Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

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Depois de muito temer a sombra descomunal da mãe, Maria Rita decidiu: vai encarar de frente o repertório de Elis Regina (1945-1982), a mais importante intérprete brasileira de música-misturada-com-política (e vice-versa), com quem pôde conviver menos de 5 anos.

Você certamente ouvirá falar muito desse show nos próximos dias. Ele provavelmente estará nas agendas de todas as grandes e pequenas publicações do país. FAROFAFÁ encontra-se sem tempo para explicar os meandros do maquinário industrial, e resolveu tomar um atalho.

 

 

Maria Rita - Foto Vicente de Paulo (divulgação)

O que se segue abaixo é uma entrevista com João Marcello Bôscoli, meio-irmão de Maria Rita, filho mais velho de Elis e idealizador do projeto. Ele fala sobre Maria Rita, Elis Regina, Chico Buarque, indústria musical, pirataria, direitos autorais, Lei Rouanet, Ministério da Cultura etc. Tudo se interliga pela eletricidade do fio condutor chamado Elis, e tenho certeza de que você acompanhará a meada entre todos esses assuntos (só) aparentemente díspares.

João Marcello Bôscoli: Tive a sorte de conviver 11 anos com ela. Se pudesse pegar esses 11 anos, eu abriria mão de uma parte desse tempo para dar para os meus irmãos (além da caçula Maria Rita, Elis teve o também cantor Pedro Mariano). Eu gostaria que tivéssemos todos convivido mais. Mas isso não é possível.

Pedro Alexandre Sanches: Por que você e Maria Rita decidiram encarar juntos, agora, a empreitada de abordar a obra de Elis Regina?

JMB: A ideia de Maria Rita cantar Elis foi uma conversa minha e dela, que disse: “Pô, eu quero homenagear a minha mãe, o que eu posso fazer?”. Francamente, quando foi chegando perto dessa efeméride, dessa data fechada de 30 anos da morte dela, isso foi vindo de fora para dentro, incentivado pelas pessoas ao redor.

PAS: Já ouvi você dizer que, depois dos 40 anos, você gostaria de se dedicar mais profundamente a preservar a memória de sua mãe.

JMB: É, eu já fiz coisas, né? O primeiro DVD de Elis foi a Trama que lançou, já lancei três discos, agora vou remixar mais três álbuns dela, os de 1970, 1971 e 1972. Já chegaram aqui, a Universal mandou para mim. Quando acabar a exposição, quero pegar todo o material de televisão que nós formatamos e transformar em DVD, deixar à disposição das pessoas. Claro, na internet já está, e nunca, nunca, nunca tivemos nada contra isso, pelo contrário. Fiquei muito feliz, confesso, tirou um piano das minhas costas tirar uma noção equivocada de fãs leigos, durante muito tempo, de que eu tinha todo o acervo da Elis na minha casa, e se eles não tinham acesso era porque eu guardava. Não é isso. Pelo contrário.

PAS: Posso deduzir disso que você, como filho, herdeiro etc., não se opõe à pirataria da obra da sua mãe?

 

João Marcello Bôscoli - Foto Rogério Alonso (divulgação)

 

JMB: Pode. Mas eu não considero pirataria, entende? A partir do momento que você não tem um determinado documento que existe à disposição para ser comprado, e há um desejo das pessoas de entrar em contato com essa obra, eu, como filho, só posso ficar contente de isso tudo estar disponível no YouTube, por exemplo. Para mim é fundamental, o YouTube tem um papel muito grande na restauração da memória da Elis. E é algo que é totalmente colaborativo, não é algo que passe pela minha anuência.

PAS: Você, como herdeiro, não processaria ninguém por fazer isso?

JMB: Não! Ô, Pedro (espantado)!

PAS: Estou perguntando porque a ministra da Cultura do Brasil disse ontem que não se pode fazer isso na internet.

JMB: Mas a ministra está no papel da ministra, eu estou no papel de filho da Elis. Eu tenho que correr para criar uma opção. Toda vez que lançamos algum projeto da Elis, vendeu muito, sempre. Não quero entrar nessa discussão, mas dar de graça conteúdo para depois vender é uma mecânica que a indústria fonográfica sempre adotou, desde o nascimento até o seu auge.

 

PAS: Na gravadora Trama, você militou muito pela modernização desses conceitos.

JMB: Sim. Mas esquece de nós, antes de nós existirmos. Quando pego um artista de uma gravadora e mando para uma rádio onde as pessoas podem ouvir de graça, e até copiar e gravar seu cassete em casa, como já fiz diversas vezes quando era moleque, você está dando o conteúdo de graça para depois a pessoa se interessar em comprar. O que a internet fez foi colocar isso numa escala maior. Mas, pô, não tinha imagem da Elis, tem coisas que conheci pela internet! Isso não é pirataria. Pirataria, para mim, é o cara montar um site e vender coisas da Elis. Isso é pirataria. Ou o cara queimar 100 mil DVDs e vender. Isso é pirataria, tecnicamente falando.

