Benito di Paula, o homem que trouxe o piano para o primeiro plano do samba, chegou para o ensaio no estúdio no bairro paulistano de Pinheiros com seu filho Rodrigo Vellozo e um carrão a tiracolo. Fez questão de estacionar na estreita garagem do local, e passou alguns minutos encenando, com ar divertido, a impossibilidade de sair do carrão na fresta entre o muro e a porta aberta. Logo de cara deu para perceber: Benito é um fanfarrão.
Qual um Didi, um Dedé, um Mussum, um Zacarias, um operário da construção MPB, ele não descuidou do tom de brincadeira em nenhum momento da entrevista – nem quando o assunto era sério (e várias vezes era). O cantor e compositor preparava com Zeca Baleiro o show que faria naquele fim-de-semana de abril num minifestival de nome provocativo: Salve o Compositor Popular.
Idealizado por Zeca para o Sesc Pompeia, o festival reuniu, além de Benito, os operários da canção brasileira Agnaldo Timóteo , Claudia Barroso, Luiz Ayrão, Márcio Greyck , Odair José e Vanusa. Foi filmado pela diretora Helena Tassara, que prepara um documentário sobre os chamados “cafonas”, sob inspiração do livro Eu Não Sou Cachorro, Não (ed. Record, 2002), do historiador Paulo César de Araujo.
A conversa ocorreu quando as enchentes na região serrana do Rio ainda davam lucro ao noticiário diário, e quando o metrô Morumbi era mais assunto que o metrô Higienópolis. Foi testemunhada atentamente pelo filho também cantor, que também participou de algumas passagens. Culminou, nesta semana, na reportagem “O operário da canção“, publicado na revista Fórum, edição 98, atualmente em cartaz. Segue abaixo uma versão estendida, com menos interferências editoriais posteriores do entrevistador.
Pedro Alexandre Sanches: Onde você nasceu?
Benito di Paula: Eu nasci em Nova Friburgo (RJ). O pessoal precisa mandar pra lá material de construção, o pessoal está precisando mesmo por causa daquele negócio que aconteceu lá. Graças a Deus o pessoal colaborou muito com comida e roupa, mas o mais complicado é que perderam casas. É tudo gente humilde mesmo.
PAS: As enchentes aconteceram no lugar em que você nasceu?
BP: É. Não dá pra ver na TV, eu não aguento. É muito difícil pra mim.
PAS: Pode contar um pouco sobre o lugar onde nasceu e sobre sua família?
BP: Eu nasci na entrada da cidade, chamava bairro Ipu. O nome do bairro é Perissê, mas tinha uma indústria de rendas, de tecidos, e ficou o nome da indústria, Ipu. Tá tudo caindo no chão, bicho, um pecado. Cantei muito lá, para os operários.
PAS: Era um bairro operário?
BP: Friburgo é uma cidade operária e turística, pela beleza natural, é tudo montanha. Parece que a primeira fábrica de agulha é lá de Friburgo.
PAS: O seu pai era operário?
BP: Papai era maquinista da Leopoldina, da companhia ferroviária. Era um trabalho muito pesado, era a vapor, a lenha. Ele começou como foguista, o cara que bota a lenha. O que aprendi com papai é que, apesar de toda essa coisa de força, de trabalho pesado, ele tocava bandolim, acordeom, violão de sete cordas, viola americana, cavaquinho, tudo de música. Ela fazia de tudo, coisas com madeira, dentro de garrafa, fabricava colchão, fazia sapato.
PAS: Sabia música?
BP: Não, era autodidata, tocava em casa. Ele tinha um regional chamado Arame Farpado, pra não atravessar (ri), e tinha um bloco de carnaval chamado Quem É Bom Não Se Mistura.
PAS: Você nasceu no Rio de Janeiro, tinha bloco de carnaval na família, mas gostava de Luiz Gonzaga?
BP: Ah, é por isso aí, por causa do regional, Jacob do Bandolim, Nelson Gonçalves, Waldir Azevedo, Pixinguinha. Isso tudo era tocado lá em casa.
PAS: Você é descendente de ciganos?
BP: É (reticente), sobrinho, minhas tias que estão no céu. Meu nome é indiano, hindu: Uday. Papai gostou desse nome pelo que quer dizer: “Chefe da tribo”.
