Encontro marcado com Tom Jobim

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Queria colocar a ideia da fonte que seca, essa metáfora, isso nunca ficou tão claro pra mim como naquele dia do mês de dezembro de 1994, em Campinas. Eu estava almoçando em um restaurante, e voltando do balcão self-service com o prato na mão, encontrei o gerente do restaurante, que me reconhecendo, me cumprimentou, alegre, disse, levianamente, sem saber o que estava falando: então o Tom Jobim morreu…

Eu olhei pra ele sem entender, achando que era uma piada. Ele insistiu, e eu, vendo que aquilo poderia ser verdade, devo ter oscilado e empalidecido, pois ele em seguida, percebendo o meu choque, disse, não acho que não é isso, entendi errado, me confundi…

Enfim, diante da minha reação, do meu abalo, negou a notícia. Depois do almoço, chegando ao hotel, fiquei sabendo. Ele tinha morrido mesmo.

Desci para o bar, e fiquei tomando Fernet Branca com tônica. Encontrei ali com o Benito de Paula, que estava fazendo show em Campinas também. Que coisa mais insólita, eu e o Benito de Paula bebendo juntos num bar de hotel em Campinas pranteando aquele compositor que é a origem, a fonte, a raiz de tudo na música brasileira. E ainda, que coisa mais surreal, nós dois, com trabalhos tão diferentes, juntos dando entrevistas para os noticiários de TV. Com certeza, o Benito de Paula não esqueceu desse episódio.

Tive a fortuna, a felicidade, de conhecer Tom Jobim em 1982. Eu estava no Rio, e saia muito com o pessoal do Céu da Boca. O Céu da Boca fazia parte da nova cena da música popular brasileira, um grupo vocal audacioso e competente. Éramos da mesma turma, amigos, de sair junto, assistir shows, essas coisas.

Eu era especialmente do Paulinho Malagutti, vulgo Paulinho Pauleira, que havia se hospedado em casa no ano anterior, quando eles fizeram, com algum sucesso, uma temporada em São Paulo. Do grupo faziam parte, além do Paulinho Malagutti (que nome mais paulistano para um carioca!!), a Maucha Adnet, a Paula Morelembaum, a Rosa , o Chico Adnet, o Dalmo, o Ronald, mais alguns que não recordo agora…

Existia uma relação de parentesco de algum deles com o Tom Jobim. Acho que era o Paulinho Pauleira, ou a Maucha, enfim, o Tom, ele ia dar uma canção inédita para eles gravarem no próximo disco. E uma noite, eles tinha um encontro marcado com o Tom Jobim, para o dia seguinte, na casa dele, no Jardim Botânico.

Um encontro marcado com Tom Jobim, que máximo! Implorei para me deixarem ir junto! No dia seguinte, depois do almoço lá fomos nós, para a casa do Tom.

Chegamos, ele não estava, eu fiquei conversando com o Paulinho Jobim, que eu já conhecia de um Festival da Globo. Um cara muito simpático, muito agradável. Enfim, o Tom não chegava, e ficou aquela espera. Aí começou a me dar um pânico, tipo, o que é que eu estou fazendo aqui meu Deus! Isso está fora da meu alcance, que é que eu estou fazendo aqui! Me deu aquele pavor, semelhante ao pavor que deve sentir o místico diante da divindade! Estar na presença da fonte, contemplar o insondável… comecei a me sentir mal, meio nauseado, pânico mesmo!

Então ele chega, chega o Tom Jobim, enfim ele chega, ele adentra, ele irrompe na sala! Com uma estatura invulgar para músicos, ele chega, conversando com o filho pequeno, pequeno, de uns 3 anos, quase um bebê, João. A sala era espaçosa, e ao centro, um piano Yamaha 3/4 de cauda, ficava voltado para um jardim de inverno, de forma que o pianista pudesse contemplar a vegetação enquanto tocava.

A primeira coisa que ele disse, ao olhando para o jardim de inverno, foi:

– Chovendo novamente!

Achei tão poético aquilo, tão expressivo: – chovendo novamente! Fiquei imaginando ele compondo “Chovendo na roseira”.

Apesar disso, meu pânico continuava. Fiquei sentado tentando me camuflar em almofada do sofá, sumir, derreter… Havia uma garrafa de Dimple’s sobre o piano, mas ele não ofereceu pra nenhum de nós, crianças… Então ele conversou com o pessoal todo, com alguma intimidade, enfim, foi pro piano e mostrou Borzeguim.

Ficou comentando a música, a letra, era inacreditável estar ali, ouvindo uma canção inédita do Tom, e ainda com ele comentando. Com ele dizendo pro pessoal do Céu da Boca, como achava que poderia ser o arranjo, sugerindo coisas, etc..

E, entre um gole de uísque e outro, ele sugeriu um arranjo só com piano e percussão. Eu já havia conseguido me acalmar o suficiente, para pela primeira vez me dirigir a ele, falando, vocês sabem de quem? Imaginem vocês, falando de Bela Bartok!

Comentei que piano e percussão oferecia muitas possibilidades, e falei da sonata para dois pianos e percussão de Bela Bartok … Quando eu falei isso ele prestou atenção em mim: “…ah você conhece o Bela Bartok, esse era grande, sabe que eu fui visitar o apartamento dele em Nova Iorque? Aí eu perdi as esperanças de fazer música erudita, quando eu vi o apartamento onde ele viveu e morreu…”

Que revelação!

Eu havia levado o LP Clara Crocodilo, e um compacto simples com a Tete Espindola cantando Londrina e Cancão dos vaga-lumes, para dar pro Tom. Ia deixar ali, sem saber se ele iria ouvir ou não. Mas como senti uma receptividade dele, resolvi arriscar e perguntei se podia mostra umas músicas pra ele. Nessa hora, o Paulinho Jobim, deu a maior força, e o Tom concordou.

Coloquei no toca-discos o LP Clara Crocodilo, e mostrei primeiro Infortunio, e depois uns trechos de outras coisas…

Ele comentou: “mas isso é muito diferente do que se faz aí…”

Quer dizer, eu não sabia se ele estava gostando ou não, porque a música tinha um influência forte do rock, então, era uma proposta estética bem diferente, agressiva, urbana. Mas ele ouvia com ouvidos de músico, tentando entender o que se passava musicalmente. Quando eu falei de séries dodecafônicas, seu olhar mudou, como se tivesse conseguido encontrar o sentido daquilo que estava ouvindo “… ah, é isso!”

Aí coloquei o compacto com a Tete cantando Londrina. Ele ouviu atentamente. Quando terminou, ele perguntou:

– Posso ouvir de novo? (esse foi o maior elogio que recebi em toda minha vida!)

Eu falei: claro mestre, e coloquei a agulha de volta no começo.

Quando a música terminou, ele pediu: você pode me dar esse disquinho?

Bom, aquilo me deixou tão contente, vocês podem imaginar!

Daí ele perguntou se eu havia feito a música porque era de Londrina, e eu confirmei.

E ele: então você é um paranaense!

Depois disso, sempre que eu o encontrava, ele dizia rindo: Arrigo, você é do Paraná, não é? De Londrina!

* Texto originalmente publicado na coluna “Questões Musicais” do site da Revista Piauí no dia 12 de maio de 2012

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