PAS: A essa você se oporia?

JMB: Cara… Eu sou um cara legalista. Sim, isso é pirataria e eu sou contra. Estão ganhando dinheiro e não estão remunerando as pessoas de direito.

PAS: Este é um projeto grande com patrocínio pela Lei Rouanet?

JMB: Não, não é Lei Rouanet. É dinheiro de comunicação. A exposição e os shows são com dinheiro de comunicação.

PAS: João, não entendo anda disso, o que é dinheiro de comunicação?

JMB: É dinheiro de propaganda, o cara tem uma verba publicitária.

PAS: Empresa privada, você quer dizer?

JMB: Empresa privada, que não usa esse artifício da Lei Rouanet. Nós entramos com pedido no MinC, fomos autorizados a captar, mas decidimos não usar conversando com a (empresa patrocinadora) Nívea, diante da maneira conflituosa e algumas vezes equivocada com que esse processo de Lei Rouanet é visto. Todos os grandes países do mundo têm esse tipo de ferramenta de sustentação. Empresas aéreas têm isenção fiscal, você trabalha num setor que tem isenção fiscal. Claro, eu não posso pegar um mau exemplo de alguém que pega um dinheiro e não faz, ou faz equivocado, ou superfatura, e usar como uma regra. Sendo usado de maneira correta, acho uma ferramente importante.

PAS: A mídia pega casos politicamente e pode destruir reputações por conta disso.

JMB: Exatamente. Eu fiquei preocupado. Quando a sua amiga Veja publicou…

PAS: Minha amiga, não, alto lá (risos).

JMB: Eu sei, falei brincando. Pedro, ironia! Quando li lá na Veja: “Elis Regina capta R$ 10 milhões”… Não era eu, era o conjunto de iniciativas. Caramba, cara, eu não quero que isso vire a pauta do projeto. Se dá certo, isso pode obstruir a pauta, né? Eu não queria. O que tem Lei Rouanet é o livro e o documentário. Tudo isso é de graça: a exposição, a entrada para os cinco shows em praça pública. O livro será distribuído para faculdades e bibliotecas públicas, serão 5 mil exemplares.

PAS: O livro sai agora?

JMB: Sai este ano. Não quero fazer tudo ao mesmo tempo, meu objetivo é sempre ter alguma novidade, alguma coisinha. A (jornalistaRegina Echeverria, por exemplo, relançou o livro dela (Furacão Elis, de 1985), e tem outras iniciativas, um longa-metragem que Hugo Prata me procurou para fazer junto com Luiz Carlos Barreto.

PAS: Vai acontecer?

JMB: Da minha parte, sim. Eu e Maria Rita autorizamos, parece que o Pedro também, achou legal. Tem uns produtores teatrais que querem fazer um musical, eu acho bacana. Sinceramente, eu espero que essa iniciativa inspire outra. Temos Elizeth CardosoMario Reis, Sylvia Telles, Clara Nunes, Nara Leão, Jorge Goulart, que morreu recentemente – uma lista extensa de artistas. É algo que deve ser feito permanentemente.

PAS: Muitos herdeiros travam esses processos.

JMB: É, nós não temos essa postura. Mas essa discussão só vai avançar se houver uma pressão, né? Quando Ruy Castro faz um livro e o livro é embargado, quando alguém faz um livro sobre Roberto Carlos e o livro é embargado, isso tudo… Primeiro que o livro já existe, e se existe está na internet, e é difícil segurar essa Biblioteca de Alexandria que está aí. Isso gera uma discussão, estamos falando disso agora, acho necessário revisar essa lei em algum momento. Nos Estados Unidos isso funciona muito bem, se cada livro que foi escrito sobre Elvis Presley criando e sustentando teorias de que ele está vivo fosse passar pelo crivo da família dele, talvez não tivesse saído. É aquela frase de um dos primeiros presidentes americanos, não sei qual: prefiro uma imprensa sem governo que um governo sem imprensa. Muitas pessoas têm ressalvas ao livro da Regina Echeverria, mas eu nunca…

PAS: Inclusive você, não?

JMB: Cara, cada vez menos, viu? Eu fui muito envolvido, quando adolescente, pelo entorno. Muitas das pessoas que deram entrevista a ela reclamaram. E eu achava aquilo o fim da picada. Mas, independentemente disso, vamos manter assim. Nunca tivemos uma iniciativa de ir atrás ou tentar fazer nada contra o livro.

PAS: Seja como for, é o único documento literário feito mais ou menos no calor da hora que temos.

