Lupicínio Rodrigues: a fenomenologia da cornitude

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Quarto entre polifônicos 21 irmãos, o menino nasceu em 16 de setembro, no número 97 da travessa Batista, bairro da Ilhota, Porto Alegre, sob o signo de virgem. Corria o ano de 1914. O nome Lupiscínio (com SC) foi ideia do pai, homenagem a um general que teria sido dos primeiros heróis da também nascente Primeira Guerra Mundial. Isso é o que dizem as biografias oficiais de Lupi.

Mas, fala a verdade: alguém aí sabe quem é esse Lupiscínio herói de guerra? Dúvidas chovem às pencas com relação ao que é verdade e o que é lenda na vida do nosso personagem. Aqui não é diferente.

Também – dizem – chovia a cântaros no dia em que ele veio ao mundo. Coincidentemente  – ou não –, 60 anos depois, choveria no dia de sua morte. Mas em 16 de setembro de 1914, pra não fugir à sua sina, a Ilhota estava inundada: a hoje extinta quase-ilha era formada pelas voltas de um arroio com justiça batizado de… Dilúvio (hoje canalizado em linha reta). A parteira teve de ser trazida de barco para atender dona Abigail.

A João Alfredo ainda era água. Bairro da Ilhota, década de 1930

Habitada basicamente por negros e mulatos descendentes de escravos, a Ilhota era um bairro festeiro, num perfil muito semelhante, na época, ao da Cidade Baixa e da Colônia Africana (situada onde são hoje o Bom Fim e o Rio Branco). Hoje próximas, eram então arrabaldes da cidade. Nesse momento, a exemplo do Rio de Janeiro, os pobres vinham sendo empurrados do Centro sob o pretexto de uma reforma urbana.

A Cidade Baixa e a Ilhota, em particular, eram conhecidas no início do século XX como O Reduto dos Seresteiros – e é curioso constatar que, 100 anos depois, a mesma zona retomaria a predileção da juventude boêmia da cidade. O que os boêmios e seresteiros de então tocavam é um tema e tanto. A se confiar nas centenas de discos gravados na capital na década de 1910 (pela Casa A Electrica e pela Casa Hartlieb), o pessoal ia de polca, choro, valsas e modinhas. Sambas, maxixes ou batucadas eram raríssimos (mas há que se fazer a ressalva de que ninguém dessa cena periférica e negra foi chamado pra essas gravações).

Esse era o traçado do riacho, antes de canalizarem e acabarem com a Ilhota. O traçado reto é como ficou

O que se sabe é que, um ano antes do nascimento de Lupicínio, a dupla gaúcha Os Geraldos já havia levado ao disco alguns sambas. Mas eles moravam então no Rio, e podem ter aprendido o gênero lá. Ou seja: não há como saber se já se fazia samba na Porto Alegre de 1914.

Mas das formações instrumentais, sim, se sabe: violões e cavaquinhos. Instrumentos tocados por vários membros da família Rodrigues: pai, tios, tias, todo mundo cantava ou tocava.

Eram os anos em que nomes como Radamés GnattaliDante Santoro começavam a despontar no cenário local. Anos em que quem mandava no pedaço era o compositor, professor, carnavalesco, teatrólogo e multi-instrumentista Octavio Dutra. Todo um pessoal “de bem” – não necessariamente endinheirado, mas que orbitava num cenário muito distante do cotidiano dos Rodrigues.

Se alguém ali naquela cena quase presépica dissesse que o recém-nascido daria pra música, teria a concordância geral: todos ali davam. Mas certamente provocaria risos e olhares de estranheza quem sonhasse profetizar que, dali a 40 anos, esse menino pobre e negro seria apontado como um dos nomes mais significativos da história da música brasileira.

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Um compositor com conceito e estética muito peculiares.

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Noel Rosa, Orestes Barbosa e Chico Buarque escreveram brilhantes canções sobre o descorno.

Mas ninguém soube expressar como Lupicínio a mais acachapante e abjeta cornitude.

Cartola e Nelson Cavaquinho foram mestres do samba-canção.

Mas nenhum misturou tão bem o gênero a elementos musicais e poéticos do bolero e do tango.

Aldir Blanc soube cantar o band-aid no calcanhar ou a surra dada na mulher por causa da frustração de um gol anulado. Sem medo do grotesco.

Mas nem ele teria a coragem de escrever um depoimento tão bizarro quanto o de “Sozinha”:

“Vivia sozinha num ranchinho velho feito de sopapo. Seu rádio de noite era um canto de sapo, sua cama uma esteira estendida no chão, sua refeição era um bocado de charque e farinha e nem pra comer a coitada não tinha sequer um café, um pedaço de pão.

“Levei pro meu sítio, troquei por cetim os seus trapos de chita, e só pra marvada se ver mais bonita pus luz em seu quarto em vez de candeeiro.

“E, só por dinheiro, sabe o que fez essa ingrata mulher?

“Fugiu…

“…com o doutor que eu mesmo chamei e paguei pra curar os seus bicho-de-pé”.

(A canção poderia terminar aí e já seria um chute na testa. Mas, como bem notou Tárik de Souza em O Som Nosso da Cada Dia, Lupicínio ainda arma uma jogada de mestre para arrematar a narrativa: troca o narrador e se coloca na pele de um novo personagem, aquele que escuta o depoimento. E, como cereja do bolo, ainda arremata a estória com uma rima interna de rara felicidade):

“Assim me falou um pobre matuto, coitado.

