e, aqui, a entrevista editada (não a versão integral, que está aqui, no ruído) com o cantor, como publicada na “carta capital” 499 (11 de junho de 2008). o compositor me disse que…
A FLOR E O ESPINHO
Com novo disco, Gilberto Gil fala do retorno à composição, do futuro no ministério e da morte. E nega estar com câncer
POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES
Morte, dor, horror, terror, fel, narcomarginais, molestadores sexuais, buraco negro, o oco do mundo. São alguns dos motes adotados pelo ministro da Cultura do Brasil ao retomar a trajetória de músico após 11 anos sem apresentar um disco individual de composições inéditas. Banda Larga Cordel chega antecedido por boatos recorrentes de que Gilberto Gil estaria com câncer na garganta. Ele nega os boatos, diz que retirou pólipos benignos da corda vocal e está em franca recuperação. Mas, em entrevista à CartaCapital, o tema espinhoso suscitou reflexões e revelações do ministro-cantor sobre a finitude da vida, o medo da morte e os problemas de saúde que ameaçam limitar uma de suas ferramentas essenciais de trabalho e prazer, a voz.
À reconquista da música em disco e shows, corresponde um distanciamento do Ministério da Cultura (MinC). Prestes a sair em licença e férias para uma turnê de quase dois meses por Europa e Estados Unidos, ele admite viver um “afastamento progressivo” da função governamental ocupada desde o início de 2003 e que, diz, o fez aperfeiçoar a “capacidade de engolir veneno”.
Banda Larga Cordel sairá no formato tradicional de CD em meados de junho, poucos dias antes de Gil completar 66 anos. Mas já está disponível para audição na íntegra na internet (em http://www.bandalargacordel.com.br/). Na entrevista, o cantor-ministro lamenta a falta de tempo e fala sobre o espírito briguento mais aguçado e a reconciliação do compositor com a musa inspiradora.
CartaCapital: O senhor tem dito que se reconciliou com a musa. Isso significa que estava brigado com ela?
Gilberto Gil: Não, eu só disse “fique quieta, não tenho tempo agora, não posso, não me futuque”. Então, pronto, ficava quieta. Eu não dava nenhuma atenção a ela durante os primeiros quatro anos no ministério. Se fosse dar ia ficar complicado, porque ela é exigente, você tem que dedicar a alma, o tempo, o corpo. Eu não tinha tempo. Depois, as coisas do ministério estavam andando, a gente já tinha se acostumado com a rotina, muito da demanda excessiva do início tinha passado. Já dava para flertar de novo com a inspiração. E aí, pronto, passei a escrever nas viagens, nos hotéis. Passei também a escrever as letras diretamente no computador, coisa que não fazia antes. Isso também facilitou, porque em todo lugar, no avião, nos intervalos de qualquer atividade eu tinha acesso ao computador e aí podia ir processando, copy-paste, ia montando.
Não Tenho Medo da Morte foi assim. Estava em Sevilha e levantei um dia, 8 horas da manhã, com aquela recorrência do tema da morte, que é um tema que tem estado, aqui e ali, no meu trabalho. Fiquei refletindo um pouco sobre essa coisa corriqueira que é o medo da morte. Estava defronte do computador, disse: “Ah, deixa eu ir no Word para registrar esse momento de reflexão sobre a morte que estou tendo aqui”. E comecei, não tenho medo da morte/ mas, sim, medo de morrer.
CC: (Toca o celular, é uma assessora do MinC, com quem ele negocia por vários minutos.) Já que a política o chamou, pergunto se, considerando as novas músicas, o senhor diria que a experiência política modificou sua música?
GG: Não. O desejo de me comunicar pela canção é informado pelos mesmos elementos de antes. A dimensão política sempre esteve na minha geração toda, e em mim também, muito fortemente. Continua, nas gerações de hoje, nos rappers. Algumas questões que coincidentemente estão na agenda do MinC, como a cultura digital, acabaram passando também. A canção Banda Larga Cordel é bem marcada por essa informação da política, de uns aspectos da política do ministério. Acho que eu teria ido para esse caminho mesmo sem o ministério, mas, sem dúvida, essa canção compartilha um impulso que está na política do MinC, e do governo todo, que é a preocupação com o acesso aos meios eletrônicos, o software livre, várias políticas.
CC: Não sei se tem a ver com a experiência política, mas sinto uma disposição maior de lidar com temas espinhosos, “narcomarginais”, “orientação sexual”, a morte…
GG: Não sei. Talvez. Não é consciente. É… Talvez o fato de eu ter tido que comprar algumas brigas no ministério… Talvez essa disposição tenha preparado o terreno para uma receptividade menos acanhada, menos duvidosa, a temas espinhosos. Eu não tinha me atido a essa análise, mas é pertinente. É possível, sim, que ter de discutir regulação e normas tenha estimulado um apetite por temas polêmicos.
CC: Parece que não só o senhor, mas os tropicalistas de modo geral, como Caetano Veloso e Rita Lee, têm mostrado um espírito mais exaltado e áspero ultimamente.
