estava olhando aqui e notando quantos textos foram ficando pelo caminho, porque o tempo corre rápido e eu acabo não os transpondo lá da “carta capital” cá para o blog. pois então, escolho agora este aqui da edição 421, de 29 de novembro de 2006, porque algo me diz que faz sentido propício e bacana neste momento.

A MADRINHA DO RAP
Os sambas mais engajados de Leci Brandão saem do anonimato e dialogam com a produção das novas gerações

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Em 1974, ela era apadrinhada por Cartola. Nestes anos 2000, vê-se transformada numa madrinha simbólica de artistas como Mano Brown e Seu Jorge. “Mulher negra de origem humilde”, como gosta de se autodefinir, Leci Brandão puxou a Cartola no que diz respeito à lealdade ao samba, nos últimos 40 anos. Em tempos recentes, no entanto, parece mais próxima do que nunca dos rappers, pela atuação não só musical, mas também social e política, que ela exerce em letras de samba ou integrando o conselho da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, instituída pelo governo Lula.

O ponto de partida e o ponto de chegada convivem dentro dela, e hoje estão mais visíveis também para o público. A nem sempre lembrada ligação com Cartola, por exemplo, volta à tona na reedição em DVD, pela gravadora Trama, de um programa da série MPB Especial. Entrevistado e dirigido por Fernando Faro, Cartola cantava e apresentava uma moça de jeito tímido e inseguro, que batucava uma caixa de fósforos e, de quando em quando, cantava uns sambas que ela mesma havia feito. Era Leci Brandão.

“Nós dois éramos recém-contratados da (gravadora independente) Marcus Pereira, que transou o programa e shows que fizemos juntos pelo Brasil”, relembra a partida para uma carreira nacional, apoiada por um sambista de 66 anos cujo nome, até então, nunca constara do topo de um disco. A própria Leci já compunha fazia uma década, primeiramente no anonimato e depois na Mangueira, onde seria descoberta pelo jornalista Sérgio Cabral.

“O pessoal gostava muito das minhas letras, porque eu era considerada pelos intelectuais da zona Sul do Rio ‘a negrinha magrinha da Mangueira que faz música de protesto'”, evoca. Embora pertencesse à mesma geração de Chico Buarque, Elis Regina e Gilberto Gil, sua chegada ao cenário musical foi mais demorada. Enquanto eclodiam festivais de MPB e atos institucionais, ela trabalhava como telefonista, operária numa fábrica de cartuchos e auxiliar na Universidade Gama Filho, onde, agraciada por uma bolsa de estudos, viria a iniciar um curso de direito.

“Eu não era ligada a essa coisa de ditadura. Sabia que tinha havido uma revolução, tudo bem, que meu pai era bem da direita, gostava de Carlos Lacerda e tal. Uma das coisas que dona Paulina Gama Filho disse, quando me falou da bolsa, foi ‘nunca converse com meu pai, não deixe transparecer nada dessas suas idéias, porque lá eles são o inverso disso’.”

É que, mesmo sem entender o que acontecia, ela já era militante. “O protesto que eu fazia era o do cidadão que andava de trem, pobre, suburbano, negro. Fazia parte da minha vida, minha mãe era servente de escola, morei muitos anos em fundos de escola pública. Foi talvez por isso que, quando assinei contrato, fiz uma promessa a mim mesma, de que ia fazer da minha arte uma forma de defender as pessoas, as comunidades, o meu povo.”

Compor protestos lhe causou dificuldades, desde o início na Mangueira. Galgando desde 1971 a posição incomum de mulher com carteirinha da ala de compositores da escola, foi seis vezes finalista de concursos para escolher o samba-enredo anual. Não venceu nenhuma. Seria pelo fato de ser mulher? “Não sei. Não, acho que era porque minhas letras sempre tinham um recadinho político no meio.”

Exemplifica um desses “recadinhos” rejeitados: “Para um enredo chamado Coisas Nossas, escrevi eu sei, Brasil, que o mundo anda brigando pelas ruas/ mas as coisas que são suas vou mostrar nesta canção/ um índio amigo vive alertando, estão matando sua humana condição. O enredo tinha a ver com Petróleo, tinha a Petrobras por trás. E a minha letra não elogiava a Petrobras”.