PAS: Vocês têm descendência indígena também?
Rodrigo Vellozo: A gente tem descendência, sim.
BP: Tem uma parte da família que é indígena, uma que é cigana e uma parte de negros. Eu saí mais clarinho.
RV: Meu pai tem irmãos negros.
BP: É, irmãs. Minha sobrinha tem cabelo sarará, branquinha, olhos verdes, é legal à beça. Meus irmãos saíam da mesma forma, mas saíam de várias cores. Isso é colorir o Brasil. É bonito, é brasileiro mesmo. E tem duas tias de papai eram ciganas. As outras, não, tem a parte negra e a parte cabocla da família, mistura de índio com negro. Tem sangue alemão também.
PAS: As tias ciganas moravam em acampamento?
BP: Não, o pessoal de acampamento ia muito lá em casa visitá-las. Uma trabalhava na fábrica de rendas e a outra lavava roupra pra fora. Minha família é muito humilde.
PAS: Cigano sofre muito preconceito na sociedade, não?
BP: Sofre, demais. Shopping center existe por causa dos ciganos, eles é que saíam pra vender, eram nômades. Devia chamar ciganos center (ri). Meu visual era de cigano, eu usava 52 colares, de Iemanjá, não sei de quê, mas ninguém se tocava. Hoje é que perguntam mais.
PAS: Você não tinha vergonha de parecer cigano?
BP: Bicho! Olha essa roupa, bicho (risos)! Tenho muitos amigos e afilhados ciganos, a maioria da Tchecoslováquia. Gosto muito deles.
PAS Não é dos povos mais musicais que existem?
BP: Esses são mais negociantes (ri). Gostam de música, tem um acordeonista que tocava com a Elba Ramalho, Nossa Senhora, é muito bom ele. Mas ninguém sabe que é cigano.
PAS: A vocação musical tem a ver com essa origem?
BP: Tem, se eu puxar. Se eu puxar sai alguma coisinha. No dia que eu nasci tinha um regional tocando na sala. Todos em casa nascemos em casa, éramos 13 irmãos, hoje somos 11. Perdi meu irmão, J. Vellozo, que era grande compositor. Elizeth Cardoso gravou música dele, Baby Consuelo também, Wando. A música vem de Deus, e, depois de Deus, vem da família. Nunca fiz outra coisa a não ser música. Nem música eu sei fazer (ri). Faço de abelhudo.
PAS: Como você virou profissional?
BP: Virei profissional da noite. Cantava na noite em Friburgo, lá eu fiz serenata com Sérgio Ricardo, com Marcos Valle, todo mundo ia pra lá no verão. O primeiro cara a tocar acordeom em público fui eu que botei, numa serenata: foi o Marcos Valle, que coisa linda. Onde tinha moça bonita a gente ia. De Friburgo fui para o Rio, morei no Morro da Formiga – não pagava nada, e eu também não tinha grana, aí morava lá, num barraco, com um amigo meu. Em Friburgo eu já era crooner de orquestra, de conjunto. Tinha que cantar de tudo, menos jazz, que eu não sei cantar jazz, não. Nem jazz nem bossa nova eu sei cantar.
PAS: Não sabe ou não gosta?
BP: Não sei. Adoro, mas cantar bossa nova é muito difícil, a harmonia nem se fala. É muito bom a gente ouvir, respeitar, deixar quem sabe fazer. Depois do Rio, fui morar nas bocas de Santos e tive um convite para vir para São Paulo. Profissional do disco, foi aqui em São Paulo já. Fui convidado para ir a uma editora, Irmãos Vitale, e lá eles me deram muita colher de chá. Me ajudaram muito, até a pagar aluguel, porque eu não tinha disco, não tinha nada, só tinha as composições. Eles acreditavam no meu sucesso antes de eu fazer sucesso, isso é que é bonito, né?
PAS: O primeiro disco…?
BP: Não lembro.
PAS: Não lembra?
RV: Não, pai, o primeiro disco é o que faz 40 anos este ano.