GG: Sim, o disco Cê, do Caetano, é muito nessa direção. Isso é um pouco a autorização geral que a arte contemporânea dá, não é? Tudo que nos momentos anteriores era ousadia, vanguardista, antecipação para além do seu tempo, coisas assim, hoje não é. É quase como se a gente estivesse dizendo: olha, também estou aqui, não se esqueçam de mim, eu também compartilho essa hiperexposição, essa tranqüilidade em tratar das coisas ásperas. Os rappers e os meninos fazem as coisas do jeito deles, mas a gente também faz (ri), a gente também está vendo. A gente acompanha o funk, o rap, e vê que os meninos querem poder falar abertamente de tudo. E a gente reivindica nossa contemporaneidade também.
CC: Na letra de Olho Mágico, o senhor fala sobre vasculhar seu armário, num momento histórico em que o Brasil tem saído de vários armários. O texto do caderno do Plano Nacional de Cultura, por exemplo, aborda várias identidades discriminadas, de indígenas, afrobrasileiros, circenses. E o senhor ministro, de quais armários tem saído?
GG: (Ri.) É… Bom… É meio pleonástico falar de sair de algum armário agora, porque essa tem sido sempre a nossa disposição. A gente sempre quis trabalhar assim, no campo da transparência, do exibicionismo nudista (ri).
CC: Uma maior identidade negra, talvez? Na regravação de Formosa há um suingue negro a mais que no original de Baden Powell e Vinicius de Moraes.
GG: A maturidade do artista vai dando a ele capacidade de liberar… Até acho que nesse disco sou muito contido do ponto de vista da capacidade de improvisar mais efusivamente, um pouco inibida por causa da minha voz. A abordagem é cuidadosa ainda em relação à questão vocal, estou saindo de um período difícil da minha voz. Eu era muito abusivo em relação a ela, em relação à qualidade, à matéria voz. Ao mesmo tempo, os impulsos que levavam àqueles abusos eram muito criativos. Eu usava muito a voz criativamente, com ruídos, gritos, falsetes extremados.
CC: O uso do falsete, que é muito característico seu, era abusivo? Os médicos falaram isso?
GG: Era abusivo. Os médicos me proibiram, praticamente. Há dois meses, fiz uma temporada nos Sescs do interior, e foi exatamente logo após a cirurgia na corda vocal, o período de resguardo, os alertas dos médicos. E eu ousei muito, gritei muito lá.
CC: Desobedecendo os médicos?
GG: Propositadamente (ri), também para ver o que é que é, se essa voz… se isso acabou, se tenho de arquivar completamente esse lado (cantarola A Novidade, fazendo o falsete).
CC: Não faça, por favor!
GG: (Continua, e ri.) Esse lado meu é ao mesmo tempo estranhado, mas festejado pelas pessoas. Sou muito saudado na rua com esse grito. É uma marca.
CC: É como um grito de guerra, e justamente ele ficou afetado?
GG: É, como um grito de guerra. Ficou afetado por essa perda de qualidade vocal. Então estou com muito cuidado para ver se isso se restaura inteiramente ou não.
CC: É constrangedor citar isso, mas numa redação chegam boatos a toda hora, alguns de que o senhor estava com câncer na garganta. Não é verdade?
GG: Não. Não tem, não teve. Já há dez anos eu tinha feito uma intervenção cirúrgica, a mesma cirurgia na mesma corda vocal. Naquela ocasião fizeram a biópsia do pólipo que foi extraído, e era benigno. E agora, de novo, também era benigno. Para além da dificuldade para o uso da corda vocal, não estou doente. E, além do mais, tem a questão da idade. Não sou mais tão jovem. As cordas vocais são músculos, e todos os músculos estão mais flácidos, exigem exercícios mais cuidadosos, mais focados. É o que tenho feito, fonoterapia, todos os dias, religiosamente. Hoje já fiz, faço em casa mesmo, sozinho, e volto ao fonoterapeuta a cada dois meses.
CC: O senhor fere um de seus principais instrumentos de trabalho, quando o acaricia?
GG: É isso. Outro dia um amigo meu disse: “Não se preocupe muito com essa coisa da sua voz, não. A voz mais rouca, mais suja, é sinônimo de maturidade” (ri). Eu disse: “Está bom”. Estou pronto também para a voz ir ficando mais suja. Vamos ver onde ela quer ir, onde quer me levar.
CC: Não Tenho Medo da Morte é muito forte…
GG: Aí é mesmo a maturidade, o senso da finitude que se torna mais exigente com a idade. Os jovens não trabalham muito com essa questão… O jovem descarta a questão da finitude, como se flertasse um pouco com a possibilidade do eterno. Mas a questão da morte, da finitude, dá a liberação para o presente, né? Você diz “só tem o aqui e agora, então vamos lá, vamos fundo”. Mas, olha, sem dúvida alguma esses cinco anos de ministério me deram uma têmpera que eu não imaginava que podia ter. Um estômago, uma capacidade de engolir veneno (ri). Aquilo ali é espinhoso, estar ali é espinhoso. Os meus melhores amigos não me desejavam isso. Todos eles, ao contrário, queriam muito que eu não fosse para lá.
