e tu, colega? será que tu também não tem a perna de pau, o olho de vidro, a cara de má(u)?

[“carta capital” 361, 12 de setembro de 2007. assunto de máxima, máxima, maximíssima importância!]

PIRATARIA INTESTINA
O vazamento antecipado de Tropa de Elite põe a indústria cultural em xeque

Após cerca de dez anos em que a indústria cultural procurou atirar a camelôs e consumidores toda a culpa sobre a pirataria, a realidade finalmente bate às portas das gravadoras de discos e produtoras de filmes. O motor é o inédito e ruidoso caso do vazamento público do filme Tropa de Elite, que só estrearia em novembro próximo, mas se disseminou em DVDs piratas e pela internet. Uma investigação policial foi aberta, teve de abordar o possível envolvimento de um ator coadjuvante do filme e culminou no indiciamento de um funcionário da empresa de tradução e legendagem Drei Marc.

A conclusão, também inédita em termos oficiais, é de que ao menos desta vez a pirataria começou do lado de dentro da própria indústria. O caso abre um precedente histórico, pois chama os diversos ramos da produção industrial à responsabilidade no processo e tira dos executivos o discurso renitente de repressão aos consumidores e atribuição de culpas somente aos mercadores informais da periferia da engrenagem cultural.

Com o alto orçamento de 10,5 milhões de reais, Tropa de Elite é um filme de ficção inspirado na atuação violenta do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar (o Bope). Sem ter estreado oficialmente, é a produção de maior repercussão do cinema brasileiro atual. A Paramount, distribuidora do filme no Brasil, teve de antecipar o lançamento para 12 de outubro, mas o boca-a-boca se espalha de modo bem mais veloz, sobretudo no Rio de Janeiro.

“O que é inédito no vazamento é que deu origem a um fenômeno mercadológico”, afirma o cineasta José Padilha, que estréia no formato de ficção após dirigir documentários como Ônibus 174 (2002). “Mesmo sem ter nenhuma campanha de marketing, virou uma febre nos camelôs e na internet, a ponto de a torcida do Flamengo ter cantado em coro falas do filme durante um jogo no Maracanã”, diz.

“É uma tristeza. Intelectuais, jornalistas e acadêmicos estão fazendo debate em cima de um filme pirata. É muito estranha a ética brasileira”, lamenta um dos produtores do filme, Marcos Prado, também diretor do documentário Estamira (2006). “Todo mundo que conheço me diz que já assistiu. Se pego táxi, o taxista diz que já viu quatro, cinco vezes”, espanta-se.

No dia 24 de agosto, Tropa de Elite foi adicionado anonimamente no site de compartilhamento de vídeos YouTube, na íntegra, em dez partes de quase dez minutos cada. A primeira parte foi visitada cerca de 50 mil vezes em menos de duas semanas, até que fosse retirado do ar, na quarta-feira 5. Em barracas de camelôs, o DVD pirata começou a ser vendido no meio de agosto, a 10 reais. Hoje, é encontrado por até 2 reais a cópia.

Inicialmente, três operadores de som da Drei Marc foram tratados como suspeitos pela Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Propriedade Imaterial (DRCPIM). Um deles, Marcelo dos Santos Lima, de 26 anos, acabou identificado como o autor das primeiras três cópias não-autorizadas, feitas no final de junho, quando a empresa preparava a legendagem para mostrar à distribuidora internacional do filme, Harvey Weinstein. “Marcelo diz que não teve motivação de lucro, que copiou para passar para o amigo ator que trabalhava no filme”, afirma o delegado responsável pela investigação, Ângelo Ribeiro de Almeida Jr.

O amigo em questão, Alexandre Mofati, interpreta na tela o capitão Carvalho, um policial do Bope. Recebeu uma cópia do funcionário da Drei Marc, cuja mãe é empregada da família do ator há 30 anos. Em depoimento, Mofati disse que não sabia do conteúdo do DVD até ganhá-lo de presente e que após assisti-lo guardou a cópia em casa e avisou à produtora sobre a pirataria. O diretor e o produtor afirmam que não foram avisados.

