política? política cultural? xiiiii…

será tabu debater esse tipo de assunto sem ser brandindo uma ameaçadora faca estripadora nas mãos, o canto da boca espumando sangue, os olhos cuspindo fogo?

e ainda por cima colocar o termo “periferia” na equação?

e vislumbrar um horizonte de possíveis notícias “positivas”, para além da tempestade apocalíptica ininterrupta que enche de dinheiro as burras dos impérios de comunicação? (e as notícias que vêm de lá de dentro, você cultiva o hábito de acompanhar?)

ficam aqui uns convites.

reportagem extraída da “carta capital” 467, de 24 de outubro de 2007.

A PERIFERIA NÃO IMPORTA
O “PAC da cultura”, de 4,7 bilhões, é recebido sem entusiasmo

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Ouve-se um silêncio ensurdecedor no Brasil desde o último dia 4, quando o ministro Gilberto Gil lançou, na presença do presidente da República, o Programa Mais Cultura, também (des)conhecido como “PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) da cultura”. Foram anunciados investimentos de cerca de 4,7 bilhões de reais até o final do governo, destinados prioritariamente a municípios com os maiores índices de violência e os menores índices de educação básica, áreas de conflito, territórios de identidade (como reservas indígenas e comunidades quilombolas), favelas, periferias e regiões rurais.

A imprensa compareceu em peso à solenidade, mas nos dias seguintes as notícias publicadas foram escassas e telegráficas. A comunidade cultural, que se insurgiu agressivamente contra o Ministério da Cultura (MinC) em episódios como a tentativa de criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), se calou.

Há quem aponte, mas apenas sob a condição do anonimato, um possível viés assistencialista ou de um suposto pendor populista do PAC cultural. Isso seria detectável na disposição de um parágrafo do decreto que instituiu o Mais Cultura, de que “as regiões do Semi-Árido e do São Francisco são, para fins deste artigo, prioritárias”. Mas, em público, a (pouca) repercussão oscila entre o silêncio e o elogio. Um crítico feroz em episódios anteriores, o produtor Luiz Carlos Barreto afirma, provocado por CartaCapital: “O PAC cultural representa um avanço histórico. Até esta data nunca se elaborou um plano visando estabelecer políticas públicas de forma sistemática para a cultura”.

Gilberto Gil interpreta as reações silenciosas: “A imprensa vive basicamente do mal do mundo. É como no jargão americano, ‘bad news is good news’. Estamos dando boas notícias que não estão na linha de conflito, divergência e polêmica”. E ensaia uma leve provocação: “O silêncio também pode significar aprovação, ausência de questionamento”.

O aporte anunciado até 2010 é de 2,2 bilhões de reais vindos do orçamento da União e 2,5 bilhões de reais oriundos de parcerias, contrapartidas, financiamentos e patrocínios por leis de incentivo. “É um programa com abrangência e escala, que poderemos fazer com números, quantitativamente, no País inteiro”, diz Gil. “Dos 4,7 bilhões previstos, pelo menos metade é de recursos que serão executados em outros ministérios, em programas conjuntos”, explica.

Com o Ministério da Justiça, foi firmado acordo para implantar nos territórios com os maiores índices de homicídios do País 384 Pontos de Cultura (um dos eixos centrais da atual gestão, em geral ignorados pelo noticiário), oito Pontões de Cultura e sete bibliocas multiuso.

“A idéia é não tratar o problema da violência só como questão de polícia”, justifica o secretário-executivo do MinC, Juca Ferreira. “Os índices atestam uma enfermidade social profunda, que afeta primeiro as comunidades carentes, sem acesso a saúde, educação, cultura. Em geral só se fala em polícia, e como não está dando certo se exige cada vez mais ação violenta, a ponto da histeria, da exigência de extermínio”, diz, em defesa da utilização de cultura como ferramenta antiviolência.

Há sinais de que a dita comunidade cultural não se sente a princípio tocada pelo PAC da cultura. “É mais direcionado à base da população, não aos produtores culturais e artistas de classe média. Prioriza a feitura de cultura como promoção de cidadania, pela população, e não pela nossa categoria”, diz o presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, Ney Piacentini.

“Ou o meio cultural concorda que o governo dirija atenção para o lado mais carente, ou então está tão preocupado com o próprio umbigo que nem percebeu. O meio profissionalizado só se interessa por uma notícia quando há dinheiro envolvido. É uma visão curta, por parte de um meio que quer questionar, que pretende ter um ponto de vista crítico”, ele completa.