BP: É, “Apesar de Você”, eu fui cassado. A gravadora Copacabana pertencia aos Vitale. Eles me deram colher de chá pra eu fazer esse disco lá, e pediram que eu gravasse coisas que estavam fazendo sucesso. Gravei “Menina”, do Paulinho Nogueira, “Azul da Cor do Mar”, do Tim Maia, “A Tonga da Mironga do Kabuletê”, de Toquinho e Vinicius de Moraes…
PAS: “Jesus Cristo”, de Roberto e Erasmo Carlos…
BP: Gravei uma porção de artistas (gravou Ivan Lins e Taiguara, além dos citados). E gravei algumas minhas, e gravei “Apesar de Você”, do Chico Buarque, que abria o disco. Foi ideia minha com o pessoal da gravadora. Topei, o repertório era maravilhoso. Mas “Apesar de Você”, quando foi lançada, foi cassada junto com a do Chico. Perdi uma chance, rapaz, porque era meu primeiro disco.
PAS: O disco inteiro saiu de circulação?
BP: Claro, naquela época não era possível tirar uma música e colocar outra. Aí foi tudo.
PAS: Você gravou sabendo que era uma música sobre questões políticas?
BP: Ó, claro que a gente sabia, pô. A situação não era boa, né? Ainda mais pra mim, que trabalhava à noite, cabelo comprido, barba, barbicha, brinco. Toda hora tinha encheção de saco, e a gente sabendo das barbaridades que aconteciam. E eu, que era um cara muito simples, muito humilde, não podia fazer nada. Tinha que procurar trabalhar, ajudar minha família, muitos irmãos. Mas a gente sabia de tudo que acontecia, tanto que na época eu fiz uma música pro Geraldo Vandré. Ia chamar “Vandré”, mas amigos meus, músicos, aconselharam a nem botar o nome. Aí botei “Tributo a um Rei Esquecido” (1974).
PAS: Por que você fez essa música?
BBP: Ah, porque pelo que sei e leio – pouco leio, muito sei –, fizeram muita maldade com ele na ditadura. Uma pena, porque ele é um tesouro da música brasileira. Mas já passou, graças a Deus. A gente fica admirado de ver lá fora, no Oriente, esses caras querendo continuar no poder. O poder já acabou, bicho, o poder não é nada, está podre. Que raiva que dá, bicho. E eu, por fazer sucesso nessa época, tem alguns caras que hoje me policiam, ficam naquele negócio de perseguição, pensando que eu era da ditadura. Os caras nem sabem quem é Benito di Paula.
PAS: Como assim, perseguição?
BP: É, eu fiquei 13 anos sem gravar (de 1996 a 2009), gravei disco que não lançaram. Agora mesmo gravei um disco na EMI e eles também esconderam, disseram que não vão fabricar mais. É uma perseguição filha da pê – filha da pê é bom pra não falar puta. Mas eu tenho minha consciência tranquila de que sou um trabalhador, sou brasileiro, sou um cidadão brasileiro, tenho honra do meu país, do meu povo, e tenho ciência de que não tinha nem tempo pra pensar em política, nem a favor, nem contra, muito pelo contrário.
PAS: Por que acham que você era da ditadura?
BP: Acho que é porque na época lancei “Tudo Está no Seu Lugar” (1976), eu falava: “Tudo está no seu lugar/ graças a Deus”. Mas eu fiz essa música porque precisava dar uma casa pra minha mãe, e de onde eu ia tirar dinheiro pra isso? De onde? Da música. Gravei um disco, estourou “Violão Não Se Empresta a Ninguém” (1972, sucesso que dizia “onde está você/ com meu violão/ se você chegar fora de hora/ não deixo você desfilar no meu cordão, não deixo, não”) ou “Retalhos de Cetim” (1973, “ensaiei meu samba o ano inteiro/ comprei surdo e tamborim/ gastei tudo em fantasia/ era só o que eu queria/ e ela jurou desfilar pra mim”) ou, não sei qual foi. Ganhei um dinheiro legal, e a primeira coisa que fiz foi comprar uma casa pra minha mãe. Pô, botar minha mãe e 12 irmãos dentro de casa, meu filho, se isso não é estar no seu lugar, graças a Deus, o que é então?
PAS: Mas aí interpretaram que você estava falando da situação política…
BP: É assim. Fico muito puto, porque os caras não têm coragem de aparecer. É um negócio frio, uma guerra fria. Fico magoado, porque a covardia é muito grande. Isso me tirou emprego, família, dignidade, uma porrada de coisa.
PAS: Por que família?