CC: É uma maldição da política, como se todo mundo que está ali fosse ruim?
GG: É isso. Como se necessariamente estar ali significasse a anulação absoluta de qualquer positividade. Não é assim.
CC: O senhor comprovou que não é assim? Ou que é assim?
GG: É assim, mas não é assim. Aquilo está nas suas mãos. A política também tem de ser uma arte, você tem de fazer daquilo ali alguma coisa.
CC: Outro boato recorrente é sobre se sai ou não sai do MinC. A missão está cumprida?
GG: Estou cumprindo. Quando decidi ficar, em dezembro do ano passado, eu disse ao presidente que só voltaria a conversar com ele sobre isso no ano que vem. Quando ele se reelegeu, eu já tinha decidido ficar por um ano mais. Fiquei o primeiro ano do segundo mandato e aí fiquei o segundo. Vamos ver.
CC: Mas a impressão é de que há um afastamento progressivo.
GG: Sim, sem dúvida. Eu preciso disso.
CC: E Juca Ferreira está assumindo as atribuições?
GG: Está lá, fazendo, trabalhando. Há processos que começam a se automatizar, a se autonomizar, a caminhar sozinhos. Mas eu, sem dúvida, estou caminhando para uma coisa de, seja lá quando for, deixar o ministério. Vai ter de deixar uma hora (ri), e pronto. E a idéia é deixá-lo bem, pronto, preparado.
CC: No começo eram freqüentes comentários de que Gil no ministério era a “rainha da Inglaterra”. Isso diminuiu, mas outros ministros não poderiam fazer essa mesma transição sem fortes críticas. Não é um precedente perigoso?
GG: Isso foi sendo autorizado aos poucos. São as características de cada ministério. O da Cultura por natureza é mais permeável a esse tipo de ousadia. Tanto é que no mundo todas as pessoas apreciam essa dupla presença. Mesmo aqui, foi cada vez ficando mais. Agora é muito explícito, muitas pessoas manifestam uma admiração pelo modo exitoso com que a gente processou essa simbiose.
e, em seguida, eu “disse” ao compositor, em ligeira intervenção “crítica” (já ouviu o “disco”, na internet?), que…
SANGUE, SUOR E ALEGRIA Em Banda Larga Cordel, o fino equilíbrio entre as canções sobre dor e horror e os temas mais leves e bem-humorados
Pode ser a reflexão sobre a morte, a rispidez da política, as brigas compradas no governo, a oratória adquirida como ministro, ou tudo isso junto e misturado, mas fato é que Banda Larga Cordel apanha Gilberto Gil com o discurso mais aguçado que nunca. O disco contém 16 músicas, várias delas de letras caudalosas e dilatadas, repletas de duplos sentidos, observações rascantes, mansas ironias, reflexões e recados.
Um ápice de transparência e nudez acontece em Não Tenho Medo da Morte, o reverso de Se Eu Quiser Falar com Deus (1981), que no clímax oferece versos assim: Não tenho medo da morte/ mas medo de morrer, sim/ a morte é depois de mim/ mas quem vai morrer sou eu/ derradeiro ato meu/ e eu terei de estar presente/ assim como um presidente/ dando posse ao sucessor/ terei de morrer vivendo, hein,/ sabendo que já me vou. À inspiração poética, corresponde idêntica agudez musical, num arranjo emotivo de cordas como poucos criados por ele em mais de quatro décadas de música.
Se Não Tenho Medo da Morte trata do tema-tabu com delicadeza, mais áspera e direta é O Oco do Mundo, na qual Gil experimenta com música eletrônica. Diz a letra repleta de cruéis engenhosidades: O oco do mundo então/ já no meu interior/ pedaço de pau na mão/ fazendo de mim tambor/ batendo, tirando som/ o sangue, suor e horror/ o oco do mundo então/ encarnação do terror.
Tais exemplos não significam que estejamos diante de um trabalho amargo ou mal-humorado. São abundantes as canções balançadas, alegres, leves (e apimentadas), como o xote Despedida de Solteira, o reggae Os Pais (de letra séria, entretanto, os pais, os pais/ estão preocupados demais/ com medo que seus filhos caiam nas mãos dos narcomarginais/ ou então nas mãos dos molestadores sexuais/ e no entanto, ao mesmo tempo, são a favor das liberdades atuais) e um bom número de sambas.
A preocupação política também aparece aguçada, mas pertence ao território da leveza, como na extensa e divertida faixa-título ou, política da música, em Máquina de Ritmo, um manifesto em prol da constante modernização do samba. O espírito misturador do caldeirão tropicalista prevalece, em ijexás, forrós, souls, bossas e fossas. Mas, desta vez, a aspereza tropicalista parece sair do armário de modo inédito. E, em conseqüência, há espaço equânime para a flor e o espinho. – PAS