O TEMPO DELE É HOJE (*)

Paulinho cria as primeiras músicas inéditas em 11 anos, põe dois filhos na banda e fala do desapego pelo disco

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Autor de sambas belos e melancólicos como Dança da Solidão (1972), Sinal Fechado (1969) e Na Linha do Mar (1973), Paulinho da Viola anda transbordando alegria. É o que se pode notar no documentário que acompanha o DVD recém-gravado para o modernoso projeto Acústico MTV, no qual histórias contadas pelo artista de 64 anos levam os colegas músicos a sonoras e gostosas gargalhadas.

O efeito se reproduz na entrevista que o sempre sério e compenetrado artista concede a CartaCapital. As histórias soam engraçadas, mesmo que não sejam. E ele exprime prazer especial em relembrar situações difíceis em que se meteu pelo lado oculto da vida de um músico, quase sempre vivido longe dos olhos e ouvidos da grande maioria do público. “A gente enfrenta de tudo, cara”, resume, no rosto uma expressão entre desconsolada e divertida.

Um exemplo: “A primeira vez em que toquei neste espaço (a entrevista se dá no saguão do hotel Maksoud Plaza, em São Paulo) foi uma das piores coisas que aconteceram comigo. Uma das inúmeras. O show começou, aplausos, quem estava sentado bebendo se virou para ver. Mas um homem ficou o tempo todo de costas para mim. O tempo todo. É um direito dele, claro, vou dizer o quê?”.

Admite que a indiferença do não-espectador o perturbou e desconcentrou, e conta como fez para contornar a situação. “Teve uma hora que disse para mim: olha, essa pessoa não existe (risos), é um fantasma que está aí, deve estar ouvindo, curtindo, só não quer ver”.

Outro caso: “Conheço uma pessoa de Campina Grande (PB), o Silvestre, que trabalha numa grande indústria de couro. Eu estava fazendo o Projeto Pixinguinha lá, e no meio do show uma gambiarra quebrou e caiu em cima do público. Parei, pedi calma, tiraram uma pessoa que se machucou. Anos depois o encontrei em Copacabana com a família, veio conversar comigo, disse: ‘Era eu, quebrou meu nariz, tenho o maior orgulho disso!’ (risos)”.

Recorda-se de Belarmino, técnico de som num show em Juiz de Fora (MG). “Fazíamos muitas coisas com os estudantes, estava lotado, a turma começou a chegar cedo. Mas a mesa de som do Belarmino queimou, ele estava resolvendo. Passaram-se horas, voltou dizendo que não tinha achado mesa nenhuma. As pessoas na platéia já queriam quebrar tudo. O pessoal da organização começou a sumir. Sumiu todo mundo.”

Ele conta o desfecho: “Quando percebi que algo ruim ia acontecer, entrei no palco, sem ninguém me chamar. O público urrava, eu não tinha microfone, comecei a gritar, pedi que quem estava nas primeiras fileiras fosse falando para os de trás. Prometi que voltava na quinta-feira seguinte, que os ingressos iam valer. O clima foi serenando, o pessoal foi saindo. Na outra quinta voltei e fiz o show, tive que ir de ônibus”.

Aquele incidente, totalmente “acústico” e sem música, contrasta com o chamariz da marca Acústico MTV a que Paulinho agora adere. Ele mostra saber da inadequação do título do projeto. “Não sei o que chamam ‘acústico’. Já toquei até com sintetizador, nos anos 80. Uso baixo elétrico desde os anos 70, no próprio show uso violão eletro-acústico. O acústico total, sem nenhum microfone, é impossível.”

O repórter comenta que ficou preocupado num show recente no teatro Fecap de São Paulo, em que Paulinho esquecia algumas letras, parecia não estar bem. “É possível. Tem dias legais e outros não. Essas coisas podem acontecer, acontecem mesmo, com muita gente. Preciso de concentração, às vezes dá um branco. A gente enfrenta muita coisa, né?”