Foi logo parar na multinacional PolyGram, em que seguiu sublinhando temas sociais até ser inscrita, pela gravadora, no festival MPB 80, da Globo, com Essa Tal Criatura. Ganhava projeção nacional pela primeira vez, mas os holofotes tiveram o efeito de ressaltar a veia de protesto. Apresentou sambas fortes como Zé do Caroço e Deixa, Deixa para o repertório de 1981, recusado pela PolyGram. “Pedi rescisão do contrato, e não conseguia mais gravadora. Fiquei cinco anos na geladeira.”

Os sambas de teores politizados só viriam à tona em 1985, pela gravadora nacional Copacabana, entre futuros clássicos do pagode “de raiz” como Isto É Fundo de Quintal e Papai Vadiou. E só seriam notados a partir de 2000, quando Zé do Caroço virou sucesso comercial com o grupo pagodeiro Revelação.

O samba, que denuncia as condições precárias no Morro do Pau da Bandeira, só chegou recentemente às classes mais intelectualizadas, pela voz de Seu Jorge, que, no trecho na hora que a televisão brasileira/ distrai toda gente com a sua novela, substituiu “distrai” por “destrói”. Leci aprova a provocação, mesmo sendo figura freqüente nas coberturas carnavalescas da Globo, como comentarista dos desfiles.

Ela sabe que ficou estigmatizada pelo hábito de narrar, ao vivo, os nomes de todos os membros das comunidades que vê passando pela telinha. Mas não arreda pé. “Sei que falam ‘lá vem a Leci Comunidade’ e que programas de tevê não me chamam porque acham que só falo disso. Mandavam cartas falando que sou uma chata que só fica falando nomes que ninguém quer saber, ou que eu não falava os nomes das celebridades que passavam. Mas desses não tinha que ser eu a falar. Por alguns segundos, na tevê, havia alguém tratando bem aquelas outras pessoa””, diz.

Cumprido o percurso até o ponto atual, há as recorrentes homenagens de rappers como Racionais e Rappin’ Hood a Leci, e também dela a eles (como em Pro Mano Brown, de 1999). Essas culminam agora no CD e DVD Canções Afirmativas, em que Leci canta com convidados como Alcione, Jorge Aragão, Paula Lima e… Mano Brown. O líder dos Racionais quis gravar outra das rejeitadas 30 anos atrás, Deixa, Deixa, cuja letra diz deixa ele curtir, deixa ele tocar e sapatear ou deixa ele escrever, deixa ele cantar, deixa discursar, para então concluir que é melhor do que ele sacar de uma arma pra nos matar.

É a idéia defendida hoje por movimentos e núcleos como hip-hop, funk carioca, Olodum, Timbalada ou AfroReggae, de que cultura e arte podem ser instrumentos para resgatar jovens periféricos da violência. Leci já falava nisso todo dia, desde quando avisava que está nascendo um novo líder no Morro do Pau da Bandeira. Sob seu canto quase silencioso, fermentavam-se vozes como as de Mano Brown e MV Bill, que hoje ela apóia com entusiasmo:

“Na ditadura, os compositores intelectuais faziam protesto, porque aquilo estava atingindo seus pares. Mas aconteceram e acontecem coisas bem piores no País e não vejo mais ninguém fazendo nada, a não ser a juventude negra que faz hip-hop. Tem gente que acha que música é para a gente se deleitar, mas acho que você não tem que ir ao público só para ele aplaudir, comprar seu CD, colocar você na parada”.

O ponto de partida, nota-se, é o de chegada: “Na condição de mulher negra de origem humilde, tenho que ser fiel aos meus referenciais. Se vou a rádio, tevê e jornal e tenho portas abertas para falar, por que não continuar batalhando contra o preconceito, pelo direito da mulher, pela igualdade racial?”.

Esse é o projeto que ela cumpre até hoje, assinalando críticas à mídia “classe A” que simula não percebê-la, mas também formulando uma autocrítica a Leci Brandão: “Sei que estou um pouco diferente daquela Leci dos anos 80. Eu era mais dura, incisiva. Estava tendo muita complicação para conseguir entrar, então o que fiz? Passei a cantar as mesmas coisas que cantava, mas com o rosto mais suave, com mais sutileza, com mais sorriso. E passei a atingir muito mais gente”.

Coincidência ou não, é um processo que Cartola (1908-1980) não teve tempo de conhecer, e é o aprendizado vivido por Mano Brown, MV Bill, Nega Gizza, Negra Li, Seu Jorge e outros cantores de protesto (e de festa). Dona Leci está bem ali, pairando entre pagodes paulistas, bois-bumbá paraenses, afro-reggaes baianos e as rampas do planalto central do Brasil.

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