Transformado em candidato a modismo pela Rede Globo, o baile black que acontece debaixo do Viaduto Negrão de Lima, na zona norte carioca, já tem 19 anos de história e tradição.

Rio de Janeiro, zona norte, bairro de Madureira. Viaduto Negrão de Lima, Espaço Cultural Rio Charme. É madrugada de sábado para domingo, hora de começar o tradicional baile charme de Madureira. Avenida Brasil, a atual novela das 21h, se passa no bairro fictício do Divino, onde acontece um baile charme — é desse ambiente e desse caldo cultural que falamos, embora tudo apareça camuflado na tela da Rede Globo.

Atravessamos a avenida Brasil real para chegar, numa viagem de cerca de 35 minutos, se não houver trânsito. Estamos num dos epicentros do movimento black da zona norte carioca, mais especificamente num bairro que já deu ao Brasil o inventor do samba-rock-soul-funk-etc., Jorge Ben Jor (à época Jorge Ben), como ele próprio nos ensinou num samba-funk de 1980: “A cegonha me deixou em Madureira/ de presente para minha mãe, Sílvia Lenheira”.

Quem nos traz é Marcello Silva, filho de Madureira, morador do eixo Rio-Nova York, entusiasta do movimento charme, líder do grupo Dughetto — no qual mistura, sem preconceitos, rap, funk batidão, charme, rock, eletrônica, pop carioca à moda de Lulu Santos, música negra do Brooklyn nova-iorquino.

O baile acontece desde 1993, segundo conta Marcello. Vestido a rigor, César Ataíde, o criador, circula e distribui panfletos do baile pela praça de alimentação improvisada pelos ambulantes embaixo do viaduto — caldo de mocotó, angu com rabada, sopa de siri, cada prato mais apetitoso que o outro. Elegante como ele só, César lembra um patrono de escola de samba, e não é à toa: em Madureira também nasceram as escolas de samba Portela, de Paulo da Portela e Paulinho da Viola, Candeia e Clara Nunes, e Império Serrano, de Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara e Elza Soares.

Mais ou menos ao ar livre, embaixo do viaduto, sem paredes que nos separem dos ônibus e carros que passam ali fora, o baile ocupa um terreno irregular, onde durante a semana funciona um estacionamento. O vendedor de CDs e DVDs do baile se divide entre filmes (Fala Tu) e discos de rap (Dexter) nacionais e as últimas novidades do rhythm’n’blues. Kanye West, 50 Cent, Alicia Keys, a poderosa indústria norte-americana de black music.

São esses os sons que tocam na festa, de resto mais ou menos hostil a brasilidades — a Portela é logo ali, mas os dois movimentos culturais não se espelham um no outro, embora ao forasteiro pareçam cara e coroa de uma mesma e valiosa moeda.

As coreografias malemolentes, elegantemente sensuais, são a grande estrela da festa. Não são como os passos ensaiadíssimos de Suelen, Darkson, Olenka, Silas e outros personagens do Divino de ficção. Em Madureira, há uma sincronia de fundo, mas a beleza do baile charme da vida real surge de certa descontinuidade, do fato de cada dançarino ostentar identidade e indumentária próprias, individuais. O todo harmônico brota das diferenças, não do ensaio marcial exibido na novela.

Avenida Brasil, por sinal, é tema controverso, ao mesmo tempo amado e odiado, nas rodas do baile charme de Madureira. “O meu lugar/ é caminho de Ogum e Iansã/ lá tem samba até de manhã/ uma ginga em cada andar”, canta outro filho de lá, Arlindo Cruz, no lírico e lindo samba “Meu Lugar” (2007), aproveitado na trilha sonora da novela. “O meu lugar tem seus mitos e seres de luz/ é bem perto de Oswaldo Cruz/ Cascadura, Vaz Lobo, Irajá/ o meu lugar/ é sorriso, é paz e prazer/ o seu nome é doce dizer:/ Madureira”.

A TV líder de audiência do Brasil, como lhe é hábito, violenta a razão e faz seu contratado Arlindo Cruz adaptar a letra de “Meu Lugar”, para caber na Avenida Brasil fictícia. “O meu lugar/ é sorriso, é paz e prazer/ o seu nome é doce dizer: é Divino”, canta, em versão globo-turbinada, o sambista-chefe do programa Esquenta, de Regina Casé, antes de tentar salvar a lógica recitando um adendo: “Bem perto de Madureira!”.

Marcello ressente-se da deturpação à mesma medida que aprecia a visibilidade indireta que a Globo confere a Madureira e ao baile charme. Gosta e desgosta da promoção compulsória. “Melhor nem falar sobre isso”, observa, diante do assunto da modestíssima presença de atores de pele negra na Madureira inventada pela Rede “não somos racistas” Globo.

A juventude dança, alheia a tais vaivéns. O que acontece ali, no duro, é ponto de união, orgulho black exposto em arranjos de cabelos, roupas e passos de charme, coletividade com individualidade. Impressos nos sons e nos gestos há a mistura: charme, funk, hip-hop, samba-rock, samba-funk, capoeira, partido alto, pagode, candomblé — por mais que a brasilidade explícita de Martinho da Vila e (por que não?) Tim Maia não seja dona do rito. O núcleo de tudo, seja como for, é identidade — identidade negra, que você não vai compreender de verdade se não pertencer ao movimento ou se não testemunhá-lo de perto, do meio, de dentro do vulcão.

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

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