JMB: Sim, e ela própria escreve no livro: “Esta é a minha versão, façam outras”. Eu tenho essa postura. Para qualquer coisa que quiserem fazer sobre Elis, evidentemente temos direito como herdeiros a opinar, mas é um direito que eu não exerço. Só quero que fique claro para as pessoas o seguinte: eu não estou envolvido nisso (ri). Ou: eu estou envolvido nisso. Mas daí a tomar posição policial? A mãe é minha, mas a Elis é nacional. Cada um tem uma visão, você escreve na internet, desce para ver os comentários.

PAS: Não sei se você viu uma reportagem que escrevi no Estadão recentemente, sobre o fato de o Chico Buarque vetar quaisquer reencenações ou reedições comerciais de Roda Viva.

JMB: Não, não vi, é mesmo?

PAS: Ele diz que não vê qualidade artística na peça. Qual é sua opinião sobre isso?

JMB: Aí é um pouco diferente. Veja bem o que vou dizer, não quero ser malcompreendido: é uma obra dele. É uma postura próxima à que João Gilberto tem com algumas coisas dele, né? Não compreendo também, ele dizer que não tem qualidade. Mas é uma obra dele. Tem gente que fala: quando você acaba uma música, ela é do mundo. Mas tem gente que não. Nunca tive essa relação com nada que eu fizesse. Tenho um monte de fotos na internet que estou com um cabelo que falo “caceta!”. Queria que a foto não existisse.

PAS: (Risos) Quem mandou ter o cabelo?

JMB: O que eu vou fazer, né? Quem mandou colocar a calça embaixo do sovaco um dia? É a vida.

PAS: Mas tenho evidências fortes para crer que Chico pediu minha cabeça ao Estadão por ter publicado essa notícia.

JMB: Sério?

PAS: Eu tinha recém-começado uma colaboração lá e não pude mais escrever depois disso, e um editor do jornal me afirmou que o assessor de imprensa dele “fez um escarcéu”. Não sei se sou flor que se cheire, mas aquela reportagem não tinha nada de incorreto.

JMB: Cara, desculpa eu apelar para Hollywood agora, você viu o filme sobre o fundador da (revista erótica) Hustler? Era o Woody Harrison, a Courtney Love fez o papel da esposa (não conseguimos lembrar o nome)? Tem um momento em que o Edward Norton, que faz o papel do advogado, fala: “Gente, eu não gosto do material da Hudtler, acho de extremo mau gosto, mas é o preço da liberdade”. O preço da liberdade é ter um cara que diz que não é flor que se cheire escrevendo o que quiser. Senão é uma liberdade parcial. Que se escreva uma outra reportagem detonando a sua, e que você responda, e tenha réplica, tréplica… Fico surpreso de ouvir isso, para mim não orna com um cara como o Chico Buarque, com a formação intelectual que ele tem, vindo de onde ele veio. Tenho dificuldade de acreditar nisso.

PAS: O projeto Elis custa R$ 10 milhões?

JMB: Não, cara, R$ 10 milhões era a soma de todos os projetos envolvendo Elis que tinham pedido Lei Rouanet no MinC. Nem todos nossos, o nosso projeto original era de R$ 5 milhões. Foi publicado no Diário Oficial, é um número aberto. Só que, depois que a gente fechou, a gente refez todas as coisas. Eu não posso lhe dizer o valor total do projeto, fora os dois que são pela lei, porque é uma verba de marketing da Nívea.

PAS: A Nívea é patrocinadora única?

JMB: É. E, sinceramente, é quem permite que tudo isso seja dado de graça. Acredito nesse modelo, não é de hoje, de você dar de graça para o público viabilizado por um patrocinador.

PAS: Seria um mecenato bom?

JMB: Eu creio que sim. Se não fossem os patrocínios, não haveria campeonato de futebol, revistas, Olimpíada, uma série de iniciativas que existem por causa disso. Conheço um monte de gente que não gosta de futebol, mas não conheço ninguém que não goste de música. É uma paixão humana, e precisa de apoio, mas é um apoio muito pequeno perto do que pode ser. Então é um modelo em que acredito. E é dinheiro de propaganda, a gente podia fazer tudo isso e cobrar ingresso. Se o foco fosse financeiro, para valer, cobraríamos R$ 10 o ingresso para e exposição, R$ 30 pelo show da Maria Rita. A prefeitura de São Paulo está esperando  100 mil pessoas, se custasse R$ 10 o ingresso daria faturamento de R$ 1 milhão.

PAS: Qual é o dinheiro de Lei Rouanet?

JMB: São quatro iniciativas. Os shows e a exposições em cinco cidades, que são o maior peso, é dinheiro de comunicação, o que o mercado chama, não sei por quê, de dinheiro bom.

PAS: É a parte que não envolve isenção fiscal nem, portanto, dinheiro público.

JMB: Nada, é dinheiro de propaganda. As duas iniciativas que estão na lei são o livro e o documentário que passa na exposição. É a parte mais barata, bem mais barata, são menos de R$ 200 mil cada um. E não vão ser vendidos, é importante lembrar.

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