então, aí eu fui pela segunda vez assistir a “chega de saudade”, da laís bodanzky, e queria falar umas coisinhas sobre esse filme.

mas, como não sou, er, “crítico de cinema”, peço licença para ser (se conseguir) um pouquinho sentimental, ok?

é que da primeira vez assisti numa sessão para jornalistas e fiquei (sei lá se exatamente por essa razão) levemente tenso, travado, bloqueado para certas provocações emotivas que o filme faz (e, nossa, isso me acontece tantas vezes em shows, também; às vezes até, vai ver, porque eles não são mesmo emocionantes, mas… vai saber, lalaialaiá…).

só que aí fui de novo, atraído por sei lá o quê que o filme tem (e pelo prazer de acompanhar quem me acompanhava), e… fiquei lá chorando, durante um montão de cenas (e no final, ah, o final, que final!…), feito um bobão, todo arrebatado pelo discurso nada inofensivo, nada ingênuo, nada truculento, nada duro, nada tolo, nada frio do filme da bodanzky.

a propósito, e antes que eu me esqueça: yeah, trata-se de um filme brasileiro, e eu quero dizer acima de tudo que eu sinto um enorme orgulho desse filme e do fato de ser contemporâneo e conterrâneo desse filme.

posto isso, umas notas livres, leves e soltas (espero), sobre “chega de saudade”, então:

* tenho ouvido várias pessoas dizerem como o filme é “triste”, como o acharam “triste”, “melancólico”, “doloroso”, tal e coisa. eu próprio achei justamente isso na primeira vez que vi, a ponto de sair da sala escura com um baita nó na garganta. mas, ai, será que é “triste” mesmo? onde é que tá tanta “tristeza”, se tem tanta “alegria” deslizando junto no salão? “chega de saudade” não é “triste” como a vida é, não é “alegre” como a vida é?

* pelo menos dentro de mim, a idéia da “tristeza” se atou a princípio à idéia da “velhice”, mas, puxa, nem sobre a “velhice” o filme é propriamente! estão lá o paulinho vilhena, a maria flor, a cássia kiss (ops, quase falo “cássia eller”, amoroso ato falho…). e o salão de baile de “terceira idade” do filme, nossa, é tão, tão, tão parecido, na organização social e na estrutura das relações, com lugares que conheço como a palma da minha mão, tipo a loca, a torre, o glória etc. de tal. “terceira idade”? pfff.

* e o filme tem tanta diversidade (etária, de gênero, até de cor da pele), mas, hmmmm, mas e gays? não há gays em “chega de saudade”, ou eu é que não enxergay? ficaram todos lá na av. vieira de carvalho?

* me parece que “chega de saudade” possui dois grandes blocos de personagens, ambos interessantíssimos, ambos riquíssimos. de um lado, há os essencialmente amargurados, os sempre previamente vestidos a rigor para o baile do rancor: os de leonardo villar, betty faria, paulo vilhena (que amargura não tem idade, né?)… de outro, há aqueles que se vestem de leveza, de gana, de vontade de viver: os de stepan nercessian, cássia kiss, tônia carrero (essa com alguma ambigüidade)…

* não são estanques, os dois grupos. há personagens que transitam de um para o outro (e de outro para um), como os de maria flor, miriam mehler, jorge loredo (ele!, o zé bonitinho!, desconcertante e comovente participação)… e há os que se mantêm misteriosos, impenetráveis, como os de clarice abujamra, elza soares, marku ribas… fauna riquíssima, florescente.

* e, nossa, há o personagem de marcos cesana, o garçom, que é uma coisa, uma coisa, uma coisa. mal percebi as cenas dele na primeira vez que vi, mas, ai, na segunda… é de uma grandeza a atuação daquele garçom bailando a bandeja na mão entre os que bailam só no sapatinho. é o síndico, o anjo da guarda, o capataz, o guardião. e sonha se aposentar (leia-se envelhecer) logo, para poder enfim pular da periferia para o centro dos acontecimentos (ou estou confundindo, e é outro personagem que sonha esse sonho? o barman, será?). de ficar chorando escondidinho, no cantinho.