BP: Ah, rapaz, um homem sem trabalho perde família, moral, perde tudo. Se bobear você enlouquece. Eu tive que fazer terapia, com psiquiatra mesmo, porque entrei em depressão profunda. Mas essas gravadoras prometeram mundos e fundos, e os caras que prometeram estão todos desempregados também. Os caras são muito ruins – o cara não saber vender cultura, bicho, é muito burro.
PAS: Por isso estão indo à falência?…
BP: Ah, têm que ir. Todos irão, o caminho é de ida, vai embora, meu irmão, porque volta não tem. As gravadoras hão de ser dos artistas, aí sim. Mas é que os artistas são burros também, eles não se unem. Por isso não me considero artista, eu sou anarquista. De maneira nenhuma, artista é Tony Ramos, Chico Cuoco, Antonio Fagundes, Paulo Gracindo, Grande Otelo, pra quem eu fiz a música “Otelo” (1977). Eu digo sempre: esmoleiro não é aquele que está na esquina pedindo esmola, é aquele que dá. A dignidade de estender a mão pra pedir é uma humildade muito sagrada, é sinal de que você não tem mesmo. E aquele que estende a mão para dar tem, mas precisa dar, senão não paga os pecados dele (ri). De quatro em quatro anos aparece um monte de esmoleiro aí, depois some, aí começa a aumentar pão, arroz, feijão. Tudo que é de pobre eles aumentam. Alaga tudo, ninguém conserta nada, bota a culpa no povo. Depois de quatro anos voltam outra vez, entram na favela, beijam os filhos. Detesto, bicho, e os caras pensam que eu gosto disso. Não gosto disso, não gosto daquilo, não gosto de nada. Eu sou anarquista, graças a Deus. Nasci assim, não tenho cultura, estudei até a terceira série primária, não sei tocar piano, violão, não sei nada. Não sou sambista, sou sambeiro.
PAS: Qual é a diferença?
BP: Ah, sambeiro é qualquer nota. Sambista é bom, é Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho. Zeca é bom pra cacete, não é?
PAS: Benito di Paula também…
BP: Ah, eu sou porque Deus quer, e abaixo de Deus o povo quer. Isso é que é bom. Foi assim que Luiz Gonzaga se tornou rei: porque Deus quis e o povo também quis, aí é legal. Agora, quando é um negócio chamado “tchetchetchê, tchutchutchu”, que você sabe o que é, o cara do nada vira fazendeiro de repente, do nada, com 300 mil bois, 50 Mercedes. Que é isso, bicho?, eu trabalhei pra cacete e tenho um carro, e olhe lá. Minha casa vai ser derrubada. Você trabalha a vida inteira, paga colégio para os filhos – graças a Deus meus filhos têm boa educação –, compra uma casa e vêm os caras pra passar metrô? Vai passar metrô, vão desapropriar minha casa lá no Morumbi. Fazer o quê? Vou esperar os caras virem, vamos ver o que acontece com a gente. Aí vou cantar (cantarola “Saudosa Maloca”, sucesso do paulista Adoniran Barbosa): “Se o senhor não tá lembrado dá licença de contar/ ali onde agora está esse edifício alto/ era uma casa véia, um palacete assobradado/ foi aqui, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca/ construímos nossa maloca”. Você vê aí nego sem terra, sem teto, sem casa, sem apê, sem piscina (ri)… Tem os sem cachaça, sem uísque, tudo é de cem pra cima.
PAS: Benito di Paula é sem o quê?
BP: Eu? Eu sou duzentos, bicho, sou duzentos milhões. Deus me faz suplantar tudo isso, ele não te dá o que você não merece. Depende de você saber dividir ou não, quem não divide está sozinho. Minha casa não é minha, eu tô tomando conta por enquanto. Que é isso, minha casa? Vou levar pra onde? Mas vão tirar o que eu comprei, o que é meu? Tá certo, é o progresso, mas, bicho, tem tanto espaço pra passar metrô, bicho, faz curva (ri)! É difícil falar, metrô é necessário, mas, pô, tem lugar que precisa muito mais do que ali. Acha que o cara vai deixar o carro em casa no Morumbi pra pegar metrô? Agora, mora muita gente humilde também, tem a favela Paraisópolis, ali vai ajudar. Toda moeda tem dois lados, né? Tô reclamando sobre o direito do cidadão, mas sobre os direitos humanos eu não reclamo, porque tem que ajudar aquele povo lá também.
