Um baile charme com Billy Paul no interior

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A estranha química que acopla, em Penedo (RJ), o cantor soul de “Me and Mrs. Jones”, a tradição carioca dos bailes black e as danças típicas da colônia finlandesa.

 

É perto de 1h da manhã de sábado (9 de junho) para domingo, e o baile charme hoje não é no Divino, nem em Madureira. Estamos em Penedo, distrito da cidade de Itatiaia, interior do Rio de Janeiro, plantado no sopé das serras hippies fluminenses-e-mineiras de Visconde de Mauá, no Vale do Paraíba, na beirada da Via Dutra. Ambivalente, fica perto do Rio (menos de 200 km), mas também de São Paulo (cerca de 250 km).

A plateia da boate Estação Penedo aguarda ansiosamente a entrada do astro da noite, mr. Billy Paul, cantor norte-americano de soul marcado no sub-estilo apelidado Philadelphia Soul. Herdeiro híbrido das variedades soul anos 1960 da Motown e da Stax, o Philly Sound vicejou nos anos 1970, trazendo influência jazzística que a Motown não chegava a explicitar, mas ao mesmo tempo diluindo o soul da década anterior em maciez, cordas aveludadas e sopros fofos que levariam pouco depois à febre discotheque.

Hoje com 78 anos, o decano Billy Paul é intérprete de um clássico da disco music, “Only the Strong Survive” (1977), mas, antes ainda, do petardo soul-jazz-funk “Me and Mrs. Jones” (1972), para sempre seu sucesso maior na terra natal. Ele entra no palco sorridente, velhinho, de terno e chapéu na estica, como se fosse um presidente de escola de samba carioca ou um organizador de baile charme do subúrbio de Madureira. Faz repetidos agradecimentos ao prefeito de Penedo (ainda que Penedo não tenha prefeito). Esquenta a banda afiada, de jeitão familiar, mistura de instrumentistas negros jovens, mulheres vocalistas tipo Harlem e, no centro do palco, uma baterista jovem, negra e mulher.

Há um fio condutor reconhecível ligando Billy ao Brasil. Nos anos 1960, a Motown já demonstrava apego pela incipiente música brasileira — Marvin Gaye e as Supremes cantavam uma ou outra bossa nova branca (carioca), Stevie Wonder vertia para o inglês a nigérrima “Sá Marina” do repertório bossa negra (carioca) de Wilson Simonal. Em 1976, Billy Paul gravou um soul peculiar, “How Good Is Your Game”, cuja introdução instrumental evocava de perto o samba-soul/samba-rock que Jorge Ben (hoje Ben Jor) fazia desde no mínimo o final da década de 1960. Falamos de culturas afrodescendentes irmãs, ainda que apartadas em hemisférios opostos.

O caso de Billy com Penedo é mais louco. Cidadela pacata deitada no pé da montanha, por onde Luiz Melodia, Baby do Brasil e Paula Toller circulam vez por outra, foi colonizada por finlandeses, que importaram para o interior fluminense hábitos de terras frias como saunas, fondues etc.

Há em Penedo, ao lado da tradicional lanchonete finlandesa da Ulla, o Clube Finlandês, onde os filhos e netos palidíssimos da colônia dançam aos sábados coreografias elaboradas, tipicamente europeus. A quadrilha é finlandesa, mas é imediatamente perceptível um vínculo sobrenatural com o charme carioquíssimo que se dança nos bailes do Rio de Janeiro, da Madureira real ao bairro fictício mais branco do que preto do Divino, da novela Avenida Brasil.

O Clube Finlandês, que Billy Paul, nem deve conhecer, toca músicas nórdicas típicas. Alguns dos bailarinos vestem, também, trajes típicos, campestres, coloridos. Mas, entre uma e outra relíquia finlandesa, se intrometem pops comerciais anglo-saxões tipo Dire Straits, Phil Collins e… Billy Paul.

Quando o DJ lança a balada branquela “Your Song” (1970), de Elton John, na gravação endiabrada, brown baby, que nosso herói de ocasião Billy inventou em 1972, a colônia finlandesa, os cariocas da gema e os forasteiros vêm inevitavelmente abaixo. Baile finlandês vira baile charme, e isso ajuda um bocado a entender o empenho de Penedo em trazer para seu colo esse artista que está aposentado do mundo do disco desde 1989, embora não tenha deixado de fazer shows e conte com uma plateia fogosa sempre à espera em apresentações no Brasil.

Curiosamente parece haver dois Billy Paul. Nos Estados Unidos ele é o cantor do black funk “Me and Mrs. Jones”. No Brasil, é o cantor da balada soul “Your Song”, que mal conhecemos na versão original, de Elton John. Ambas pertencem ao mesmo disco, emblematicamente batizado “360 Degrees of Billy Paul”.

O ingresso para o show não é caro, mas também não é barato. O público da Estação Penedo está mais para louro tipo Carminha que para negão tipo Silas. A música de espera antes da entrada do dono da noite é discoteque negra, negra, negra — até passar pelos telões um Bee Gees aqui, uma Madonna ali. Ainda que os cantores fiquem louros, a música permanece negra, antes, durante e depois da passagem de Billy. As mesas não permitem coreografias arrojadas, mas elas estão ali, implícitas tornando o ar mais leve.

E Billy ocupa o palco modesto como para mostrar a nós brasileiros que lá em sua terra as classes negras média e alta estão estabelecidas há décadas. O que estamos esperando para seguir esse exemplo?, parece perguntar, sem emitir nenhuma palavra, o cantor do polêmico hino de orgulho negro “Am I Black Enough for You?” (1972). Essa provocação ele não nos faz:  em vez de “Am I Black Enough”, chega no máximo à “Purple Rain” (1984) de um de seus herdeiros, Prince.

De terno, em foto de seu site oficialEm sua elegência demodê, Billy passa vários recados silenciosos, sobre ser negro, sair fora do carrossel insano da indústria de entretenimento, envelhecer em público, cantar com serenidade dignidade. O evento que começa como um suspiro mudo de decadência (ela está ali, é fato) evolui para o papel histórico de artistas como Billy Paul: a polinização de preconceitos, para que se dissipem em frutos menos venenosos e mais suculentos.

O homem que conseguiu boa parte de sua notabilidade pretejando canções pop branquíssimas como “Don’t Think Twice, It’s All Right” (Bob Dylan), “Mrs. Robinson” (Simon & Garfunkel), “It’s Too Late” (Carole King) e “Let ‘Em In” (Paul McCartney) é o mesmo que entretém plateias não-negras ao vivo e cuja gravação de “Your Song” (sua, nossa canção) sacode o esqueleto de descendentes nórdicos, indígenas e africanos em Penedo. Pode parecer à toa, mas não é.

 

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

 

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