Diz o presidente do Sindicato da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo, André Sturm: “É uma iniciativa muito boa. Lembra aquelas coisas muito grandes, ambiciosas, cheias de grandes intenções. Vai depender de como serão alocados os recursos. Numa primeira impressão, o cinema não parece algo que sofrerá um impacto significativo. Parece ser relativamente inócuo para o setor”.

“O programa me surpreendeu, porque é uma atitude real, factível, que integra ministérios, torna a cultura uma questão de Estado. A preocupação é como se vai dar a distribuição dos recursos”, diz Carlos Zimbher, que preside a Cooperativa de Música. “O fato de as pessoas terem mais acesso beneficia a cultura de um modo geral, mas não senti que efeito direto possa ter para a música, para um músico”.

O impacto não deve ser pequeno, se forem de fato cumpridas metas como a de zerar o déficit de bibliotecas nos municípios brasileiros e a de fazer os Pontos de Cultura instalados pelo País saltarem dos atuais 630 para 20 mil até 2010.

Quanto aos Pontos de Cultura, discorre Juca Ferreira: “Com eles, o Estado reconhece a cultura que é feita nas comunidades. Gera-se qualidade de vida, sensação de pertencimento e uma economia informal que cabe ao Estado qualificar. São um sucesso, estão conectados em rede, repercutem para fora do próprio gueto”.

Para o editor Felipe Lindoso, autor do livro O Brasil Pode Ser um País de Leitores?, a meta de levar bibliotecas a todas as cidades do País é factível. “O governo avançou bastante nessa questão. Até 2003, avaliava-se que cerca de 20% dos municípios não tinham nenhuma biblioteca. Os números atuais indicam que cerca de 600 municípios ainda não têm. Ou seja, o programa do MinC já atingiu metade do que havia antes. Outra coisa é a renovação e modernização das bibliotecas existentes. Quanto a isso, pouco foi feito.”

Lindoso diz que não vê pontos negativos no Mais Cultura, mas parece sugerir dúvidas quanto à execução. “É incontestável que o ministério não tem estrutura. Não tem delegacias em todos os estados, não sabe o que acontece efetivamente com os recursos que transfere, não sabe se as bibliotecas estão abertas, se os Pontos de Cultura estão funcionando.”

Ferreira sugere que o patamar quantitativo inédito do programa deve colocar o ministério na mira de novas cobranças. “Solicitamos a parceria da Controladoria Geral da União (CGU) para que não haja desvio de dinheiro. Esta gestão do MinC está até hoje transparente, republicana, em estado de excelência ética”, diz, em tom de desafio.

Outro ponto sensível que ressurge é o da “contrapartida social”, que no início do primeiro mandato causou gritaria geral no establishment cultural e colocou Gilberto Gil em contraponto com o ministro Luiz Gushiken. Então contrário à contrapartida, o MinC ajuda a relançar o conceito, primeiro num decreto de 2006 e agora numa portaria que disciplina a democratização do acesso a bens culturais, inclusive em relação às leis de incentivo. Assinada no dia 4, a portaria ainda não foi publicada no Diário Oficial.

Fala-se, ali, na obrigatoriedade de “distribuição gratuita de obras ou de ingressos” por parte de beneficiários dos programas de incentivo, como medida de promoção de igualdade de oportunidades.

“O MinC tem tentado mudar a Lei Rouanet, mas em alguns casos de forma sub-reptícia. Lei se muda no Congresso, mudar por portaria fere o Estado de direito”, critica Lindoso. Ferreira diz que o ministério “se atrasou” na “necessária” modificação da legislação, mas garante que isso será feito por projeto de lei.

Outro projeto que deve ser atrelado ao PAC é o Vale-Cultura. “O maior impacto será a possibilidade de recolocar de 30 a 40 milhões de espectadores nas salas de cinema. Com o vale cultural, a população trabalhadora de baixa renda voltará a freqüentar cinema, teatro, comprar livros, discos”, opina o produtor Barreto.

Ney Piacentini aborda a contrapartida por outro ângulo: “Dizem as línguas que os produtores não vão querer a burguesia misturada com o populacho num mesmo palco, e aí haverá um afastamento da iniciativa privada da Lei Rouanet”.

Mesmo sob esse aspecto, o silêncio é ensurdecedor.

