Em 1979, em São Jorge do Patrocínio, não chegava onda de rádio e a TV só pegava bem num único canal.
Não tinha asfalto.

No meio da cidade (que era um quadrilátero de umas 8 quadras, cercado de plantações de café), tinha uma torre.
Nessa torre, havia quatro alto-falantes gigantes, um em cada face da torre, e uma cabine logo abaixo.
Dentro da cabine, enfronhava-se uma espécie de proto-radialista – um profissional anterior ao radialista.
Os alto-falantes cobriam uma área de, mais ou menos, um quilômetro quadrado.

O dia todo, o locutor castigava os alto-falantes falando das promoções nos postos de gasolina, no mercado, na loja de autopeças.
E tocavam música. Eu me lembro precisamente de It’s a Heartache, com a Bonnie Tyler. Tocava pelo menos umas 5 vezes por dia. Eu adorava.
Era uma estação de rádio compulsória.

Eu era menino e fazia cobranças de bicicleta pela cidade.
E aprendia o ofício de auxiliar de contabilidade.
Transcrevia notas fiscais à mão para os livros-caixa, e tinha um calo no dedão de tanto escrever.
Foi nessa época que forjei a assinatura que uso até hoje. Tive tempo e tinta para praticar.
Mandei também fazer um carimbo com o meu nome.

Um dia, veio à cidade o filho do dono do Alto-Falante.
O nome dele era Edinho, vivia em Curitiba com a mãe.
Num tempo em que todos usávamos calça de cós alto, ele usava a calça baixa e sapato de bico fino.
Ele já ouvia disco music, e fumava. E tinha largado a escola.
Em 2 dias, a cidade inteira já sabia que tinha chegado o cara mais cool daquelas paragens. Era quase um John Travolta tupiniquim.

Ela me fez lembrar de toda essa história no domingo. Eu tinha bebido vinho e estava tagarela.
Enquanto eu contava, eu mesmo me obrigava a lembrar os detalhes.
Lembrei então que Garrincha jogou lá em São Jorge uma vez com um time de masters. Eu o vi pelo buraco da cerca do campo de futebol, era barrigudo e arrastava uma perna.
Ver o Garrincha em pessoa teve tanto impacto quanto apertar a mão do Neil Young.

Eu e meu irmão namoramos duas garotas loiras da mesma família. Não lembro o nome das garotas.
Fizemos festa na casa da minha irmã, Edinho misturava fanta com pinga.
Em São Jorge, os caras que tinham algum futuro estudavam em Umuarama.
O filho do dono do bazar São Carlos estudava em Curitiba.

Eu era comprido e magro demais, e nos jogos de futebol de salão me apelidaram de Paçocão de Mil (um doce de mil cruzeiros).
Eu detestava aquele apelido, e insistia em usar camiseta de manga comprida porque idolatrava a seleção argentina campeã do mundo (Passarella, Houseman, Olguin, Tarantini. Kempes, Fillol. Galvan. Ardiles. Luque, Valencia e Gallego).
Não só eu: todo mundo queria ser o Kempes. Não sei quando foi que passei a torcer contra os argentinos.

Nunca mais voltei a São Jorge do Patrocínio.
Vivi um ano lá.
Lembro que uma vez li que a cidade ganhou celebridade na eleição de 1989 (foi onde o Collor teve a maior votação do País, 98% dos votos).
Acho que fui amigo ou conheci os outros 2%.
Contando hoje, me pergunto por que nunca dei importância a essa parte da minha vida.
Acho que é porque é um tipo de relato do Brasil arcaico que não nos parece relevante, o Nordeste sempre reivindicou mais arcaísmo e folclorismo nas novelas e na literatura regionalista.
Mas é tudo tão remoto agora – pareceu-me até que inventei tudo isso – que me pareceu até charmoso.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

9 COMENTÁRIOS

  1. Nem vou falar de Bonnie Tyler e os bailinhos com as danças lentas. Vou falar dos Milionários. Era esse o nome? Meu pai me levou pra ver esse time jogar com Garrincha, ou a sombra dele, enorme e gorda parada na direita. Fiquei chapado, olhando pro cara. Belo texto. Obrigado pela lembrança, Jotabê.

    Abraço,

    Alemão

  2. Ei Jotabê, beleza? Sou de Guaíra/PR (não é longe de São Jorge, fica na fronteira com MS e PY ) e por aqui o Mané Garrincha também passou. Talvez até seja na mesma época.
    Enfim, sempre leio seu blog. Gosto do seu texto e comungo de boa parte ( pelo que perdcebi) de suas referências…
    Abraço!

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