa”, de Chico Maranhão, em interpretação jazz-tropicalista do Quarteto 004 e da Tradicional Jazz Band, no volume da Codil. A tropicália, no entanto, foi o que incendiou e estilhaçou o III FIC e bipartiu em duas a era dos festivais.
A tropicália não vencera nem 1967 nem chegara à finalíssima do III FIC, mas centralizara as atenções em duas eliminatórias preliminares realizadas em São Paulo (uma novidade daquele ano), perdendo no voto popular das vaias maciças do público paulistano e no voto indireto da desclassificação pelos jurados da hoje esquecida – e extremamente tropicalista – “Questão de Ordem”, de Gil. Naquele 1968, restou à Record seguir os passos do FIC (e da Globo), corrigir seus próprios rumos e dar vitória ao tropicalista Tom Zé, por “São São Paulo, Meu Amor”.
No campo cultural, a tropicália foi o levante mais-que-político, alegorizado pelas atitudes comportamentais-contraculturais de minorias negras, femininas e homossexuais encenadas por Gil, Caetano e Mutantes no FIC e por Tom Zé e Gal no festival da Record, encerrado quatro dias antes do AI-5. No campo político, o formalismo musical do hino de protesto de Vandré foi o que oficialmente acendeu as antenas da ditadura, num ano de explosão hippie nos Estados Unidos, levantes de juventude na Europa, passeatas de estudantes no Brasil e uma avalanche de letras de protesto nos festivais (inter)nacionais da canção. Era hora de o conglomerado Globo-ditadura intervir.
O IV FIC, de 1969, veio com determinação expressa da ditadura à Globo: extirpar das listagens quaisquer canções de viés político. Da rebeldia tropicalista, restaram os Mutantes, com a desligada “Ando Meio Desligado”, Jards Macalé e Os Brazões, com a cifrada e esquisitíssima “Gotham City”, e o pré-tropicalista Jorge Ben, com a denúncia social explícita fantasiada de samba-rock de “Charles, Anjo 45”. A Codil sumiu do mapa, a Philips lançou um álbum duplo e a Odeon se resumiu a um único LP com dez faixas, dominado pela docilidade romântica de Evinha (vencedora com “Cantiga por Luciana”, de Paulinho Tapajós e Edmundo Souto), Antonio Adolfo & A Brazuca (“Juliana”) e Marcos Valle (“Beijo Sideral”).
Insinuava-se levemente uma tendência pela black music, mas o que vigorava ainda era o padrão “Andança”, aprendido com a terceira colocada do ano ano anterior, uma toada interiorana defendida pela ainda não sambista Beth Carvalho com os Golden Boys. Quanto a esse FIC, a Discobertas introduz uma novidade: dois volumes inéditos de gravações ao vivo no Maracanãzinho, incompletas, mas enriquecidas com as participações de novos aspirantes como Macalé, Alceu Valença e Martinho da Vila.
O legado de 1969 fez-se visível em 1970. Via Globo, a ditadura pretendia enaltecer a Copa do Mundo, o “pra frente, Brasil”, a canção popular exuberante transmitida em cores via V FIC para as TVs europeia e norte-americana. Ganhou de presente uma desconcertante rebelião black power, capitaneada pela aparente mansidão soul da vencedora “BR-3”, interpretada por Toni Tornado, e pelo escândalo crescente de “Eu Também Quero Mocotó”, de Jorge Ben, defendido pela blackíssima Banda Veneno do maestro Erlon Chaves, braço direito do controverso ídolo negro Wilson Simonal.
Os dois volumes Odeon excluem o “Mocotó”, mas contemplam “BR-3” e o “Hino do Festival” interpretado por Simonal, então fenômeno (inter)nacional. Nos bastidores, o negão Toni Tornado namorava a mocinha global loura Arlete Salles, apresentadora do FIC. No palco, na final internacional, Erlon levou louras seminuas para rebolar os mocotós e beijá-lo lascivamente, e, diz-se, escandalizou esposas de generais que governavam a ditadura. A repressão político-policial bateu geral às portas do FIC e da tentativa de inventar um black power à brasileira. Em pouco tempo, Simonal se enroscaria num intrincado escândalo de delação, Tornado encerraria sua carreira musical e o maestro global Erlon Chaves estaria morto precocemente.