PAS: Sua casa é grande, rica, como as do Morumbi?
BP: É, a minha não é tão rica assim, né? Tenho um poço d’água lá no fundo do quintal que dizem que é piscina.
PAS: Então você não é sem-piscina…
BP: É, não sou, nem sem-teto, graças a Deus. Mas eu sei o que é isso, já morei no morro, nas bocas de Santos. Sei muito bem, muito mais do que muita gente, graças a Deus. E não reclamo, não, sou um homem muito feliz. Estar aqui dando essa entrevista pra você, de onde eu vim?? Meu Deus do céu, tenho que dizer “tudo está no seu lugar graças a Deus” milhões de vezes! E que se danem os que não gostam.
PAS: Na época entenderam que você estava feliz com a ditadura…
BP: Mas não seria legal virem me perguntar, meu irmão?
PAS: Nunca perguntaram?
BP: E se eu tivesse ido em cana e sofrido tudo aquilo lá? Os caras tentavam me levar de toda maneira, por causa do cabelo, de trabalhar de madrugada na rua sem carteira de trabalho. Pensa que a vida era mole? Não era, não, os caras te levavam, faziam um monte de pergunta, você voltava, ia trabalhar outra vez. Era um sofrimento. Por que estou pagando por isso? Sofri dos dois lados da coisa.
PAS: Ninguém perguntou sobre o que a música estava falando?
BP: Ninguém, ninguém. Tem esse menino que fiquei com dó, sofri muito quando sumiram com o pai dele, esse menino que escreveu “Feliz Ano Velho” (refere-se a Marcelo Rubens Paiva, cujo pai foi morto pela ditadura). Ele escreveu lá no livro dele falando de mim, porra, sacanagem! Eu podia processá-lo – posso, mas não vou. O cara é um filho da puta pra chegar e colocar que eu era isso. Não me perguntou, nem conheço. Ele não sabe o mal que me fez. Mas ele já sofreu muito, os dois lados da moeda, tenho dó, uma cara que faz uma maldade dessa…
PAS: Voltando ao “Apesar de Você”, quando gravou você sabia que Chico estava dizendo “apesar de você amanhã há de ser outro dia” para o general Emilio Medici?
BP: Sabia, claro. Gravei porque queria gravar mesmo. Eu estava numa loja de disco, chegaram uns caras estranhos pra cacete e perguntaram se tinha “Apesar de Você”, do Chico Buarque. “Tem.” O cara trouxe, botou no balcão, “tem mais?”, “tem”. O menino, pensando que estava vendendo tudo, falou: “Tem com um tal de Benito di Paula também”. Era eu, mas eu não era conhecido. Foi tudo embora, eu vi.
PAS: Era polícia, ou o quê?
BP: Sei lá, e eu vou perguntar, rapaz? Se eu falo que aquele cara era eu, eu ia em cana, ou não? Eu tinha que trabalhar, tinha família pra sustentar. Meu disco era meu trabalho.
PAS: Aí alguém apelidou a música que você fazia de samba joia…
BP: Não, isso é uma babaquice. Isso me irrita.
PAS: Mas conta, mesmo irritado?
BP: É o seguinte, joia é pra usar no pescoço, no dedo, não é isso? Que samba joia, que é isso? Tem enredo joia, jazz joia, bolero joia (ri)?
PAS: Era pejorativo?
BP: Pejorativo, o cara faz pra sacanear.
PAS: Mas é um nome bonito até, se não for pejorativo. Toquinho e Vinicius não faziam samba joia?
BP: Faziam? Acho que não…
RV: É um rótulo que não tem nenhuma característica musical. Colocam no meio coisas totalmente diferentes.
