CONTO DA ERA DO SUBPRIME

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foto: nana tucci

Foi mais ou menos nessa época (em que o reflexo do sol do inverno nos carros na Marginal Pinheiros cega os motoristas) que o fantasma do CEO da Berrini começou a surgir nos banheiros da empresa.



Tinha algodão nas narinas.


Tinha pó de maquiadora de estúdio de telejornal cobrindo-lhe as olheiras.


O morto usava camisa polo Tommy Hilfiger e sapatênis.


Não conseguia descansar.


Assustava os que mijavam mais ensimesmados.


Reclamava que algo tinha saído errado em seu obituário publicado no house organ, o jornalzinho interno (achava ilegítimas certas aspas de colegas e artigos de ex-chefes, ponderava que não lhe fizeram jus, que aproveitaram sua morte para fazer proselitismo).


Às vezes, tentava puxar conversa com os cagões distraídos sobre assuntos de política, mas o fantasma toda a vida errara em política (cheio de grana, ajudara a patrocinar eleições de pulhas de discursos integralistas; ladrões de colarinho com advogados que tinham sido ministros da justiça; reacionários que defendiam o extermínio em massa de gays e sapatas).


Todo mundo fugia do fantasma descontente e descontinuado (para usar um eufemismo em moda no Inferno).


O fantasma, quando carne e osso, tinha sido um chefe tirânico.


Com ele, não bastava competência: para subir, tinha de ser serviçal.


Gente muito medíocre subiu com a facilidade com que uma Ferrari desliza pelas estradas da Costa Amalfitana.


O arrivismo foi a regra.


A adulação e a cobiça faziam os olhos dos medíocres brilharem, e muitos se tornaram déspotas instantaneamente.


Houve o caso de um auditor que era dos mais eficientes na empresa, mas o cara tinha defeitos: era um sujeito que comia demais (raspava travessas de bolo de aniversário depois que a festa terminava) e cantava as office-girls.


O fantasma, quando vivo, o detestava particularmente.


Tempos atrás, o CEO o ameaçou com uma acusação de assédio sexual e o auditor demitiu-se, saindo humilhado.


O cara tentou matar-se tomando raticida, mas sobreviveu e anda por aí com a voz empastada e um sorriso imbecil no rosto.


Houve o caso de um gerente de área muito eficiente (irritantemente eficiente) que foi chamado à sala do executivo-chefe, e este lhe disse: “Seu trabalho tem sido excelente, você deu uma contribuição inestimável, seu discernimento enobrece a nossa empresa”.


Ao que o gerente de área respondeu: “Então por que está me despedindo?”


Em vida, o ectoplasma corporativo tinha sido como Galactus, o engolidor de mundos do gibi Surfista Prateado.


Mas agora era sua má consciência que se arrastava pelo chão urinado do banheiro.


Nos finais de semana, os funcionários, com medo, passaram a descer 25 andares para mijar no banheiro da lanchonete.


Não queriam papo com o fantasma, que era impassível como Bryan Ferry e esquivo e mal vestido como Edward Norton.


Nos últimos tempos, ficava na porta do banheiro, do qual não saía jamais – como um vampiro cujas incursões noturnas só vão até a porta do cemitério (já que lhe são interditados os solos sagrados).


Ignorado até pelo departamento jurídico, o ectoplasma estava ficando mais raivoso e eloquente.


Começou a berrar frases que não lhe cabiam, como a do Coronel Kurtz em Apocalypse Now:


– “Eles treinam jovens para tocar fogo em gente! Mas seus comandantes não permitem que escrevam a palavra FUCK nos seus aviões porque é obsceno”.


Um dia, parou em frente ao banheiro a faxineira Cleide.


Precisava entrar, tinha ordens expressas de entrar, mas não queria ser molestada.


Propôs um acordo ao fantasma: “Tu te calas, e eu te limpo a sebosa morada!”


Fair enough, pensou o ectoplasma.


Cleide gastou dois litros de Cândida no serviço.


Antes de sair, doida de curiosidade, voltou o corpo sobre a cintura e perguntou ao CEO, acocorado no banheiro de deficientes:


“Há organogramas no além?”


“Sim”, respondeu-lhe o fantasma.


“Faxineiras estão no topo ou no pé da pirâmide?”


e o CEO: “Não sei, mas sei que lá os CEOs estão todos dentro de uma garrafa gigante de Cândida…”

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter desde 1986 e escritor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019), Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021) e O Último Pau de Arara (Grafatório, 2021)

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