* o que é a betty faria, o que é a sempre sexy-e-gostosona betty faria encarnando aquela mulher que ninguém quer tirar para dançar, aquela mulher lotada de mágoa-por-dentro-guardada, aquela mulher linda de doer que sai reclamando que os homens a acham “baranga”? nossa, nossa. não é qualquer atriz (ou ator) que peita tamanho encontro com espelhos quiçá assustadores, ou tô enganado?

* o que é o personagem do stepan nercessian, que inverte toda e qualquer expectativa e perspectiva, e começa parecendo “escroto”, mas no final você descobre no fundo do peito que não era nada daquilo (e descobre, ainda por cima, que ele faz carretos, como esclarece uma das cenas finais)? nossa.

* bem, e tem a música, né? ai, que vontade quentinha de chorar quando toca martinho da vila (“disritmia”, “mulheres”), quando toca reginaldo rossi (“meu amor, meu bem, ma femme”, “tô doidão”), quando toca jorge ben (“bebete vambora” – bebetty?!), quando marku ribas solta o vozeirão, quando a câmera entra pela boca de elza soares, quando elza canta “lama” ou evoca alcione (“não deixe o samba morrer”), quando se (re)misturam erasmos-caetanos-simonais-dorismonteiros (“de noite na cama”), cubanismos (“tequila”, “cha cha cha”), lulus-santos (“como uma onda”), boleros, ritas-lee (“lança perfume”)…

* a música, por sinal, comenta astuta e ferinamente o enredo do filme, o tempo todo, sem trégua. sem perceber, o dj paulinho vilhena solta reginaldo rossi no salão, “tô doidão, tô doidão, bicho, tô doidão/ porque roubaram minha mina dentro do salão”, no exato instante em que a letra talvez esteja se materializando bem em frente, com a mina dele, do dj, a maria flor. paulinho entra em parafuso, não era para menos, né? mas esse é só um exemplo, eles acontecem às dezenas.

* e a abundância e a exuberância dos figurantes, dos casais que rodopiam graciosamente pelo salão à chapeleira negra e velhinha que tricota para passar o tempo enquanto o baile corre solto dentro do salão? meu deus, nem tenho palavras.

* enfim. não é que eu conheço aqueles personagens todos, todos, todos (alguns deles, por sinal, sou eu mesmo, ou somos pedaços de mim), como as palmas das minhas mães? (n)os conheço menos idosos, talvez, vários, ou menos isso ou menos aquilo, mas sinto conhecer todos, um por um. conheço até mesmo o cenário, o salão do espaço fraterno, lapa paulista, pompéia, vila romana, onde uma vez fui a um baile de aniversário do xu, cujos freqüentadores éramos tão diferentes dos personagens do filme, e ao mesmo tempo tão semelhantes a eles.

* me perdoem os entusiastas das jóias hollywoodianas e/ou das sutilezas do cinema asiático, mas essa familiaridade que me provoca um filme como “chega de saudade” (ou outro como “juízo”, de outra mulher-cineasta, cuja sala estava dramaticamente vazia na sessão a que fui) eu não troco por nada neste mundo.

* não há nada neste mundo que me cause tanta vontade (boa & ruim) de chorar quanto o quintal da minha própria casa (talvez seja por isso mesmo que fujo tanto de lá, não seja?).

* ai, e, façavor, não me enche mais o saco com essa lengalenga nhenhenhém chororô friquetrique de que “o cinema brasileiro não presta”, “a música brasileira não presta”, “a política brasileira não presta”, “o brasileiro não presta”, “o brasil não presta”? não cola, essa cola d’água cansou de colar já faz um bom bocado de tempo. e, não, nem vou cantar, como naquele hard-forró arrasa-quarteirão presente no filme, que “você não vale nada, mas eu gosto de você”. chega de melancolia, chega de auto-sabotagem, t’esconjuro.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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