da “carta capital” 510, de 27 de agosto de 2008.
CAYMMI VOLTA PARA O MAR
O compositor baiano nos lega uma obra simples, compacta e precisa
POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES
Em 1978, quando procurava traduzir seu ideário musical num texto explicativo, Dorival Caymmi cunhou uma definição precisa não só da obra iniciada em meados dos anos 30, mas de si próprio. Em raro momento de prosa, escreveu assim, no livro Cancioneiro da Bahia, de letras, cifras e comentários caymmianos: “Os negros e mulatos que têm suas vidas amarradas ao mar têm sido a minha mais permanente inspiração. Não sei de drama mais poderoso que o das mulheres que esperam a volta, sempre incerta, dos maridos que partem todas as manhãs para o mar”.
O mulato de sangue africano, italiano e português se referia ao imaginário norteador de parte substancial de sua criação, mas hoje parece nítido que oferecia também uma metáfora sobre o modo como ele enfrentou a vida, o trabalho e a arte. Nascido em Salvador, em 1914, e morto no Rio, no sábado 16 de agosto de 2008, ele lega ao Brasil um relicário musical compacto, conciso. Segundo documentou a neta Stella, na biografia O Mar e o Tempo (2001), são meras 101 canções, apresentadas ao longo de mais de sete décadas de presença na cultura local.
Cedo Caymmi descobriu-se pescador de canções. Fisgou-as em água salgada, na praia de Itapuã, e carregou-as na bagagem quando, aos 23 anos, pegou um ita no Nordeste e veio ao Rio morar, para sempre. A saudade da Bahia seria o eterno retorno do pescador musical, que faria fama e fortuna, aqui e alhures, a partir da associação com Carmen Miranda (1909-1955). Portuguesa criada carioca, a “falsa baiana” apanhou de Caymmi o samba O Que É Que a Baiana Tem? (1939) e os balangandãs que espalharia pelos filmes da Atlântida e, depois, de Hollywood.
São do Caymmi jovem e recém-exilado no Rio pedras fundamentais como Promessa de Pescador (1939), O Mar (1940), Noite de Temporal (1940), É Doce Morrer no Mar (1941, sobre texto de Jorge Amado) e A Jangada Voltou Só (1941), logo merecedoras da alcunha de canções praieiras.
O mar, como se sabe, foi o nutriente essencial do compositor-inventor que levantava vôo. Mas não era o único. Pouco se fala sobre isso, mas nas primeiras canções, como em muitas outras depois, a morte seria tema sempre à espreita, de a jangada saiu com Chico Ferreira e Bento/ a jangada voltou só a é doce morrer no mar/ nas ondas verdes do mar. Caymmi fazia-se porta-voz simbólico do operário braçal pobre e oprimido, e, nos cantos de trabalho que entoava, volta e meia a noite era de temporal.
A vida, o trabalho e a morte no mar voltariam de modo recorrente à voz de trovão de Caymmi. Outro ápice foi a aterrorizadora suíte História de Pescadores, que ocuparia metade do LP Caymmi e o Mar (1957). Ao mar, somaria um conjunto restrito e delimitado de temas, como a paixão pelo samba (O Samba da Minha Terra, 1940), as coisas e festas da Bahia (A Preta do Acarajé, 1939, Vatapá, 1942, Dois de Fevereiro, 1957) e, depois, os ritos do candomblé (Oração de Mãe Menininha, 1972).
Caymmi seguiu o curso da música gravada no século passado, da consolidação do disco como bem comercial na “era do rádio” à desmaterialização da música via iPod. Gravou nos modelos inaugurais as mais importantes criações. Quando, em meados dos anos 50, foi inventado o LP, de várias músicas reunidas num “álbum”, priorizou regravá-las, apenas as adequando aos novos figurinos. Lançado ao mar da indústria musical, foi à captura dos peixes-canções que já conhecia, e que não ficam em risco de extinção com sua morte.
Adquiriu pecha de autor “lento”, até “preguiçoso”, mas é que seu imaginário estava pronto, consolidado. A Caymmi, nunca interessou dourar pílulas de criatividade ou abundância.
O oceano musical ficava por vezes revolto e tornava instável a jangada caymmiana. Ele presenciou as rupturas que vieram, e até participou de algumas, numa química que nem sempre o artista mais velho e o mais novo conseguem (ou querem) produzir.
Nos anos 40, por exemplo, surgia uma antítese bombástica de Caymmi, chamada Luiz Gonzaga. Onde um era praia e mar, o outro era sertão e caatinga. Se um co-inventara o samba baiano, o outro esparramaria o forró pernambucano a partir do estrondo de Baião (1949). O que num era mansidão e idílio explodiu no outro como árida e bruta realidade. Pareciam incompatíveis, mas eram necessariamente complementares. Com Caymmi e Gonzaga (inclusive no patriarcalismo agudo de ambos), o Brasil teve de começar a compreender seu norte, seu Nordeste, suas entranhas.
Não se sabe se houve relação de causa e efeito, mas foi exatamente aí que a música de Caymmi sofreu a mais forte (talvez a única) virada. De repente se acariocou, abrandou o trovão e a veia social, foi cantar Copacabana. E cumpriu papel crucial na popularização do samba-canção, mais lento e menos marítimo que qualquer peça anterior. Nunca Mais (1949), Não Tem Solução (1950), Você Não Sabe Amar (1950), Sábado em Copacabana (1951), Nem Eu (1952) e Só Louco (1955) hoje soam como prenúncios em série da chegada da bossa nova, em 1958.
A guinada afastou-o da crueza de Gonzaga e o aproximou do futuro. João Gilberto tirou do baú de Caymmi vários dos sambas que vestiria de bossa, como Saudade da Bahia (1957) ou Doralice (1945). Caymmi apadrinhou o discípulo também baiano na gravadora Odeon. Nos anos 60, gravaria discos em parceria com Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Uma canção de Caymmi Visita Tom e Leva Seus Filhos, Nana, Dori e Danilo (1964) trazia a voz da cantora Stella Maris, que abandonara a profissão ao se casar com Caymmi. Ela não entrava no rol de convidados agraciados no título.
Idolatrado pelos tropicalistas de 1968, passaria mais ou menos ileso pelo próximo projeto arrasa-quarteirão de ruptura na música nacional. Nos anos 70, Gal Costa e Maria Bethânia popularizaram Oração de Mãe Menininha (as duas) e Modinha de Gabriela (a primeira).
O africanizado LP Caymmi (1972) foi o derradeiro a conter vários (e inspirados) temas inéditos. A partir daí, afastou-se progressivamente de nossa presença. Viveu a vida na brisa, com docilidade de pescador, um amanhecer após cada pôr-do-sol. Há três décadas já é história em estado bruto. Viveu 94 anos e foi descobrir (mas não nos contará) quão doce é morrer à beira do mar. O vento que o soprou ao encontro de Iemanjá foi o do mar adotivo, de Copacabana, não o de Itapuã.