BP: Por exemplo, chamar samba de pagode. Você toca pagode? Então você é pedreiro chinês. Pagode é casa de chinês, não é? Papai tinha o regional, ensaiava em casa e tocava em casa para a família e para os vizinhos. O pandeirista trazia a mulher, o violonista trazia os filhos, a sala ficou pequenininha, foi todo mundo pro fundo de quintal. No quintal, no interior, tinha couve, galinha, alface. Nego tomava umas e outras, chutava a galinha, pisava na alface. Estava estragando, vamos pra frente da casa, que tinha jardim, maçarico forte na cabeça – o sol –, bebendo cerveja. Papai fincou uma tora grande de madeira, fez uma armação redonda enorme e colocou sapé. Aí é caramanchão, né?, ou quiosque, que lembra japonês. Mas se você coloca um quiosque, outro quiosque, outro menor em cima, vai virar um pagode. “Vamos lá na casa do seu Vellozo, que lá tem pagode pra gente tocar.”
PAS: Você está dizendo que o pagode surgiu na sua casa?
BP: Não, não sei se surgiu lá em casa. Caramanchão todo mundo tinha, mas ninguém tocava samba embaixo. Mas chamava pagode porque lembrava um pagode chinês. O samba não é pagode, o local de tocar samba é que chama pagode.
PAS: E joia nem isso é, não é um lugar…
BP: Joia é joalheria, dedo.
PAS: Quem inventou esse nome?
BP: Sei lá, maluco, sem cultura.
PAS: Mas se eu escrever “samba joia” é como elogio, porque é um tipo de música de que eu gosto…
BP: É, mas não é legal, não.
PAS: Quais características definiam a música de Benito di Paula?
BP: Nenhuma (risos).
PAS: Então foi por isso que chamaram de joia…
BP: Não, não admito isso. Na minha banda era o seguinte. Botei tumbadora: Cuba. Timbales: Tito Puentes. Surdo: Brasil. Bateria: jazz.
RV: Não era bateria, né, pai?
BP: Não era bateria, era timba, ximbau e prato. Era uma fusão de várias coisas, um negócio latino.
PAS: Você esqueceu de citar o piano…
BP: Piano!, eu sempre esqueço o piano (ri). Piano era a necessidade. Pra mim, piano era Carolina Cardoso de Menezes, Chiquinha Gonzaga, Heitor Villa-Lobos, Tom Jobim.
PAS: De onde você tirou de botar um piano no samba?
BP: Não tirei, bicho, é que entrei numa boate pra tocar e a boate só tocava jazz e bossa nova. Eu não podia cantar, porque não sei cantar jazz e bossa nova. Eu ia perder o emprego, aí cheguei lá mais cedo e fui transportando do violão, que aprendi com meu pai, para o piano.
PAS: E aí funcionou?
BP: Funcionou, graças a Deus. Deus botou um piano na minha frente. Não foi legal?
PAS: E a influência latina, vinha de onde?
BP: Da gente mesmo, todos somos latinos, né, gente? A gente só não morde, mas somos “latino” (ri). Era por gosto mesmo, Tito Puentes, Xavier Cugat, Pérez Prado.
PAS: A música norte-americana atraía mais os jovens supostamente cultos da época.
BP: Meu caminho era outro, totalmente diferente.
PAS: Para esses, era como se ser latino fosse ruim, e ser norte-americano fosse bom?
BP: Sei lá, bicho, eu acho muito é bom.
RV: Acho que não tinham consciência disso, era por ser muito popuar mesmo.
PAS: Todo mundo que é popular, arranjam uma desculpa para dizer que não é bom.
BP: Eu fiz o popular que nenhum popular faz, que é colocar piano com tumbadora, timbales, timba, ximbau e prato.
RV:: Ele não seguiu regra nenhuma.
PAS: Foi importante para você Roberto Carlos ter gravado “Quero Ver Você de Perto” (1974)?
BP: Muito. Rapaz, ganhei uma grana boa pra cacete, não sei por que ele não grava mais. Fica naquele negócio de sertanejo, tá certo, grava os meninos, mas não se esqueça do Benito, pô, Roberto. Roberto Carlos só se lembra de Hebe Camargo (gargalha; a entrevista aconteceu pouco após a estreia do novo programa televisivo da apresentadora), e acho que Hebe só lembra dele também (gargalha).
PAS: Você já estava famoso quando ele gravou?
BP: Mais ou menos. Ele foi me ouvir na boate.
PAS: Há uma lenda de que ele ficava enciumado quando outros artistas faziam tanto sucesso quanto ele.
BP: Mas que bobagem, como pode fazer sucesso e não gostar de quem faz sucesso? Eu como jiló, mas detesto quem come jiló (ri)? Isso é invenção. Se for verdade, é uma tremenda ignorância.
