no segundo trecho da entrevista, joão araújo começa a falar de seu currículo dentro da música e das (então grandes) gravadoras no brasil.

pas – como a música apareceu na sua vida?

ja – de uma forma muito engraçada. aos 14 anos, como era discípulo do meu pai… eles gostavam que a gente começasse a trabalhar cedo. sou o caçula de seis filhos, somos três homens e três mulheres. nasci aqui mesmo, na rua aqui ao lado, em frente ao [restaurante] antiquarius, quando o leblon era um areal, era para quem queria sossego. meu pai veio de pernambuco, como chefe de gabinete do ministro da fazenda. devia ter 15 famílias aqui, todos nos conhecíamos.

pas – era o governo getúlio vargas?

ja – eu nasci em 1935, meu pai veio para cá antes disso. a ordem dos governos é que não me lembro. getúlio fez muita coisa pelo país. minha mãe era educadora, tratou de fazer aqui um colégio, onde fiz o primário. mas com 14 anos fui trabalhar, a família era assim. meu irmão já era formado, era dono de laboratório, fui trabalhar com ele. mas era um negócio chato, eu com 14 anos fazer pílulas e remédios? aí um cunhado, casado com minha irmã, era um homem de negócios e de vez em quando caíam negócios esdrúxulos na mão dele. caiu uma gravadora, a copacabana discos. maravilha. o primeiro emprego que tive na gravadora foi de auxiliar de imprensa do ramalho neto, fazia isso que vocês fazem [dirige-se às duas assessoras da som livre presentes na entrevista].

pas – com que artistas você trabalhou lá?

ja – ah, angela maria. elizeth cardoso. francisco carlos, que era o rei das menininhas. lúcio alves, dick farney. aí fiquei muito amigo de ary vasconcellos, crítico de música d'”o cruzeiro”, e de sérgio cabral, pai do atual governador, também crítico. eles me recomendaram muito na odeon, e eu fui como chefe de divulgação, olha que promoção. aí pegava a parte de rádio também. era muito mais fácil, eu mandava fazer um disco de promoção com as músicas que a gente queria tocar na rádio, e fazia um programa de sucessos da odeon. eu ia para a rádio jornal do brasil e tocava o disco no programa, não tinha negócio de disc-jóquei, não. fiquei cinco ou seis anos na odeon.

pas – e lá, que artistas passaram por você?

ja – dorival caymmi, isaurinha garcia…

pas – pegou a chegada de joão gilberto?

ja – peguei. quem levou joão gilberto, quem fez da alma coração para colocá-lo lá foi aloysio de oliveira. ele entrava nas reuniões de programação sempre com um acetato de joão gilberto. botava na reunião, o chefe de vendas que dirigia a reunião dizia: “ô, aloysio, você está insistindo com esse gato que mia? não adianta que a gente não vai programar”. tanto insistiu que conseguiu colocar o joãozinho. joão tinha horror ao chefe de vendas da odeon, não vou dizer o nome por uma questão de ética. era uma pessoa que tinha mesmo um aspecto mais de boxeur mesmo[risos].

um dia eu estava na gravação do joão, ele sumiu, ninguém encontrava. no fim do expediente, fui ao bar… [não consegue lembrar o nome], que recebia um monte de pessoas conhecidas de todas as áreas, poetas, escritores, compositores, cantores, mário reis, aracy de almeida, cyro monteiro, vinicius de moraes, jornalistas – fernando lobo, lúcio rangel. tem casos interessantes lá. um compositor famoso que bebia muito, também não vou citar o nome, se encontrou com um amigo que não via havia 15 anos. volta e meia o cara fechava o bar, ficava lá dormindo. esse amigo o encontrou nessa situação e o levou para casa. só que ele já estava fora de casa fazia alguns anos e ele não sabia. tocou a companhia, veio a mulher que ele conhecia, “olha aqui, fulana, encontrei o beltrano, não ia deixar ele na rua, onde eu ponho ele?”. “põe ali no sofá.” botou, o cavalheiro ficou, nunca mais saiu, veio a morrer poucos anos atrás.

mas fui para o bar [força a memória para lembrar o nome, não consegue], cheguei cedo, encontro joãozinho sentado sozinho. “rapaz, está todo mundo te procurando.” ele disse: “joão, eu estava lá no estúdio, naquela cabine tinha um monstro. aquele monstro vinha e falava comigo, eu ficava com medo, fugi”. era o chefe de vendas.

pas – e depois da odeon?

ja – se instalou no brasil a philips, comprando uma empresa brasileira que era a sinter, de alberto pittigliani, cujo sobrinho é armando pittigliani, um produtor de discos muito querido nosso. as multinacionais, quando compravam uma empresa nacional, tomavam por medidas de precaução manter o presidente por dois anos, para qualquer coisa que viesse a acontecer pós-venda, coisas ligadas a tributação, a crimes não sei de quê. alberto ficou lá, mas não entrei pela mão dele, e sim de um diretor de lá que eu conhecia e que fazia parte do conselho da philips do brasil. fui o segundo brasileiro a entrar na philips discos. o primeiro foi um senhor chamado paulo serrano, que era uma espécie de gerente de produção. entrei como homem de disco ainda a definir posição. fiquei lá seguramente um ano como o cara que bate o córner e sai correndo para cabecear. até que me fixei no cargo de diretor artístico de programação.

