São muitas as razões a colocar o Pará na vanguarda da produção musical brasileira neste início de século 21, mas uma delas é especial. Em Belém, torna-se nítido: desmoronaram de vez as barreiras artificiais que por décadas tiranizaram artistas, espectadores e intermediários (como nós, jornalistas), separando tudo em dois grupos imaginários supostamente incompatíveis, o dos “cafonas” e o dos “não-cafonas”.
Gaby Amarantos e o tecnobrega são, como de praxe, a ponta do iceberg. Mas é muito mais vasto o bloco de gelo (ou melhor, de fogo) que está levando o Titanic do preconceito à deriva.
Os quatro dias de programação do festival Conexão Vivo Belém, entre 27 e 30 de outubro, deixaram evidente que na música do Pará são plenamente difusos os limites que separam (ou melhor, não separam) MPB, rock, música erudita, lambada, pop, tecnobrega, jazz, carimbó, blues, rap, calipso, reggae, samba, soul, choro, música caipira e sertaneja, transe indígena, marabaixo etc. etc. etc.
Acima de tudo, não existe mais aquela fossa funda que isolava gêneros como a chamada MPB num castelinho preocupado em menosprezar e espezinhar todas as formas que não caibam em seus parâmetros estreitos. Basta lembrar que a sigla MPB teve origem em círculos universitários nos anos 1960, para se remeter à “música popular brasileira”, enquanto excluía progressivamente tudo que fosse MAIS popular que ela: samba, canção romântica, bolero, sertanejo, pagode, axé, rap, funk carioca, tecnobrega etc. etc.
Gaby vem na frente detonando a segregação, num poupurri de “bregas” antigos e recém-saídos do forno (caso de “Xirley”, com o refrão matreiro “eu vou samplear/ eu vou te roubar”). É música mais-que-popular paraense, mas há muito mais lava embaixo da boca desse vulcão.
O despreconceito paraense vem à tona no festival quando, por exemplo, a jovem Aíla estabelece uma releitura leve, mas melancólica, de “Garota” (“garota, não seja louca, não/ veja pra quem dá seu coração”), do ídolo brega belenense Alípio Martins (1944-1997), que viveu seu auge de sucesso nas décadas de 1970 e 1980.
Lia Sophia, com jeitão MPB e guitarra roqueira em punho, faz o mesmo ao anuncia uma versão particular versão para o “zouk” “La Amazon”, do “rei do bregapop” Edilson Moreno. Os termos “zouk” e “bregapop” são anunciados por ela, e os paraenses em geral são deliciosamente pródigos em inventar nomenclatura musical, da guitarrada ao eletromelody, passando por variações às vezes inaudíveis a ouvidos menos treinados.
Nascida na Guiana Francesa e radicada no Amapá aos 2 anos, Lia conta que lançou há dois anos o CD “Amor, Amor”, dedicado a reler “clássicos do brega” paraense, e manda “Eu Te Amo, Meu Amor”, do incrível e inacreditável músico matogrossense Frankito Lopes (1938-2008), “o índio apaixonado”. A canção e a interpretação são românticas, pungentes, plangentes. Bregas? Ah, vá catar coquinhos!
A apoteose dessa tendência misturadora acontece no último dia do festival, durante o show de Felipe Cordeiro, filho do multimúsico Manoel Cordeiro (fundador da adorada banda Warilou e presença reverenciada no festival). Felipe acaba de lançar em Belém o CD “Kitsch Pop Cult”, que inverte a tendência emepebista “cool” do CD anterior, “Banquete” (2009).
No palco, ele se caracteriza como ídolo brega, de terninho, calça amarela, sapato de bico e duas vocalistas hipermaquiadas caracterizadas em estilo cabaré. O repertório e os arranjos são puro bregapop, música de puteiro, gafieira, tecnobrega, tecnoelody, eletromelody. Participam o guitarrita virtuoso Pio Lobato e o DJ Waldo Squash, líder da sensacional Gang do Eletro. O clímax acontece com a safadinha “Quero Gozar” (“eu quero gozar/ a vida com você”), mais um sucesso antigo do kitsch-pop-cult Alípio Martins.
O público paraense canta com Felipe em coro empolgado, como aliás havia cantado todos os “clássicos do brega” aqui citadas, ou os hits de carimbó de Pinduca, espalhados por vários shows. A música de Belém é um bebê feliz, livre, cafona e chique de fazer gosto.
* Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil
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Quem vaiou o Odair josé na fono 73, não foram os artistas e sim o público.Quando vc e Paulo césar de araújo xingam essa gente de brega só fortalece o preconceito,pois a maioria do seu público nem sabe desse apartheid-cultural.Se eu fosse um artista com forte apelo popular não gostaria de ser classificado de brega,como nenhum deles gostam.