o instituto datafolha fornece a informação de que, estatisticamente, 65% dos brasileiros apóiam a instituição de cotas raciais no ensino superior deste nosso país. [“curso superior”, todo mundo sabe, é a “faculdade”, é onde se formam as “melhores” cabeças, é a “universidade”, é a formação “universal” de brasileiros e brasileiras.]

essa aprovação cresce para avassaladores 87% de nós, se o termo “cotas raciais” for substituído por “cotas sociais” – ou seja, por cotas para pessoas “pobres” e de “baixa renda”, independentemente da sua “cor da pele”, e relevando o fato de que, você sabe, no brasil uma parcela enorme dos pobres é preta e uma parte gigantesca dos pretos é pobre.

contrários às cotas racias são apenas 25% – os 10% restantes na conta abstrata que resulta em 100% não souberam ou não quiseram responder.

tudo muda dramaticamente de figura quando a pesquisa se detém nos estratos sociais que os brasileiros pesquisados formam e que os brasileiros viventes formamos.

entre os nativos aborígenes-nômades-sedentários-cidadãos que abocanham mensalmente mais que dez salários mínimos de renda, apenas 39% se declaram favoráveis à instituição de cotas raciais.

são ínfimos 4% os que, não-sabichões, não se pronuciaram mesmo pertencendo a essas tais classes sociais “cultas”, dos dez mínimos “graus culturais” para mais.

noves fora esses e aqueles, 57% dos “informados”-“cultos”-“educados”-“sabidos”-“viajados” berram um sonoro “não” às cotas raciais (sobre cotas sociais, a informação não foi publicada – e eu queria tanto saber, ó, dona informação…).

[os brasileiros que faturamos mais de dez salários mínimos mensais somos minúsculos 2% do brasil pós-indígena todinho, você sabia? possivelmente os 2% com maior teor de violência verbal, “virtual”, aqueles do topo do topo do topo que delega à favela a tarefa de verter sangue vermelho na violência “real”.]

pois é, você sabe, uma parcela monumental das pessoas que no brasil ganhamos mais de dez salários mínimos por mês é(somos) ou se tem (nos temos) como “branca”(os).

é chocante.

é chocante.

é chocante.

eu leio estarrecido essas estatísticas todas, e me ponho pensar em minha classe social, ou melhor, em minha classe profissional, ou melhor, em minha categoria profissional (e na dos meus-nossos patrões, e nas de seus-meus-nossos pares).

estatisticamente, somos 65% favoráveis às cotas (ou, no mínimo que seja, que somos favoráveis a algum tipo de atitude e transformação que nos tire da inércia escravagista, grotesca, bruta e brutal em que vivemos historicamente). em contraponto a nós, instituições de nomes sólidos como “veja”, “folha”, globo, “estado” etc. empilham editoriais versando (ou melhor, proseando) sobre o tema controverso. e o tom é (quase) sempre agressivo, estridente, ofensivo, rancoroso, feroz, violento.

como feras feridas, enjauladas, agressivas de medo que vira raiva.

tais editoriais se posicionam, sempre, como contrários às cotas raciais, você sabe. limítrofes, fantasiam-se de favoráveis às cotas sociais, mas deixe só os legisladores trocaram o “racial” por “social”, para ver se numerosos ferreiras jugullares e caetanos velozes não se apressarão a assinar manifestos contundentes contra as cotas sociais, as outras cotas, as atitudes, as outras atitudes, as atitudes quaisquer, as cotas quaisquer.

o que me espanta e me chama a matutar, enquanto jornalista, é o quanto, segundo desnuda a pesquisa datafolha, os principais dispersores da “opinião pública” têm se distanciado, no brasil (no mundo?,) dos anseios da maioria da população que eles julgavam (julgavam) domar (domar).

e a população (preta?) anseia pelas cotas que a imprensa (branca?) não tolera. está consolidado o corte, percebe?