pas – era quem selecionava elenco?

ja – que seleciona elenco, e tem uma parte de produção de disco que é muito executiva. o ideal é ter sempre na parte artística uma cabeça artística e uma cabeça mais comercial, porque as duas coisas andam cada uma para um lado.

pas – qual era a sua cabeça?

ja – era um pouco das duas, mas era mais comercial, primeiro porque não sou músico. o fato de gostar de música não me confere nenhum diploma. gosto de música, mas saber selecionar… eu selecionava, mas procurava muito me apoiar em produtores. e na philips deu para fazer um cast muito interessante. para ter uma idéia, contratei para lá gal costa, caetano veloso, jorge ben… quando digo que contratei, estou fazendo injustiça a algumas pessoas. por exemplo, quem teve muita importância na contratação de jorge ben foi armando pittigliani. outro que contratei foi djavan, mas quem tem 80% na contratação foi um produtor meu, muito modesto, chamado joão mello, que era aquele produtor que fazia o que a estimativa de produção dele dizia que tinha que fazer. se a estimativa era tanto ele cumpria tanto, disco dele não custava um tostão a mais. mas não era tão bem-sucedido quanto os outros que não faziam o mesmo que ele em organização.

pas – joão mello chegou a ser compositor, e a lançar disco, não?

ja – é, ele compunha também mas quem mais? vamos lá, tinha mais gente. elis regina. edu lobo. tamba trio.

pas – quer dizer, você era o executivo que contratava esses nomes todos?

ja – era, tinha que aprovar esses contratos, ou contratava diretamente. tinha noites que eu saía, tomava mais de um uísque e contratava duas ou três pessoas que não tinham nada a ver [risos].

pas – nomes que você também não vai citar?…

ja – eu sabia porque no dia seguinte os produtores me diziam: “você saiu ontem à noite, né, joão? já esteve aqui uma cantora, um cantor, você vai gravar com eles?”. eu dizia: “não sei, não me lembro”.

pas – acabavam contratados, ou não?

ja – não. era muita loucura minha. meu filho é que dizia que ele era… um maluco abandonado, como ele dizia?

pas – maior abandonado.

ja – não, ele era… tinha um negócio que ele falava de louco [tenta lembrar, desiste]…

pas – você disse “muita loucura”, você foi um jovem “doidão”?

ja – não, era loucura minha de fazer esses negócios de contratar. você estava na noite, ficavam te aporrinhando, você dizia “passa lá amanhã”. e passavam, já dizendo “joão araújo mandou gravar”. pô, não era bem assim. falava “não leve a mal”, o cara ficava na fila para ter uma outra oportunidade, ou era aproveitado em disco de montagem. mas também não era uma coisa que se sucedia com grande frequência, graças a deus.

mas tem mais gente da philips, quero lembrar. já falei vinicius de moraes? vinicius gravou voz como cantor numa música pela primeira vez comigo. ele não queria cantar de jeito nenhum, levei para o estúdio, fiz ele ver que tinha boa voz, que a música era mais recitativa. era “pela luz dos olhos teus”. ele cantou, fez sucesso. tinha mais gente. tinha tom jobim, ele gravou conosco. tinha arranjadores famosos, maestros, léo peracchi, erlon chaves. a philips tinha gente em são paulo também, o noite ilustrada… a odeon, de onde eu tinha vindo, também tinha muita gente de sucesso, isaura garcia, adoniran barbosa.

pas – por que os discos da philips, uma multinacional, saíam também com o selo companhia brasileira de discos?

ja – a sinter era o nome-fantasia da companhia brasileira de discos. a multinacional entrou e manteve o nome, cbd, e começou a lançar o selo philips, até mudar a razão social para philips, muito tempo depois.

ja – pedro, estou falando tanto que estou ficando rouco.

pas – mas nem chegamos à som livre ainda, vai ter que falar mais… em seguida à philips, vem a rge?

ja – por isso a gente tem que fazer isso à noite, num bar [risos].

pas – aí ia falar todos os nomes [risos]…

ja – não, a minha ética resiste ao álcool. aliás, eu não briguei com a bebida, mas não bebo mais o que bebia. bebia industrialmente, hoje bebo civilizadamente. deixei de fumar também, que é outra desgraça.

bom, levei para a odeon uma pessoa que quero citar com muito carinho, que foi aloysio de oliveira. era produtor, virou diretor artístico de lá, fez um trabalho maravilhoso. depois fez outro trabalho maravilhoso que foi a elenco. a gravadora lançava oito discos por ano, mas cada disco era uma peça rara, desde as capas, que eram verdadeiros quadros. você está vendo este escritório todo em vermelho e preto? eu pedi para a arquiteta fazer assim, para essa vou dar crédito, é márcia muller.

pas – por tudo isso posso concluir que você é um fã da bossa nova?

