Então eu estava lendo “Samba, o Dono do Corpo” (Mauad, 1998), de Muniz Sodré, e bati de frente com o seguinte depoimento de Donga, um dos inventores deste exu denominado samba:
“Em 1916, começamos a apertar o cerco em torno da Odeon, para que gravasse um samba. Mas a ocasião só iria surgir no ano seguinte. Foi quando consegui gravar o famoso ‘Pelo Telefone’.
[“Que ocasião foi essa?”, pergunta Muniz Sodré.]
A da campanha contra o jogo, lançada pelo jornalista Irineu Marinho em “A Noite”. Era chefe da polícia o dr. Aureliano Leal, e se jogava livremente em toda a cidade. Os repórteres Orestes Barbosa, Eustáquio Alves e Costa Soares ficaram encarregados da campanha.
Um dia, em plena tarde, eles fingiram ser jogadores e banqueiros, diante de umas roletas de papelão que Irineu Marinho colocara perto da redação, no Largo da Carioca. Batida uma fotografia, o jornal fez escândalo: jogava-se em plena rua, sem que a polícia tomasse providências. O episódio foi muito comentado. Isto dá samba, pensei eu. Escolhido um motivo melódico folclórico dos muitos existentes, dei-lhe um desenvolvimento adequado e pedi ao repórter Mauro de Almeida que fizesse a letra. E o samba foi gravado por Baiano:
O chefe da polícia/ pelo telefone/ mandou avisar/ que com alegria não se questione/ para se brincar
Estes eram os primeiros versos, que também se cantavam assim:
Que na carioca/ tem uma roleta/ para se jogar“.
De primeira, o amontoado de referências me causou aquele espanto. O pai do “doutor” Roberto Marinho patrocinou a campanha moralista contra a jogatina? Um dos repórteres encarregados de fazer o estardalhaço era Orestes Barbosa, futuro compositor (em 1937) da maravilhosa seresta “Chão de Estrelas”? Assim como os encarregados de atiçar a faxina moral, era repórter o incumbido de criar os versos pioneiros em tempo de crônica de costumes? E na encruzilhada de tudo, botando o ovo do samba, estava Donga, o carioca negro, pobre, suburbano, marginalizado etc.? Ora, ora.
De segunda, me revoam a cabeça as semelhanças mil, o novelo repetitivo da história. Imagino uns Marinho ou uns Frias de hoje criando escândalo sensacionalmoralista por sobre a contravenção, o baile de subúrbio, os camelôs na jogatina de CDs piratas de tecnobrega nas ruas velhas de Belém. Ou o pagode mauricinho (“Chão de Estrelas”) servindo de semente para que adiante brote a raiz antiga do funk carioca (“Pelo Telefone”) – ou é o contrário?, ou coisa que o valha.
Acima de tudo, lembro que “no meu tempo” (e/ou lugar) os valores e papéis sociais andaram dramaticamente estanques, isolados e apartados uns de outros – uns foram fazer jornais, outros cantaram, outros compuseram, outros criaram poemas, outros se dedicaram a escrever sobre canções ou poemas ou políticas ou contravenções. Quem foi fazer arte foi fazer arte, quem foi ser faxineira foi ser faxineira, quem foi gerenciar jornal foi gerenciar jornal, quem não fugiu mais com o circo não fugiu mais com o circo.
O que as memórias de Donga me fazem lembrar é que nem sempre as coisas andaram assim tão estanques. E aí eu me encontro no presente, e refresco memória bem mais recente. No Fórum de Mídia Livre de Vitória, Espírito Santo, de onde acabei de chegar, difícil era distinguir quem era jornalista de quem era músico de quem era militante político de quem era produtor de banda de quem era artista circense de quem era etc.
Acima de tudo, na minha cabeça, a turma sensacional de jovens jornalistas que me recepcionou com imensa gentileza em Vitória (alô, Vitor, velho frequentador deste barraco eletrônico!) se associa profundamente à gente hoje extinta de Donga. Vitor trabalha no caderno de cultura do grande jornal capixaba, faz curadoria para o festival de música do Fórum e em rápidas horas vagas acompanha ao cavaquinho o histórico Jards Macalé (“você tá morando aqui?”, me perguntou o Macalé), numa versão pós-capixaba de “Vapor Barato”. Tatiana é outra que trabalha no jornal, e é apresentadora de um programa de sucesso na Globo local, e também tem uma banda. Fabrício, além de curador do festival, é o líder performático da banda O Sol da Garganta do Futuro, a mesma que bolou no palco o encontro de gerações com Donga, quero dizer, com Macalé.
(E o festival de música aconteceu, chão salpicado de estrelas, debaixo de uma lona de circo, esse lugar mítico por excelência onde o domador é o pipoqueiro é o trapezista é o palhaço é a mulher barbada é a fazedeira de churros e algodão-doce e cachorro-quente é o bilheteiro é o etc.)
E eu nem vou falar do André Paste, por agora, que senão isto aqui vira um livro.
Mas minha pergunta derradeira é a seguinte: alguém precisa ser nostálgico num Brasil que oferece cenas como as que tenho visto ultimamente, em lugares tão-longe-tão-perto quanto Belém ou Vitória? Não precisa, nem é possível, muito menos desejável. O presente está bombando nas nossas fuças, só não viu quem não quis. Dá-lhe que dá, Espírito Santo (também conhecido como exu)!
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P.S. às 19h40 da terça-feira 8 de dezembro de 2009. A Tatiana citada acima, Tatiana Hofacker Wuo, me respondeu com um e-mail pra lá de fofíssimo, e me autorizou contar algo mais que ela contou nesse e-mail, o seguinte: “Me fez pensar (…) na história dos meus avós, um palhaço de circo e uma trapezista, que sim, faziam tudo: de vender o bilhete a desmontar a lona. Acho que não consegui escapar dessa veia mambembe, que você enxergou muito bem. E também nem queria, né?”. Tá vendo, eu sempre digo (ou penso), o Brasil é circense por natureza! A gente é que marca passo tentando camuflar esse nosso lado, talvez um dos mais belos de nossos muitos lados…