“Chorando em seu desespero foi me ensinando que, em todo lugar, mulher sempre é mulher: se pede uma flor e a gente lhe dá, ela exige uma estrela.

“E se, por acaso, ela não obtê-la…

“…se vai com o primeiro homem que lhe der”.

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Desde cedo o menino ajudou em casa. Vendia pastéis e balas, fazia uns bicos como moleque de recados (“mandalete”, o boy da época) e chegou até a uma fábrica de parafusos. Ainda assim, contava, teve uma infância feliz: “Por ser o primeiro filho homem, me criei como a criança mais mimada da família”.

Dona Bêga lavava pra fora e seu Francisco trabalhava na portaria da Escola de Comércio. O pai de Lupicínio crescera como agregado do desembargador André da Rocha, que não só lhe pagou os estudos como ainda conseguiu-lhe esse emprego (há quem insinue que a relação de Francisco com André teria laços sanguíneos).

Por isso, ao contrário do que acontecia com a maioria de seus vizinhos, Lupi estudou em bons colégios. Além disso, moravam numa casa simples, mas bem grande – afinal, tinha de caber 21 rebentos! –, com um galpão e uma imensa parreira no fundo do quintal.

Aos 12 anos, sempre distraído, completou o primário fazendo música e jogando bola. Preocupado, o pai o matricula num curso profissionalizante de mecânico da escola Parobé, de onde sai pra estagiar como aprendiz nas oficinas de bondes da hoje centenária empresa de transporte Carris. O problema é que, a se acreditar nos depoimentos de contemporâneos, aos 13 anos ele já era bom de bola, de copo, de samba, de mulher e de boemia.

E já cantava. Numa bandinha fuleira, apelidada Banda Furiosa, que no carnaval mudava de nome para Bloco do Moleza (anos depois, diria: “Acho que é por isso que até hoje eu canto tão mal”). Detalhe: o grupo era formado por músicos que tinham, todos, pelo menos 20 anos a mais que ele.

Perto de mais uma festa de Momo, o bloco decide que precisa de uma música-tema. E lá vai estrear, aos 13 anos, o compositor Lupicínio Rodrigues. A marchinha se chama, ora veja, “Carnaval”. E estamos em 1927, quando a festa da Ilhota era referência de animação e participação, bem diferente do espetáculo contido apresentado no centro da cidade.

Logo seus dotes vocais se mostram nem tão limitados assim, e o recém-adolescente é contratado como crooner do Conjunto Catão, bem mais prestigiado que a Furiosa. Foi aí que o pai sentiu que a coisa era séria. Sua primeira e desesperada medida para tirá-lo dessa vida  –  antes que fosse tarde – foi alterar sua data de nascimento. De 15, Lupicínio pulou para 18 anos, sendo imediatamente enfiado como “voluntário” no 7° Batalhão de Caçadores do Exército.

A partir daí começa uma grande confusão entre os que se dispuseram a contar sua vida – incluindo o próprio Lupi e seu biógrafo oficial, Demosthenes Gonzalez. Todos discordam em vários pontos com relação aos próximos cinco anos. Mas tentemos montar um quebra-cabeça de datas e fatos. Juntando as peças e eliminando algumas contradições, é bem possível que a ordem dos acontecimentos seja a que vem a seguir.

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O primeiro ato abre em 1932, com o rapazote, vestido de soldado raso, assistindo maravilhado a um show dos Ases do Samba, no Cine Theatro Imperial. Com ele, um amigão catarinense, colega de quartel, chamado Reinoldo Corrêa de Oliveira – o futuro Nuno Roland que, anos mais tarde, faria fama como cantor no Rio de Janeiro.

Os tais Ases eram ninguém menos que Noel Rosa, Francisco Alves, Mário Reis, o pianista Nonô e o bandolinista gaúcho Pery Cunha, reunidos especialmente para essa excursão ao Sul. Mesmo já decididos a seguir carreira na música, Lupi e Nuno não têm coragem de puxar conversa com os famosões depois do espetáculo.

 

Os Ases do Samba no navio Itaquera, rumo ao sul: Pery Cunha, Mário Reis, Francisco Alves, Noel Rosa e Nonô. O carinha de pé ninguém sabe quem é

Mas o destino é um bicho curioso. Horas depois, a dupla está num boteco, fazendo música com os amigos. E aí quem entra porta adentro? Isso mesmo: os Ases do Samba.

Acabam todos confraternizando, e Lupicínio canta algumas de suas canções. É quando um deles, só quatro anos mais velho, mas infinitamente mais famoso e prestigiado, decreta: “Esse garoto é bom, esse garoto vai longe!”. Nome do cara? Noel Rosa.

Já tava de bom tamanho.

Mas concordaram com ele, imediatamente, outras duas figuras que seriam importantíssimas para o mulatinho: Mário Reis, sua maior referência vocal (Lupi: “Eu imitava muito o Mário Reis”). E Francisco Alves – que, décadas mais tarde, seria o responsável pelos seus primeiros grandes sucessos.

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Intervalo para o segundo ato.

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Pra ouvir “Sozinha”, na gravação clássica (e de uma desgraceira de dar dó) do Jamelão:

 

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Na próxima coluna, Lupi vai parar em Santa Maria, descobre o amor e o descorno, volta pra Porto Alegre e encontra Alcides Gonçalves.

(Arthur de Faria, gaúcho de Porto Alegre, é pianista, compositor, produtor musical, arranjador e jornalista. Desde outubro de 2011, vem publicando em capítulos seu livro Uma História da Música de Porto Alegre, no site Sul21.)

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