ja – sou fã da bossa nova. e nós fizemos uma corrida com a odeon para ver quem ia lançar o primeiro disco de bossa nova. e nós conseguimos, lançamos o disco “bossa nova mesmo” pela philips. a contracapa foi o jornalista júlio hungria que escreveu, e nesse disco é que está vinicius cantando pela primeira vez. tinha vários artistas, oscar castro nevs, lúcio alves, sylvia telles, quem mais? o da odeon tinha joão gilberto, outras pessoas que não lembro agora.

fiquei 11 anos na philips. saí de lá e passei à rge, de um empresário famoso chamado [henrique] lebendiger. era dono da rge e da fermata. fermata era a editora, e rge, a gravadora. quem fez a rge foi [josé] scatena, que era um comerciante que se dedicou ao disco, por um francês, jacques [não consegui entender o nome dito por joão, nem encontro referências a esse nome na fundação da rge – alguém ajuda?], e por boni, sabia disso? boni fez, foi um dos fundadores da rge. não sei se era sócio, sei que estava no grupo que fundou.

pas – você já tinha ligação com ele nessa época?

ja – não, nenhuma, só vim conhecer boni quando vim para a som livre. mas esse senhor tinha traçado para a vida dele viver metade do ano no brasil e metade no exterior. então ele queria ter alguém que fosse jovem – nessa época eu era jovem – para tocar os negócios dele aqui nesses seis meses que ele ficasse fora. fui esse homem, mas tive que pagar um preço por isso – quer dizer, não é pagar no mau sentido… eu tinha que morar em são paulo de segunda a sexta.

pas – já falou “pagar um preço” [risos], não tem como voltar atrás.

ja – não, eu adoro são paulo, mas eu não podia ter uma família no rio e trabalhar em são paulo permanentemente. adoro são paulo, até porque gosto muito de comer, e lá se come muito melhor. então minha vida era em cima de um trem, que eu tinha horror a avião. batizei o trem de caravana dos covardes. participávamos desse trem noturno, os encagaçados do ar, as seguintes pessoas: eu, flávio cavalcanti, vinicius de moraes, cyro monteiro, aracy de almeida, vê que time. era animadíssimo, a gente ia para o carro-restaurante, que fechava 11 e meia da noite. a gente tinha que dar um por for para o cara não fechar. ele fingia, ia embora, não foi uma nem duas vezes que fomos acordar, todos dormindo, na garagem do trem. o pessoal pisava fundo mesmo.

pas – o medo de avião passou?

ja – passou, porque não tinha como. com a som livre, numa outra fase, começamos a ir para o exterior. um dos projetos que eu tinha era levar a som livre pro exterior. eu tinha formado na minha cabeça esse modelo de gravadora que é a som livre, que era rentabilizar o tempo ocioso que toda tv tem e normalmente é aproveitada pelos departamentos comerciais das tvs para dar como bonificação ou [hesita] usar em projetos que não vendiam nada. esse negócio de rentabilizar era poder fazer algum tiopo de empresa que fosse ligada ao entretenimento, e a música era muito chegada à globo, estava muito presente, principalmente nas trilhas de novela, que eram feitas num acordo que a globo tinha com a philips. as primeiras foram feitas na philips, quando seu gerente era andré midani e nelsinho motta era o produtor. pelo primeiro convênio fizeram algumas novelas, “véu de noiva”, “irmãos coragem”. não lembro quais outras. e eu entrei porque a globo e a phiips brigaram, não entraram a um acordo para a renovação.

pas – tiraram você da rge para desenvolver um selo próprio?

ja – tiraram.

pas – só uma coisa que pulamos, quais eram os artistas da fase rge? tom zé costuma falar de você com carinho.

ja – no tempo do scatena, a rge foi uma grande lançadora de artistas brasileiros. maysa, por exemplo, foi lançada pela rge.

pas – também chico buarque, erasmo carlos…

ja – …sendo que erasmo não era mais da fase do scatena. estou falando dos mais antigos, agostinho dos santos. tinha uma orquestra lá famosíssima, não estou num dia bom para lembrar de tudo. zimbo trio, leny eversong. tem gente interessante, quer ver como vai surgir mais gente?

pas – vandré?

ja – geraldo vandré. a música do festival [“pra não dizer que não falei de flores” foi gravada na rge, antes de eu chegar. tom zé fui eu que levei para lá, é meu amigo pessoal. esse inclusive foi quem teve a ousadia e a coragem de pedir pra eu fazer a segunda parte de uma música que ele fez. me mostrou a música, falei: “tom, não está faltando a segunda parte, não?”. ele disse: “não, pra mim está completa, mas se você quer fazer a segunda…”. lembro até o nome dessa música, chama-se [força a memória]. ô, meu deus do céu… da segunda parte eu lembro, [cantarola] “as luzes da cidade já não cantam mais pra mim”… fiz a segunda parte, ele adorou, a música saiu, não vendeu porra nenhuma, mas eu fiz [risos].

PUBLICIDADE
AnteriorSPOEM
PróximoSTRAD VÁRIOS
Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome