max atravessa a rua, num dos raros momentos em q sai de casa
Max & Mary é um filme de animação que é estruturado como no gênero epistolar.
Epistolar é o nome que se dá à corrente literária cujo conteúdo se realiza por meio de cartas trocadas entre pessoas célebres.
No caso de Max & Mary, é outra inovação: os personagens não são famosos, muito pelo contrário. Eles nunca se conheceram.
Não são brilhantes, até o inverso disso. Nada de Genet escreve para Sartre, Joyce para Pound, Bandeira para Mário de Andrade.
Os protagonistas, Max & Mary, são “pessoas invisíveis” (expressão que uso apenas para lembrar o grande Will Eisner).
Essa é a primeira pequena subversão de fundo do filme: ser um filme epistolar sendo um filme de animação – e sendo um filme cuja chave é a verdade da comunicação, num momento em que o mundo se ocupa em afirmar a vaidade das redes sociais, a voracidade impessoal da hipercomunicação.
E Max & Mary é de um niilismo devastador.
Ninguém sai feliz do cinema – não li nada sobre o filme, então não sei se os críticos advertiram o público de Shrek e adjacências de que assistir a Max & Mary não seria uma experiência similar a passear no shopping center ou comer um Big Mac na Paulista.
Max & Mary não aponta para a redenção da raça humana, e o próprio humanismo que fundamenta o filme é meio reticente, não está convicto de que encontrou alguma grandeza nos protagonistas (eu acho que encontrou, mas eu sou muito caipira).
De fato, não há mágica que salve Max & Mary do seu destino.
Uma vez, o Ricardo Kotscho escreveu, no antigo No.com (naqueles anos em que a internet teve alguma pretensão jornalística), uma reportagem sobre um zelador de prédio encontrado morto na rua, no seu bairro, e de como o corpo ficou horas na calçada à espera de algum ato de humanidade.
Entrevistando uns e outros, colhendo depoimentos dados a contragosto, Kotscho escreveu uma vigorosa biografia express daquele homem sem nome, insignificante para os transeuntes.
“Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.
Aquele texto foi apenas uma das coisas que me vieram à mente após a sessão.
Foi no domingo à noite que, após semanas de ensaios, fomos finalmente assistir MAX & MARY. Havia apenas seis pessoas na sessão, no Gemini. Minha hesitação em ver um filme mostrou-se, mais uma vez, xaroposa.
Estes são Max & Mary:
Max Jerry Horowitz é um judeu de meia-idade aposentado por invalidez (tem problemas mentais, sofre da Síndrome de Asperger, tipo de autismo). Vive só num apartamento em Nova York com um gato cego de um olho e peixes que morrem sucessivamente por falta de cuidados, devorando hambúrgueres de chocolate e engordando prodigiosamente.
Mary Daisy Dinkle é uma menina australiana de 8 anos, três meses e nove dias cuja existência é um trambolho para os pais. Sofre bullying dos colegas na escola e a mãe não consegue nem sequer reparar seu uniforme escolar.
Por acaso, ela escreve para o “Amigo Americano” para saber coisas sobre a vida lá.
Ah, e que figura é o Max! Que mau humor adorável! Eu não via personagem tão incompatível com a sociedade desde Melvin Udall , o avatar de Jack Nicholson em Melhor é Impossível.
Por alguns momentos, no meio do filme, eu tive certeza que era um filme cujo núcleo central era sobre ocupações humanas. O pai de Mary, Noel, é operário numa fábrica de chá (na qual apenas se ocupa de fazer as costuras mecânicas nos saquinhos) e tem como hobby a taxidermia _ empalha animais mortos no porão de sua casa. Ironia, porque ele mesmo é uma espécie de vida empalhada.
Max, em dado momento, discorre sobre as diversas profissões que teve: bilheteiro de metrô, lixeiro, burocrata do exército. Todas furiosamente solitárias, mecânicas, desumanizadas.
Mary entrega panfletos desde a infância, como as meninas que divulgam empreendimentos imobiliários milionários nas esquinas da Brasil com a Rebouças.
Até a lógica da pedinte de rua que trabalha na esquina do apartamento de Max é evidenciada.
Não me lembro ao certo, mas parece que o ano em que tudo se passa é 1976.
Mary cresce durante a trama, vai dos 8 aos 25 anos. Ou seja: tudo termina mais ou menos em 2001.
Isso não muda essencialmente nada, nem a ida de Mary à universidade.
A vida na cidade grande dos Estados Unidos e a cidade pequena da Austrália são rigorosamente iguais quando você não está “enquadrado”: não é o lugar, é o “como” você vive.
Todos os personagens do filme são assustadoramente ineptos para a vida. A mãe alcoólatra de Mary, a vizinha míope de Max, o vizinho que sofre de agorafobia, e até o galo de estimação. Vera Lorraine Dinkle, a mãe de Mary, é assombrosamente real. Quem já não teve uma tia, uma vizinha, uma sogra, uma co-cunhada com aquele perfil? Aquela mulher que fuma enquanto bate o bolo, que bebe escondido, que aposentou o orgulho feminino em alguma década no passado e anda de chinelo e meia pelo supermercado?
Max & Mary tem as vozes de Philip Seymor Hoffman e Toni Colette.
E eles fizeram um belo trabalho.
Fiquei interessadíssima em assistir. Pelo tema e, mais ainda, pela dublagem ser com dois atores que adoro. Infelizmente essa animação não chegou nem deve chegar em Londrina. Resta a internet.
Simplesmente imperdível, Eliane! Não importa de onde venha, se legal ou ilegal!