Sem que a ditadura percebesse e menos ainda compreendesse, a tropicália havia virado orgulho negro e a rebeldia permanecia viva no mais chapa-branca dos festivais – na verdade o único, pois a essa altura a Record havia abandonado a competição. Abatida por misteriosos incêndios, a emissora encerrou seu ciclo de festivais na edição de 1969, vencida por “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola.
Ex-vencedor aos 16 anos com “Margarida”, Guarabyra ressurgia em 1971 como ex-chefe de gabinete do presidente do Banco do Brasil e coordenador musical do VI FIC. Próximo da nata da nova MPB, por pertencer a ela, ele definiu o objetivo de trazer chicos, caetanos e jobins de volta ao palco festivalesco global. Iniciava-se assim uma tumultuadíssima edição, marcada por abaixo-assinados contra a censura militar, desistência coletiva dos heróis da geração festival, supostas delações entre concorrentes, elenco afinal improvisado pela Globo e um esvaziamento geral da qualidade musical do FIC.
Emblematicamente, venceu “Kyrie”, uma oração em formato católico defendida pelo black-dócil Trio Ternura, sob autoria dos efêmeros Paulinho Soares e Marcelo Silva. “Desacato”, da dupla Antonio Carlos & Jocafi, pegou segundo lugar com um surpreendente refrão de referência aparentemente inocente à delação: “Por isso agora deixa estar/ deixa estar que eu vou entregar você”. A Philips e a Odeon caíram fora, e o LP solitário com “as favoritas” do VI FIC coube à nascente Som Livre, futura todo-poderosa gravadora da Globo. Apesar da modesta nona colocação, “Casa no Campo”, de Zé Rodrix e Tavito, brilhava ali solitariamente, antes de ser imortalizada por Elis.
O último FIC, de 1972, é quase uma nota solta no ar, em que Solano Ribeiro, ex-homem dos festivais da Record, arquitetava tentativa vã de recuperar o espírito perdido de renovação musical. De fato, o certame contava com um corpulento time de novíssima safra: Raul Seixas, Maria Alcina, Sérgio Sampaio, Sirlan, Luli & Lucina, Edson & Aloísio (futuros autores do clássico “Não Deixe o Samba Morrer”), Raimundo Fagner, Alceu Valença, Ednardo & Belchior, Ruy Maurity, Tom & Dito, o adolescente Oswaldo Montengro…
Com exceção dos cinco primeiros, nenhum seria sequer classificado para a final. A vitória, dividida por dois, coube aos veteranos Jorge Ben, por “Fio Maravilha” (cantada por Alcina) e Baden Powell & Paulo César Pinheiro, por “Diálogo”. O discurso de renovação de Solano sucumbia à destituição do júri presidido por Nara Leão (e substituído por jurados estrangeiros), ao espancamento do ex-jurado Roberto Freire (homônimo do atual deputado udenista) por policiais, à falta do diálogo apregoado por uma das vencedoras e ao poderio arbitrário da Globo, submissa aos interesses edulcorantes da ditadura, se não sua sócia preferencial.
A Som Livre lançou um LP único ornado por um novo galo-símbolo, agora todo gráfico e estilizado, que logo a seguir foi cantar em terreiros nenhuns. Do motim liderado por Chico, Tom e Paulinho de Viola em 1971 ao confinamento da MPB ao paraíso futebolístico decalcado pelo “Fio Maravilha” de Jorge Ben em 1972, o conglomerado Globo-ditadura sorveu o próprio veneno e transformou em fumaça o que havia sido uma das principais glórias nacionais na década anterior.
Inacreditavelmente, depois de tudo que acontecera o país que se moldou assistindo a festivais da canção pela televisão perdeu o orgulho por fazer música brasileira com B maiúsculo. Incrivelmente, talvez padeçamos desse mal ainda hoje, 40 anos mais tarde, mesmo que desde 1989 tenhamos reconquistado o direito de votar, e não apenas vaiar.
(Texto publicado originalmente na revista Fórum, edição 117, de dezembro de 2012.)