Mais uma saia justa: “Aconteceu uma vez de uma pessoa na platéia estar tão entusiasmada (gesticula com as mãos erguidas) que falava, cantava junto, chorava. Aí tive que, muito assim…, dizer ‘olha, estou muito contente de você estar me acompanhando, mas queria que você desse uma força, fizesse isso um pouquinho mais baixo, para eu poder me concentrar’. Improvisei um negócio para a pessoa não ficar chocada, né? O cara ficou triste, rapaz. Sentou, não falou mais uma palavra. Acabou o show, todo mundo foi embora, ele ficou lá (faz gesto de imobilidade)”.

São histórias que soam banais, mas cujas entrelinhas estão repletas de significados profundos, até porque emitidas por um artista que não sabe (ou não deseja) nunca tratar de banalidades, como atestam letras simples apenas na aparência, como 14 Anos (1966), Coisas do Mundo, Minha Nega (1968), Pecado Capital (1975) ou Vela no Breu (1976).

Como ele próprio canta num samba de Wilson Batista e José Batista, Paulinho é assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim. Em vez de explicar literalmente por que andou tão arisco a contratos com gravadoras e composições novas, usa de sutileza. “Estive várias vezes com contrato na mão para assinar, mas alguma coisa me dizia ‘não faz’. O pessoal estava dizendo que ia acabar tudo, por causa de pirataria, MP3, e eu: ‘Ah, então ótimo, tá bom’ (risos)”. E conta mais uma história.

“(O músico) Charles Gavin estava fazendo aqueles CDs de resgate, ligou para mim propondo relançar os discos do início dos anos 80 na Warner. Eu sabia que havia algum problema com aqueles discos, mas não me lembrava mais. Fui ouvir e comecei a lembrar de coisas desagradáveis, que o disco não foi muito bem aceito até pelo pessoal da gravadora. Havia o momento do corte, da mixagem, em que a gente não estava presente, quando chegava o disco pronto o som era totalmente diferente. Eu pensava (põe as mãos na cabeça): isso vai ficar para sempre.”

Gavin propôs que ele ouvisse a versão original do disco, a “fita máster”. “Quando ouvi, fiquei emocionado. Pô, mas esse era o meu disco, não o que saiu. Isso acontecia com todos os artistas, todo mundo reclamava. Tinha muita briga, discussão.” Autorizou a reedição por Gavin.

E sintetiza: “Desde Eu Canto Samba (1989), achava que o disco não era a primeira coisa”. O Acústico MTV inclui apenas quatro músicas novas. Bebadosamba, o CD de inéditas mais recente, é de 1996, e foi o primeiro de seus trabalhos que recebeu um disco de ouro, equivalente, na época, a 100 mil cópias vendidas (hoje, por inanição do mercado, os produtores de discos baixaram o prêmio “de ouro” para 50 mil).

Curiosamente, desta vez Paulinho topou assinar os papéis da Sony BMG, exatamente quando gravadoras apertam o cerco e propõem contratos não só de lançamento de discos, mas também de agenciamento de shows e publicidade (leia texto à pág. 66). “Hoje há um departamento que se propõe a cuidar da carreira do artista, a oferecer um pouco mais. Achei a proposta razoável. Discutimos muito, mostrei como é minha forma de trabalhar. Sinto o entusiasmo de todo mundo, vai ser bom para as duas partes”, justifica.

Sem nunca perder o tempo da sutileza e do bom humor, Paulinho passeia por assuntos diversos. Relembra Natal da Portela, o antigo benfeitor de sua escola de coração, ligado a samba, futebol e contravenção. “Seu Natal era uma pessoa muito generosa, e muito autoritária. Tinha um braço direito, Armando Passos, frágil fisicamente e uma das pessoas mais doces e inteligentes que conheci. Seu Natal estourava por qualquer coisa, aí seu Armando falava baixinho no ouvido dele, ele acalmava na hora”, lembra.

“O jogo do bicho era reprimido, mas não era. Havia repressão para ter certo controle, mas todo mundo jogava no bicho. Minha avó Júlia jogava no bicho. Pelo telefone.”

Compara os tempos de diálogo interrompido e solidão opressiva de Sinal Fechado com os de agora. Conclui que hoje não faria mais aquela música e que o tempo de agora é melhor. “Com tudo, o Brasil é melhor hoje. Este é um sentimento meu muito recente. Tomara que as coisas se mantenham num nível de tensão, que é importante, em que seja possível algum diálogo. A gente tem que tentar preservar isso, mesmo que às vezes precise ser quase agressivo. Estamos avançando. A vida não está parada, não sou pessimista. Começo a sentir que precisamos das discussões efervescentes que estão aí.”

