“Plínio Marcos em Prosa e Samba – Nas Quebradas do Mundaréu”, o histórico disco de 1974 em que o dramaturgo santista apresenta sambistas de São Paulo, é reeditado em CD.
Mesmo combalida, a indústria fonográfica nacional produz um feito histórico para São Paulo em 2012: a gravadora Warner reedita finalmente, em CD, o álbum Plínio Marcos em Prosa e Samba – Nas Quebradas do Mundaréu, lançado originalmente em 1974.
Dramaturgo autor de clássicos do teatro brasileiro como Dois Perdidos numa Noite Suja (1966) e Navalha na Carne (1967), o santista Plínio Marcos (1935-1999) era um apaixonado pelo samba e, mais precisamente, pelo samba paulista. Ainda nos primeiros anos de uma carreira iniciada em 1958, enveredou pelo formato do teatro musical em encenações como Nossa Gente, Nossa Música (1966) e Balbina de Iansã, (1970). Essa última se transformou também num disco homônimo, hoje desaparecido, com participação de sambistas paulistas como Talismã, Sílvio Modesto, Jangada e Grupo Barra Funda.
Balbina de Iansã desaguou em vários shows musicais com sambistas e, afinal, no emblemático LP Nas Quebradas do Mundaréu. Ali, Plínio apresentava três bambas do samba paulista, também esquecidos atualmente: Geraldo Filme (1927-1995), Toniquinho Batuqueiro (1929-2011) e Zeca da Casa Verde (1927-1994). Alternados com a narração de Plínio, eles cantavam sambas preciosos como “Silêncio no Bexiga” (Geraldo), “De Pirapora a Barueri” (Toniquinho) e “Brasil Recebe o Mundo de Braços Abertos” (Zeca). Atuando como narrador e agente polinizador, Plínio afirmava que “um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre” e citava escolas de samba e bambas marginalizados como Dionísio da Barra Funda, Nenê da Vila Matilde, Sinval do Cambuci, Carlão do Peruche, Pato n’Água, Vassourinha…
O início do disco é impactante. Plínio declama uma introdução loquaz e cruel sobre a cidade de São Paulo que quer retratar: “Eu conto história das quebradas do mundaréu, lá de onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos. Falo da gente que sempre pega a pior, que come da banda podre, que mora na beira do rio e quase se afoga toda vez que chove e que só berra da geral sem nunca influir no resultado. Falo dessa gente que transa pelos estreitos, escamosos e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. Falo desse povão, que apesar de tudo é generoso, apaixonado, alegre, esperançoso e crente numa existência melhor na paz de Oxalá. Quem quiser saber meu nome não precisa nem perguntar: eu me chamo Plínio Marcos, sou pagodeiro do lugar. O samba é a forma da gente minha falar dos seus mais ternos sentimentos, e é nesse embalo que eu vou. Vou contar do samba da Pauliceia e de sua gente, que é do tamanho do mundo, porque não se acanha de contar as histórias do seu pedaço de chão de terra firme”.
O discurso de Plínio e a música dos batuqueiros da Pauliceia restam perdidos nas gavetas da memória, mas ecoam pela cidade nas vozes das novas gerações. No ano passado, o rapper Ogi lançou o álbum Crônicas da Cidade Cinza (adivinhe de qual cidade ele fala), que se inicia com a reprodução exata do discurso de Plínio no início de Nas Quebradas do Mundaréu. A única intervenção acontece no trecho “eu me chamo Plínio Marcos”, quando a voz do rapper surge e sobrepõe a de Plínio transformando-a em “eu me chamo Ogi, grave este nome e as crônicas da cidade cinza”.
A partir daí, se inicia o samba-rap “Cidade com Nome de Santo”, em seguida “Profissão Perigo” (um rap sobre a vida dos motoboys paulistanos, contada por um deles) e daí por diante uma coleção de crônicas de uma cidade enfumaçada, mas ansiosa por se tornar colorida – “Noite Fria”, “Monstro Gigante”, “Tamo Aí, no Rolê”, “Eu Me Perdi na Madrugada”, “180 por Hora”.
Canta o rapper-porta-voz-motoboy de “Profissão Perigo”: “Filho do estresse paulistano, dessa cidade maluca/ mas eu já sou veterano, conheço as arapucas/ que esse gigante preparou pra nos capturar/ tem que ser profissão perigo para se salvar”.
Passaram-se 38 anos da estreia de Nas Quebradas do Mundaréu e 13 da morte de Plínio Marcos, e a cidade que ele e os batuqueiros deixaram é igual e diferente da que é hoje habitada por rappers como Ogi.
A gente que só berrava das quebradas do mundaréu sem nunca influir no resultado ganhou voz e autonomia. O próprio Ogi é prova disso, quando canta a cidade expondo as dores e diversões do motoboy, e não as do patrão, do guarda de trânsito ou do motorista.
De 1974 para cá, a lógica centro-periferia, por sua vez, só se acentuou e se agravou em favelização, cracolândia, remoções violentas. Monocêntrica, a cidade foge das periferias e se amontoa nos congestionamentos rumo ao centro, onde vivem 17,1% dos cidadãos e residem 64,1% dos empregos.
Ogi, como os sambistas de 1974, representa o outro lado do rio de que fala Mano Brown no rap “Da Ponte pra Cá” (2002), dos Racionais MC’s, sob samplers do príncipe da black music carioca Cassiano. Lá estão, em 2012, 35,9% dos empregos e assustadores 82,9% dos moradores da metrópole. Nas arapucas que o gigante preparou para nos capturar, nos engarrafamos todos juntos (e separados), os cidadãos da periferia e os do centro.
(Texto publicado originalmente no Blog H, do site PenseNovo.TV.)