PAS: Ele não teria gostado quando, nos anos 80, Ritchie começou a fazer muito sucesso…
BP: O Ritchie morreu, né?
PAS: Não!
BP: Morreu, ele comeu a “Menina Veneno” (ri). É brincadeira, ele sabe. Quer mais brincadeira do que fazem com o Lula?, algum dia ele levou a mal?
PAS: Você gosta do Lula?
BP: Ah, do político eu não gosto, eu gosto dele metalúrgico. Lula metalúrgico, tô com ele e não abro. Se ele for fazer discurso no meio dos metalúrgicos, ajudar os trabalhadores, estou com ele e não abro. Até que ele ajudou muito o Brasil, volto a dizer, toda moeda tem dois lados. Que ele ajudou, ajudou.
PAS: E Dilma Rousseff?
BP: É, bicho, aí veremos, né? Mas, como fiz o samba, não posso falar nada, “agora chegou a vez, vou cantar/ mulher brasileira em primeiro lugar” (“Mulher Brasileira”, de 1975). Os caras não se tocam que já fiz isso antes, que já tô torcendo por uma mulher no poder faz tempo. Sempre pensei, e torço, pra que mande em tudo. A mulher é sexo forte, não somos nós. Elas são espertas e ficam quietas.
PAS: Sua música era influenciada pela do Wilson Simonal?
BP: Não, não tem nada a ver. A única música que ele compôs é um negócio legal, homenagem aos negros, “Tributo a Martin Luther King” (1967). Mas conheci muito pouco ele. Era um artista fenomenal.
PAS: Ele foi o que pagou mais caro pelos conflitos políticos.
BP: Ninguém sabe, bicho, ninguém explica nada. Agora todo mundo fala isso, mas quando estava vivo ninguém falava nada. Foi muito triste. Ele estava mal, me pediram pra cantar num show para ajudá-lo. Fui, e meu telefone não parou mais de tocar, os caras querendo saber por que eu tinha ido, o que era, se eu conhecia ele. Que é isso? O cara tá morrendo, eu fui lá ajudar, pelo amor de Deus, me deixem em paz.
PAS: Quem eram esses caras, artistas?
BP: Não, não sei, não me falaram. Perguntavam por que eu tinha ido, dando a entender que eu fiz alguma coisa errada. É errado ajudar um cara que tá mal? Teve anistia pra todo mundo, não teve? Pra ele não teve.
PAS: A MPB tem preconceito contra Benito di Paula?
BP: Acho que não. Essas divisões sempre acontecem, não sei por quê. É difícil explicar esse lance. Sertanejo enche um pouco o saco (ri), ainda mais se é sertanejo universitário. É o tal caso do samba joia, olha aí. Forró universitário?
PAS: Por que você fez uma música para o Charlie Brown?
BP: “Charlie Brown” (1975) era um cha-cha-cha, se você prestar atenção é um “Besame Mucho”. Eu morava em Santos na pensão de uma família italiana, eles recebiam a revista do Charlie Brown da Itália. Um dia traduziram pra mim, vi que era a história do garotinho que tinha um amigo pianista, um cachorro chamado Snoopy e um passarinho chamado Woodstock (ri). Muito bom, né?
PAS: Era por causa do piano?
BP: Era o contexto em geral, era um sucesso, e eu convidei o Charlie Brown para vir ao Brasil conhecer a torcida do Flamengo, São Paulo, a Bahia, o Brasil. E ele veio, tá aí até hoje (ri).
Puts, eu adoro Benito di Paula, agradeço meu pai por ter me apresentado! 😉
Não sei se você vai ler isso, mas a Iria(Maringá) me falou de você, que você é jornalista, falou de suas entrevistas e tal,e me interessei em saber. Adorei seus textos… Muito sucesso 🙂 Também quero fazer Jornalismo e se um dia eu chegar perto disso serei muito feliz 🙂 hehe
Parabéns e sucesso!
Mais uma insuperável entrevista sua, Pedro! Que legal ter esse contato com o Benito Di Paula através de você. Aliás, mandei uma caricatura pra ele, e ele falou que faria uma camiseta com ela… Um abraço!
Adorei a entrevista ! Sou fã do Benito desde garota . Acho ele maravilhoso