eu, pedro, não existiria como pas, se fosse preto. sou jornalista, e sou testemunha ocular da história: há pouquíssimos negros nas redações. aliás, tenho certeza de que você sabe, também há pouquíssimos negros em escolas, bancos, escritórios de advocacia, consultórios médicos-odontológicos-psíquicos, fóruns políticos, hipermercados, hospitais, shopping centers, blá, blá, blá…

ou melhor, há. há cotas raciais em todos esses locais. as cotas para negros estão lá, garantidas, silenciosas, destinadas à porção dos faxineiros, copeiras, motoristas, serventes, cozinheiras de café yuppie, eletricistas, encanadores etc. (isso sem falar dos obreiros que edificaram os prédios em que se sustentam shoppings e redações e aeroportos e lavanderias de dinheiro e world trade centers).

as cotas raciais locomovem o brasil, gerando estradas, túneis, metrôs, edifícios e, até mesmo, a música popular brasileira. a título de mero exemplo, foi o negro monsueto menezes, em parceria com nilo chagas e joão violão (co-autor de “eu bebo, sim”, mora?), quem difundiu, na voz da cantora marlene, as frases que dão título a este texto, extraídas do “lamento da lavadeira”.

[o “lamento da lavadeira”, você lembra, já foi apropriado, noutros tempos, pela cantora de paixões ciganas marisa monte (“sabão, pedacinho assim/ olha água, um pouquinho assim/ do tanque, um tanquinho assim/ a roupa, um tantão assim”). antes, os manos maria bethânia e caetano veloso também quedaram embebidos de monsueto, mas privilegiando a nobilíssima política do corpo: “mora na filosofia/ pra que rimar amor e dor?”. viva o hedonismo!]

mas, então, lavadeiras, pedreiros e seus pares ocupam esses postos porque são “preguiçosos” e não “quiseram” estudar, segundo o que pensam silenciosamente muitos dos lordes e condessas do topo das pirâmides – os mesmos que agora se arremessam contra a dita “opinião pública”, nos editoriais, tentando garantir espalhafatosamente a permanência dos “iletrados” à distância do ensino, fora do alcance da formação e da informação, longe da papinha “intelectual” da sopa de letrinhas.

[só não sabiam que no futuro – no presente -, em cada favela, haveria uma lan house, e em cada lan house, um burburinho incandescente de videogames, sites, blogs, representações virtuais da vida real que antigamente morava tãããão longe.]

depois são esses, os duques e as marquesas, que xingam o presidente do país de bêbado, analfabeto, ignorante, cultuador da ignorância. quando o presidente do país adota a postura (enfim!) de reagir à ira apavorada dos coronéis da oposição, fazem como fez o senador pefelista jorge bornhausen ind’agorinha mesmo, quando lula sugeriu que ele(s) lavasse(m) a boca antes de falar de corrupção: chamam o presidente de “desdentado” (percebe o tom, o emblema, o significado de classe por trás do termo “desdentado”?).

[você entende quem o coronel bornhausen está “xingando” de “desdentado”? bidu, são esses mesmos 65% que se afirmam pró-cotas, entre os quais pode até mesmo estar… você. já não é mais cazuza, hoje é a oligarquia fóbica que se suicida aos poucos (ou a galope?), em praça pública. didaticamente.]

precisavam olhar um pouquinho para o espelho, para o espelho.

para o espelho.

[a gente sempre fala do mundo e das coisas do mundo como se não participássemos dele, como se não estivéssemos dentro dele, já reparou? como as coisas que estão no mundo e precisamos aprendê-las (alô, paulinho da viola e nara leão), nós também estamos no mundo e precisamos aprendermo-nos, pois não?]

o espelho é a chave secreta para o encontro dos maiores mistérios, todos eles, sempre.

é ele que evidencia, por exemplo, o dramático corte de classes sociais que estamos vivendo aqui neste maravilhoso brasil exatamente agora. é ele que revela do lado de lá o pcc, que também somos nós do lado de cá (e não vemos que somos).

no espelho bípede bipartido, os do topo reclamam e vociferam continuamente contra tudo e contra todos e contra todas as instituições. fazem-no refestelados no próprio conforto ilusório, cada vez mais assemelhado a um bunker americano-do-norte, ou libanês, ou israelita, ou afegão, ou nordestino do sertão.

no espelho bipolar, os da base da pirâmide trabalham silenciosamente, abrigados no desconforto ilusório que, nessa multidão que recebe até dois salários mínimos por mês (e, abaixo do “dois”, existe o “zero”, você sabe), motiva um índice histórico de 70% de aprovação às cotas raciais (deve ser numerosa a porcentagem de não-sabidos nos 30% restantes, mas isso dona divergência também não nos informa).