*

a seguir, “bônus track”, uma transcrição da rápida entrevista telefônica com o ministro que originou as declarações inseridas na reportagem.

pedro alexandre sanches – o sr. faria uma tradução do programa mais cultura para a vida real? em que ele pode e pretende modificar, alterar, melhorar o cotidiano dos brasileiros?

gilberto gil – se a gente considera, e tenho impressão que a sociedade brasileira vem compreendendo essa consideração cada vez mais, que a cultura em todas as suas dimensões é um bem essencial para a vida das pessoas, e além disso um direito, um programa desse se coloca como um atendimento a essas considerações. é um programa que cria escala, aproximando-se da dimensão das necessidades brasileiras, pela grande população que o brasil tem, pela grande variedade de formação cultural ou de formações culturais que tem. então uma possibilidade que dá escala a um trabalho já ambicioso de ampliação da visão de cultura, da abrangência da cultura no brasil, é um programa com abrangência e com escala. abrangência no sentido das variedades todas, culturais, do ponto de vista sociológico, de tratos sociais diferenciados, do ponto de vista econômico das diferentes classes. e em escala, porque é uma coisa que podemos fazer com números, quantidades, quantitativamente, de uma forma bem ampla no país inteiro. vamos sair de um para dez, em termos de escala.

pas – uma coisa bastante evidente nele é que pretende um atendimento à populações mais carentes, de regiões mais violentas, e assim por diante, um conceito diferente daquilo que nos acostumamos a entender como a dita comunidade cultural do brasil. há uma mudança de foco?

gg – é por isso que falei da abrangência. o conceito cultural do brasil, nesta nossa gestão, está ganhando uma outra abrangência, que nós acreditamos que não é apenas um capricho nosso, um viés nosso ou uma vontade nossa. é uma necessidade do país, da nação inteira, e é um atendimento a uma visão contemporânea de cultura, que se instala no mundo inteiro. veja que nós acabamos de aprovar na unesco um estatuto internacional de alto porte, de alto significado, que contempla exatamente a diversidade cultural como uma característica importante da civilização moderna, que precisa ser atendida. então um programa como esse está na linha desses atendimentos, de visões dessa ordem.

pas – ele pode ajudar, desse modo, a transformar a cultura brasileira e o brasil?

gg – evidentemente. não diria transformar, mas ajudar que ela se estenda, se consolide em profundidade e em extensão, naquilo que ela pretende ser, precisa ser e possa ser. é um país com uma diversidade cultural imensa, com manifestações de extrema originalidade, com uma importância muito grande para a transformação do mundo, da humanidade, não só do próprio brasil. a contribuição própria, particular que o brasil pode dar para o mundo hoje é reconhecidamente importante para o processo civilizatório todo. então, se a gente mexe aqui nessa questão, como eu disse, com abrangência e com escala, a gente está dando uma contribuição importantíssima para o país e para o mundo.

pas – em outros momentos e ações dessa gestão do minc, houve muita controvérsia e muita discussão. o programa mais cultura foi lançado já faz algumas semanas, e parece haver um silêncio forte ao redor dele. não parece mobilizar a mídia, nem para o lado positivo nem para o positivo. como o sr. interpreta isso?

gg – olha [ri], não sei lhe dizer. como a gente conhece muito bem, a imprensa vive do mal do mundo, basicamente. ‘bad news is good news’, é um jargão americano celebradíssimo no mundo inteiro. é um pouco por causa disso, estamos dando boas notícias que não estão digamos assim na linha de conflito, de produção de divergência, de polêmica. acho que a leitura que a imprensa faz é “não estão fazendo nada mais que a sua obrigação” [ri].

pas – e como o sr. recebe essa leitura, ao lançar um programa dessa extensão?

gg – aí não sei, isso aí a imprensa é que tem que dizer, não é uma resposta que eu possa dar. é papel da imprensa, não sou eu que vou dizer, se a imprensa diz “não, é assim mesmo”… isso nós não temos que abordar com ênfase nem ver com entusiasmo, porque é nada mais que a obrigação do estado que está sendo cumprida. essa é uma forma de ler. outra seria dizer que, não, isso é uma coisa excepcional, afinal de contas é uma coisa positiva que está se conseguindo, que tem essa coisa da abrangência e da escala, que é nova, e tudo isso deve ser noticiado, celebrado como notícia, como importância noticiosa, e portanto deveríamos dar mais espaço. essa é uma outra leitura. mas, aí, essas perguntas sobre leituras desse tipo ou de outro tipo, escolhas a serem feitas pela imprensa, é uma resposta que só a imprensa mesmo pode dar, não é? essa pergunta tem que ser feita a seus colegas.

pas – uma coisa que já abordamos em outra ocasião é a instância autocrítica: o que haveria na capacidade do ministério ou do governo em comunicar essas boas notícias, de sensibilizar a imprensa e a população. sei que isso não é totalmente verdade, porque soube que havia muitos jornalistas no lançamento, mas mesmo assim no dia seguinte as reportagens não apareceram.

gg – justamente.

pas – não há algo errado no próprio modo do governo se comunicar, nesses momentos?