A partir das primeiras cópias, segundo o delegado, desenrolou-se o fio da meada que passou por amigos de amigos, fez parada num batalhão da Polícia Militar (onde o filme pirata teria sido assistido) e desaguou no mercado informal de vários estados do País.

Caso se verifique o intuito de lucro, o único indiciado da corrente pode vir a cumprir pena de até quatro anos de prisão, por violação de direitos autorais. O delegado afirma que a investigação “está praticamente encerrada”.

Nos vários elos da corrente, o discurso é evasivo quanto aos vínculos entre os crimes de pirataria e setores da própria indústria. “É difícil afirmar isso. Na DRCPIM não temos registro anterior, foi o primeiro caso que tivemos de um filme vazar meses antes da estréia. Não dá para a gente encontrar um só culpado”, diz o delegado. E volta à base da pirâmide: “A pirataria está atrelada à questão social, muitas vezes é uma alternativa ao desemprego”.

“É achismo meu, mas imagino que, por se tratar de um filme que retrata a realidade do Rio, o cidadão se entusiasmou e fez a cópia achando que não teria maiores conseqüências. E acabou se dando mal”, opina o ex-delegado Antônio Borges, hoje diretor-geral da Associação Antipirataria Cinema e Música (APCM). A entidade criada em conjunto pelos setores fonográfico e cinematográfico para tentar estancar a sangria que mina os poderes da indústria.

“Onde existe a mão do ser humano, há a possibilidade de existir algum tipo de fraude. O que se pode é tentar minimizar isso, colocando o máximo possível de segurança nas empresas”, completa Borges.

Uma das atuações recentes da APCM foi indicar o caminho para a prisão de dois “piratas” que negociavam em público, pelo site de relacionamento Orkut, a venda e entrega doméstica de cópias de DVDs e CDs. “Detectamos por intermédio dos nossos surfistas de internet”, diz o diretor. Um dos presos em flagrante seria estudante da USP.

O caso de Tropa de Elite radicaliza experiência já vivida no lançamento de outro filme de grande popularidade, 2 Filhos de Francisco (2005), de Breno Silveira. Ali, a pirataria se disseminou concomitantemente à estréia, e antes do lançamento oficial em DVD. A distribuidora Columbia estimou, em novembro daquele ano, que 400 mil cópias piratas em DVD tivessem sido vendidas. O presidente da República foi um dos espectadores de cópia pirata.

No último dia 4, o blog do jornalista Mauro Ventura em O Globo noticiou que o governador do Rio, Sérgio Cabral, havia assistido a uma cópia pirata de Tropa de Elite e estudava tomar medidas políticas por influência do filme. Cabral o desmentiu no mesmo dia, no próprio blog, e afirmou que iria ver uma cópia oficial no dia seguinte, em companhia do cineasta.

Todos esses lances mostram que a pirataria na indústria cinematográfica se aproxima de níveis generalizados a que as gravadoras de discos tiveram de se acostumar ao longo desta década. No ambiente fonográfico, é rotina que os CDs mais esperados aportem na internet antes de chegar às lojas, às vezes no mesmo momento em que cópias de amostra são remetidas aos jornalistas especializados em música. Hoje, gravadoras retardam até a entrega de cópias às assessorias de imprensa que fazem o meio-de-campo entre artistas e jornalistas.

No pano de fundo de um dos muitos jogos de espelhos provocados pelo episódio, aparece uma questão que há muito causa desconforto na indústria cultural local. A difusão fora de controle de Tropa de Elite toca no ponto nevrálgico da falta de acesso dos brasileiros à cultura e, conseqüentemente, da meta até aqui não atingida de democratizar esse acesso. Em poucas semanas, o filme causou mais impacto e foi mais visto e comentado que a maioria das outras obras em cartaz, embora à revelia dos interesses comerciais dos produtores.