A avó Júlia volta a boiar pelo ambiente, em mais uma historinha. “Ela conversava com as novelas, falava com os personagens. Nunca vi novela, mas me divertia vendo minha avó (faz gesto de quem tricota). O personagem dizia que ia fazer alguma coisa, e ela: ‘O quê? Você vai fazer? Não vai fazer coisa nenhuma’. Entrava na novela.”

Também sobre política, prefere não ser literal, mas não deixa nada sem resposta. “Leio todo dia, acompanho. Estou percebendo que há um embate, interesses atingidos. Espero que isso possa, de alguma maneira, trazer benefícios a todos, sem distinção. Que o interesse de todos seja maior que o de meia dúzia.”

Confirma que atravessa uma fase de bom astral. Conta, sem entrar em detalhes, que resolveu “umas coisas domésticas, particulares”. Atravessou o momento difícil de ter de afastar do palco o pai, César Farias, ex-integrante do histórico conjunto Época de Ouro, que o acompanhava ao violão há décadas. “Ele está com 88 anos, o tempo do acompanhamento não estava dando mais. Mas ele está legal, converso muito com ele, com minha mãe também.”

O substituto é um de seus filhos, João Rabello. Outra filha, Beatriz Baptista, integra o coro do Acústico MTV, ao lado de Muiza Adnet e Cristina Buarque, irmã de Chico. César Farias não aparece em pessoa, mas o CD e o DVD começam com o samba Timoneiro (1996), e a voz calma de Paulinho da Viola profere os versos imaginados por Hermínio Bello de Carvalho: Meu velho um dia falou com seu jeito de avisar/ olha, o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar.

NOVA ORDEM
Outro modelo de contrato
(o tal “texto à pag. 66”)

Após uma década sem contrato fixo e duradouro com gravadoras, Paulinho da Viola cedeu à proposta da Sony BMG. O Acústico MTV é o primeiro projeto a sair com o selo Day 1 Entertainment. Trata-se de uma “agência de talentos” fundada pela multinacional em âmbito latino-americano, e propõe integrar lançamento de discos, produção de shows e intermediação em contratos publicitários.

Agressiva, a estratégia provoca temores em artistas e empresários musicais, alguns dos quais vêem na novidade uma ofensiva competitiva sobre lucros que antes pertenciam somente a eles. Segundo o gerente-geral da filial brasileira, Alexandre Schiavo, a Day 1 tomará para si fatias de 10% a 20% dos contratos publicitários e em torno de 20% das receitas obtidas com shows. “No caso de artistas novos, é natural que a porcentagem seja um pouco maior”, completa.

“Pago ensaio, instrumento, cenário, marketing, apoio jurídico. Mas não tem questão leonina, a outra parte tem que aprovar tudo. Não é pegar uma parte do lucro, é investimento em artistas.” Ele diz que contratados da gravadora que não queiram aderir ao projeto não serão isolados ou desprestigiados.

Entre os parceiros iniciais da Day 1 está a ZV2, de Zeca Vitorino, que agencia contratos publicitários para artistas da Rede Globo, entre outros. Em alguns países onde se instalou, a Day 1 administra carreiras de jogadores de futebol. “Acaba resultando em sinergia, fala-se de mercado de celebridades”, resume Schiavo, com a ressalva de que, aqui, a prioridade será da música. Mas, adiante, conta que já foi procurado por jogadores, e “está conversando”.

Nos últimos anos, artistas como Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa e Elba Ramalho abandonaram a gravadora por não concordar com os termos de renegociação de contratos. “Para mim, é questão de ego e vaidade”, dispara Schiavo.

E Paulinho aparece na contramão, como primeiro artista da Day 1. “É muita sorte nossa, né?”, comemora o executivo. “Ele é sensacional, estou muito feliz.” – PAS

(*) textos extraídos da “carta capital” 466, de 17 de outubro de 2007. uns “bônus” aparecerão aqui mais adiante.

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