gg – não sei. é uma questão que já vem sendo levantada, o que é a boa comunicação, o que é a comunicação eficiente, o modo ágil de trabalhar com a comunicação social hoje no brasil, especialmente do ponto de vista do governo. também não sei direito o que é isso. há a visão produtivista da comunicação, que perpassa o setor privado, por exemplo, e que confere a ele uma aura de eficiência e de capacidade de comunicar rapidamente os marketings etc. tudo isso, transposto para a área do governo, do estado, não sei em que medida é a mesma coisa, até que ponto são os marqueteiros que têm que trabalhar a comunicação social do governo ou não. é uma outra questão também que não sou eu que tenho que responder. há várias possibilidades. a gente trabalha de uma forma mais clássica, partindo primeiro do pressuposto de que o interesse público é sempre básico, prioritário e importante. portanto, tudo que está sendo feito pelo estado tem que ser divulgado e promovido, para tudo, para que haja crítica, aplauso, tudo. a gente trabalha com essa visão, de que a notícia do trabalho do governo é importante. portanto, a mídia deve estar atenta, trabalha com isso, basicamente as notícias sobre desempenho do estado estão nas primeiras páginas do jornal o tempo todo. mas em geral estava dentro daquela questão que a gente conversou antes, “bad news is good news”, quando a coisa é polêmica, provocativa, negativa, constrangedora etc. etc.

pas – até mesmo nesse sentido, sendo um projeto que lida com grandes questões e com escala, como o sr. disse, o fato de a repercussão negativa não ter havido também, como poderia ser interpretado? desta vez não há interesses contrariados?

gg – quando você falou, no início, que havia um silêncio, eu pensei logo: um silêncio significa aprovação, digamos, a ausência de questionamento. porque para a imprensa fazer alarde de uma coisa desse tipo, só se fosse a partir de uma sensação de coisa mal resolvida, mal digerida, mal acatada.

pas – sua expectativa é que essa leitura negativa não aconteça, já que não aconteceu num primeiro momento?

gg – espero que não. acho que, tudo bem, lançou-se esse programa, tem abrangência e tem escala, ataca problemas importantes na relação da cultura com a vida social do país, com segurança, meio ambiente, saúde, educação etc. “Ah, que bom, não estão fazendo mais que a obrigação, vamos agora ver se funciona” [ri]. acho que é sempre essa, basicamente, a visão que a imprensa tem das coisas. “vamos ver se o dinheiro sai, se o programa funciona, se o governo tem fôlego para executar nessa abrangência e nessa escala.” ali, se não tiver, provavelmente estarão preparados para dirigir as baterias contra nós. mas é assim mesmo.

pas – como está seu fôlego dentro do minc para enfrentar os desafios que vêm a seguir?

gg – está de bom tamanho. e eu diria que seria muito difícil executar coisas nessa escala com a envergadura que o ministério tem de cargos etc. mas, como vamos executar transversalmente com o governo… dos 4,7 bilhões previstos, pelo menos metade deles são recursos que vão ser executados em outros ministérios, com programas conjuntos com outros ministérios. isso também vai facilitar um pouco nossa vida do ponto de vista de estarmos preparados como estrutura para trabalhar uma coisa desse tamanho.

pas – eu queria que o sr. destacasse alguns pontos que considera de maior ou de fundamental importância dentro do programa. o que ele traz de realmente inédito e importante?

gg – eu não destacaria assim… alguns deles são extensões de programas que já estão sendo realizados pelo ministério, alguns outros vão começar – é a transversalidade, ou seja, o trabalho com outras áreas, como é caso da educação, da saúde. a criação dos agentes de cultura é importante, porque vão trabalhar levando a lógica dos agentes de saúde e de outros setores para a cultura, fazendo transversalidade com esses outros setores. acho uma coisa auspiciosa. a ampliação dos pontos de cultura, um programa já consagrado do ministério, é uma coisa auspiciosa. sair de mil pontos para possíveis e prováveis 15 mil ou 20 mil pontos eu também destacaria.

pas – em pronunciamentos recentes o sr. mencionou uma vontade de sair do minc, como está isso hoje?

gg – não, eu já esgotei minhas explicações sobre isso. estou no governo, estou aí no ministério, trabalhando, lançando esse programa, articulando as áreas todas do ministério e as outras áreas do governo para fazer tudo isso. estou trabalhando, a perspectiva é trabalhar. a última declaração que dei dava conta de que com certeza até o fim do ano ou janeiro do ano que vem eu estarei no ministério.

pas – pergunto isso porque este parece ser um momento de retomada de fôlego, um projeto que renove o…

gg – …o entusiasmo, o interesse, é. pode ser isso, sim, também. é um dos significados de termos conseguido o que conseguimos agora.

o ministro tem de desligar, vai tomar o próximo avião, precisa embarcar.

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