os “formadores de opinião” não escutam essa voz majoritária. não conversam com seus próprios porões e suas próprias cozinhas se eus próprios sótãos e suas próprias senzalas pós-modernas e seus próprios banheiros (é nesses que costumam se assentar os espelhos empoeirados da falta de uso).

os “formadores de opinião” não ouvem, ou, quando ouvem, não compreendem o que escutaram. ficam catatônicos, ou então se fingem de surdos.

[“todos estão surdos”, já reclamavam dois dos brancos mais pretos do brasil, roberto carlos e erasmo carlos – “outro dia um cabeludo falou: não importam os motivos da guerra/ a paz ainda é mais importante que eles/ esta frase vive nos cabelos encaracolados das cucas maravilhosas/ mas se perdeu no labirinto dos pensamentos poluídos pela falta de amor/ muita gente não ouviu porque não quis ouvir/ eles estão surdos“. chico science & a nação zumbi, você sabe, se apropriaram mais tarde de “todos estão surdos”, mergulhando-a no mangue, na zona portuária, no puteiro, no lodo, na lama radioativa.]

estão surdos, porém estridentes e barulhentos. de “formadores de opinião”, parecem celeremente se transformar (e isso é o que mais me dói – eu, jornalista, terei escolhido errado meu super-herói?), suicidas, em “deformadores de opinião”.

[porque cota racial, você sabe, é só um jeito de falar um monte de coisas de uma vez só. cota racial é igual a cota étnica, cota sexual, cota de gênero, cota de idade, cota indígena, cota de peso, cota psíquica, cota de veneno (alô, nobre marília pêra!), cota política, cota ideológica, cota cigana, cota circense, cota sem-teto, cota infantil, cota animal, cota isso, cota aquilo, cota aquil’outro (quando você desonra qualquer um desses não-cotistas, desonra a si mesmo, pois todos esses não-cotistas ajudaram nuclearmente a compor sua própria carta genealógica, queira você reconhecer isso ou não. pergunte ao pó, pergunte aos genes, pergunte às gentes)… aliás, você sabe?, “cota” também é um jeito ainda muito temeroso-medroso-assustado-traumatizado de pronunciar um montão de outros signos, bem mais cruciais que “cotas”. “cota” é o nome amedrontado de “transformação”, “mudança”, “atitude” (alô, erika palomino, nosso nelson rodrigues dos anos 90…). atitude.]

pensando melhor, não são deformadores de opinião (foram antes, sempre foram), mas deformadores dessa (daquela) opinião que a voz “real” das ruas cada vez tem menos interesse e razão em ouvir, que a voz “real” das rampas e campos e descampados cada vez respeita menos.

essa voz das ruas, “real”, que sempre calou sem auxílio de alto-falantes, viceja e se dissemina hoje até mesmo com o auxílio nômade das vozes “virtuais” da blogosfera (onde cada cabeça é uma opinião, cada escriba é um jornalista, cada “analfabeto” pode fazer os experimentos que quiser com a própria linguagem) – várias vezes, umas e outras são as mesmas, ou híbridas malucas entre elas.

porque, a acreditar na pesquisa que o grande instituto tem de trombetear, as vozes do espelho já falam(os) mais alto (sem gritar), e já traduzem(imos), em música, mais novas e belas e formosas melodias em canto-fala. pagãos, esperamos que os deformadores de opinião possam fazer meia-volta, olhar para nós (seu espelho), formar um naco de suas caudalosas opiniões também a partir das nossas, na rua, na fazenda, no blog e nas periferias do mundão.

ao fundo, ao sol, marlene canta(mos): “quintal, um quintalzinho assim/ a corda, uma cordinha assim/ o sol, um solzinho assim/ a roupa, um montão assim/ para secar a roupa da minha sinhá”.

nos fundos, à lua, canta(mos) monsueto: “trabalho, um tantão assim/ cansaço, é bastante sim/ a roupa, um montão assim/ dinheiro, um tiquinho assim/ para lavar a roupa da minha sinhá”.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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