Dona Cauby ficou solteira?

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1865

Quando virou farol, no final dos anos 1950, a voz de João Gilberto promoveu, além da bossa nova, uma legião de cadáveres musicais insepultos. De repente, cantar com vozeirão de quebrar cristal não era mais algo desejável, aceitável, tolerável. Os intérpretes em estilo voz de trovão foram engavetados em segundo plano, para ali morar pelas décadas afora. Cauby Peixoto era um entre muitos.

Tantos anos depois, a entidade João completou 80 anos e já é, ela própria, algo meio espectral. Mas, surpresa!, Cauby também está vivo, vivíssimo, e com o mesmo vozeirão de sempre. Quatro meses mais velho que o papa da bossa nova, já completou 81. Embora frequentamente Cauby nos pareça avô ou pai de João, são irmãos, ambos filhos de 1931.

Enquanto João segue silencioso, o avô que não era pai lançou no finalzinho do ano passado, pelo selo independente Lua Discos, um pacote triplo de gravações inéditas, batizado O Mito — 60 Anos de Música, com um CD ao vivo, outro com regravações de MPB, um terceiro só de Beatles cantados caubyanamente em inglês. E o quixotesco selo Discobertas volta agora agora à carga de manter acesa a chama de Cauby, com duas caixinhas de seis CDs cada, que recuperam parte substancial da discografia do intérprete entre 1968 e 1995.

O círculo se fecha: ainda que cantar como Cauby tenha saído de moda há décadas, ele é aquele cara que continua vivo, vivinho, vivíssimo, para nos lembrar vez por outra que cantar joãogilbertamente ou chicocaetanamente não é a única coisa que existe no lado debaixo do Equador.

Começar a ouvir a caixa Cauby!… Vol. 1 é tarefa penosa, não só porque nossos ouvidos há muito se desacostumaram daquele padrão, mas também porque a recuperação operada pelo Discobertas no caso dos discos dos anos 1960 é precária. Chiados e zumbidos se intrometem na voz cristalina de Cauby, como se velhos e empoeirados discos de vinil tivessem simplesmente sido copiados numa mídia “nova”. Escapam do massacre, aqui, os dois últimos volumes, Superstar, de 1972, e Cauby, de 1976, provavelmente porque já haviam sido recuperados para CD, respectivamente, pela EMI e pela Som Livre.

A década de 1970 parece ter sido penosa para o próprio Cauby. Os discos lançados nessa década (que incluem o Cauby de 1979, primeiro volume da caixa …Cauby! Vol. 2) fotografam o cantante tentando se adaptar aos tempos a todo custo. Em parte, um homem à procura de um estilo (ou melhor, de muitos, de todos). Em parte, o Cauby de sempre.

O viés que soa mais desconcertante (e interessante) é o da procura de Cauby pelos equivalentes setentistas de seu romantismo atávico. Grava Roberto e Erasmo Carlos (“Detalhes”) e José Augusto (“Meu Filho”), em 1972. Extirpa o samba das entranhas do samba, abolerando sucessos de Alcione (“O Surdo”) e Agepê (“Perdão Mangueira”), em 1976. Cai no sambão joia, impuro, de Benito di Paula (“Velas ao Vento”), Luiz Ayrão (“Amor Dividido”) e Wando (“Gosto de Maçã”), em 1979. Nesse mesmo LP, recria, em versões 100% Cauby, dois hits discotheque, “MacArthur Park” (cantado por Donna Summer) e “Just the Way You Are” (por Barry White). Moderno, daquele modo que João jamais quereria ser.

Na década de 1980, Cauby se joga nos braços da MPB da geração heroica dos anos 1960 — “sofistica-se”, diriam os arautos do elitismo musical brasileiro. Em Cauby! Cauby! (1980), Estrelas Solitárias (1982) e Cauby! (1986), interpreta canções que foram (ou parecem ter sido) feitas especialmente para ele, de Antonio Carlos Jobim (“Oficina”), Caetano Veloso (“Cauby! Cauby!”), Fagner (“Tortura”), Gonzaguinha (“Estrelas Solitárias”), Ivan Lins (“História de Amor”), Marcos Valle (“Vou Enlouquecer”), Moraes Moreira (“Solidão Nunca Mais”), Roberto e Erasmo (“Brigas de Amor”), Sueli Costa (“Eterno Rouxinol”)…

Desta vez, o ponto mais interessante (e desconcertante) é que a chegança à MPB faz Cauby se aproximar, em música, da própria sexualidade. Aquilo que todo mundo sabe, mas ninguém quer (ou pode, ou podia) falar aparece de modo concreto. Acontece sobretudo em “Bastidores” (1980), que Chico Buarque não fez para Cauby, mas da qual Cauby se apossou para transformar modo menor em modo maior e para tornar a canção definitivamente sua. “Cantei, cantei, jamais cantei tão lindo assim/ e os homens lá pedindo bis/ bêbados e febris, a se rasgar por mim”, bradou um Cauby desbragada, maravilhosamente gay.

A sexualidade (no mínimo) embaralhada é uma constante dessa fase, quando o rouxinol de 1956 se arremete ao futuro cantando Caetano ou Fagner ou Gonzaguinha ou o histórico Paulo Vanzolini (“Ronda”, regravada em primeira pessoa feminina) ou o bossanovista (também homossexual) Johnny Alf (“Gesto Final”) ou, idem, Eduardo Dussek (“Não Explique”).

Mas nenhuma canção erguida por Cauby jamais foi tão explícita e transparente como a obscura “Dona Culpa” (1980), composta para ele por Jorge Ben (hoje Ben Jor) e interpretada em duo por ambos. “Dona culpa ficou solteira/ pois ninguém quis casar com ela”, cantam os rouxinóis oitentistas em tempos de abertura política, para nos perguntarmos se “dona Culpa” era Cauby em pessoa, ou se dona Cauby ficou solteira por culpa pela sexualidade dissidente, enquanto João Gilberto casava e casava e casava e casava conosco.

O samba-rock-bolero segue com mais versos divertidos e uma menção amorosa de Jorge a “certos homens incertos” (certamente Cauby seria um deles, não?). Então vem o trecho confessional que realmente desconcerta, pela sincronia entre transparência e humildade. “A minha geração não encontrou a esperada saída/ talvez a de vocês, com sorte, encontre ainda”, declina o veterano Cauby, trocando a pronúncia de “você” por “voxê”, em homenagem ao modo como o negro Jorge Ben cantava em 1963. Saída? Do armário? Não é possível ser mais direto, sincero e certeiro que isso, é?

Depois desse (des)acerto de contas com dona culpa, Cauby estava pronto para a linda foto rebelde-crepuscular do disco de 1982, e para seguir vivendo anos e anos e anos em gostosa e movimentadíssima aposentadoria.

Em 2012, enquanto seu Peixoto vaga vivíssimo por aí, podemos reouvir “Dona Culpa” e perguntar para nossos botões: será que nossa geração, nossas gerações, conseguiram-conseguem-conseguirão encontrar as esperadas saídas-soluções?

 

Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil

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