Num primeiro momento, a equipe privilegia um discurso de indignação contra o “crime” do vazamento e deixa em segundo plano possíveis efeitos benéficos do maior acesso à obra que criaram. “É um momento delicado para dizer qualquer coisa nesse sentido, depois de sofrer na carne o estupro que a gente sofreu”, diz Marcos Prado. “Não dá mais, não se entende em que mundo vivemos. É uma crise tão grande que as pessoas acham normal a violência do Bope, que abriga policiais violentos, torturadores”, protesta.

Padilha toca de raspão no tema da democratização involuntária que o filme tem proporcionado: “Não sei avaliar o prejuízo para o filme nas bilheterias. Sei que será muito grande, pois constato que muitas pessoas já viram a versão pirata, em todas as classes sociais”.

Em 28 de agosto, o cineasta publicou em O Globo um artigo sobre a pirataria, em que repudiava com veemência uma hipótese que costuma rondar casos como esse, de que o vazamento fosse uma jogada de marketing. “Será que alguém pode imaginar, em sã consciência, que eu, a minha empresa, a Universal Pictures, a Harvey Weinstein Co. e a Motion Pictures Association montamos uma farsa com o intuito de usurpar o resultado do nosso próprio trabalho?”, perguntou.

O texto não contemplava teor autocrítico nem mencionava responsabilidades do setor de cinema. E se referia de modo contundente à polícia e à mídia: “Podem-se encontrar na imprensa e na internet comentários feitos por jornalistas e policiais a respeito do conteúdo do filme. Ora, cada comentário desses é uma confissão tácita da violação de direitos autorais e patrimoniais. Afinal, eles foram feitos por pessoas que viram o filme, e este só está disponível na sua versão pirata!”. Tratou tal postura como “hipocrisia”.

Na defesa intransigente do próprio produto comercial, Padilha repudiou “a impressão de que o pirata é um criminoso menor”, numa reivindicação direta à repressão policial em prol de trabalhadores que “têm família e também precisam de suas rendas para sobreviver”. Contraditoriamente, o discurso prioritariamente repressivo é o mesmo que Padilha coloca em xeque em seu filme, inspirado no livro Elite da Tropa (2006), escrito pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares em parceria com os policiais militares André Batista e Rodrigo Pimentel. Numa narrativa em primeira pessoa que expõe e humaniza um membro do Bope, o livro busca se aprofundar nas raízes amplas da violência e da brutalidade policial.

Um dos pontos exportados dali para a versão em cinema causou discussões acaloradas entre espectadores nos fóruns do filme disponibilizado no YouTube. O centro da discórdia é o modo como o filme se refere a usuários de drogas pertencentes às classes sociais mais elevadas, insinuando sua co-responsabilidade pela violência que explode nas periferias.

Embora contrafeito com a pirataria, Padilha comenta a discussão potencialmente incendiária, na entrevista por e-mail a CartaCapital: “Com as regras atuais, tais como a criminalização das drogas e a má remuneração da polícia, nosso jogo vai resultar inexoravelmente em mortes e perdas elevadas. Isso me parece ser um fato. Montamos um filme com a intenção de chamar atenção para esse fato de uma maneira compreensível, e o debate metalingüístico do YouTube parece indicar que isso está acontecendo”.

É outro ponto em que o debate avança, ao mesmo tempo por iniciativa e à revelia da equipe criadora. O filme dialoga com antecessores como Cidade de Deus (2002) e o recém-lançado Cidade dos Homens, de Paulo Morelli, que recolocaram as favelas no mapa do Brasil oficial, mas as retrataram como organismos autônomos cujos problemas não tivessem inter-relações importantes com as camadas mais ricas da sociedade.

Tropa de Elite, em contraponto, integra à lista dos responsáveis pela violência nas favelas o Estado (na figura da polícia), os cidadãos que consomem drogas no asfalto, a sociedade como um todo. O trajeto é intricado, mas em tamanho jogo de espelhos não é de estranhar que a própria indústria cultural seja chamada a assumir responsabilidades inesperadas, por intermédio de um de seus subprodutos mais “malvados”, a pirataria. A trama de Tropa da Elite se desenrolará nas telas de cinema, mas também fora delas.

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