um dos meus conflitos atuais com os clichês do jornalismo diz respeito ao obituário. é fácil demais escrever um texto que será considerado sensacional quando se está diante da morte de uma personalidade, sabe por quê? porque a morte é a única circunstância em que um jornalista (comentarista, crítico, analista, escritor, sei lá que nome atribuir ao dito cujo quando se dá o coito entre o trabalhador & a circunstância) se permite transbordar de emoção, afeto, amor. o público leitor aplaude, sintonizado com a comoção movida pela morte – e os textos por vezes são especiais mesmo, já que não é mesmo corriqueira essa descarga de emoção conjunta. é quando a emoção se torna comunitária e circula em sincronia nas partes todas da cadeia predatória, circunstancialmente colocada em estado de congelamento e suspensão diante da morte. é quando a crítica de fígado se esvai, já que parecemos ser solidários apenas no câncer, no gol e na morte.

pois a morte paralisa e anestesia, e pouco se percebe que o excesso de emoção na hora do velório é igualzinha à frieza calculada que empesteia todas as outras horas. sujeitos fartamente criticados e/ou desprezados e/ou rejeitados e/ou repreendidos durante a vida se convertem automaticamente em santos, sob a pena do corvo. o escriba, aquele que demonizava o defunto em vida, cumpre sua “nobre” função carpideira, que coleta tenras carniças com o bico doce e legitimamente emocionado (afinal, o dono do bico também teme a morte e se sente sinceramente impactado por ela). o escriba “sensível” vira papa-defunto, e conquista fama e prestígio por conta da morbidez – a sua própria e a da multidão de seus fregueses.

por isso tudo, meu humor é meio de enjôo diante da morte de guilherme de brito, ou melhor, não diante da morte dele, mas do cortejo fúnebre de perdões e complacências que a imprensa e seus comensais têm de erigir ao seu redor – “sem ele o samba fica mais triste”, “ele deixará muitas saudades”, sabe esses chavões nauseabundos (inclusive os que já usei acima, “ele nunca foi devidamente valorizado em vida”)? como evitar os clichês que banalizam a morte e a vida anterior a ela, sem para isso abdicar de se emocionar e de querer emocionar com o ato de escrever?

me ocorre de imediato minha experiência individual com guilherme de brito, como entrevistador de guilherme de brito, ele já velhinho, mas ainda co-autor do clássico de nelson cavaquinho (alô, eduardo gudin!) que pede também com pronunciada morbidez que “tire seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor”. o propósito era um pequeno show que ele ia fazer no modesto villagio café, de zé luiz soares (alô, zé luiz!!!), e que rendeu na “folha de s. paulo” a entrevista guilherme de brito põe seu sorriso no caminho” (o link do dasluol só vale para cidadãos que possuam o cartão de sócio honorário, sorry, periferias…).

pergunta vai, resposta vem, fui sendo embebido (como não raro acontece, diante de sambistas) pela qualidade e pela profundidade das histórias que guilherme de brito tinha guardadas dentro de si e que desaguavam, diante da mais tênue pergunta. suas respostas, pelo que guardavam de beleza & tristeza & amargura & ternura amalgamadas, foram oprimindo meu peito e me emocionando a ponto de eu ficar com vontade de chorar, ali mesmo, diante dele e de sua esposa, dona nena. profissional rígido feito cadáver, instantaneamente me aparelhei de todos aqueles artifícios de que dispomos para simular a nosso interlocutor que não estamos com vontade de chorar, quando estamos com vontade de chorar.


guilherme de brito olhou para mim, candidamente, e me desmoronou com uma doce pergunta, assim (você sabe que na fala coloquial a gente diz “tá”, e não “está”, né?):

– você tá com vontade de chorar?

– tô. – respondi de imediato, brotando do rigor mortis, transgredindo uma tonelada de férreas regras tácitas (lixo “cultural”, mora?) e, no íntimo, profundamente aliviado por aquela fração de segundos em que guilherme de brito me solicitava passar de entrevistador em entrevistado.

balbuciei “tô”, enquanto guilherme de brito de pronto se expandia, se agigantava.

– ah, não faz isso…, que se você ficar com vontade de chorar, eu também fico – murmurou, os olhos já tão cheios de lágrimas quanto os meus.

sempre me lembrarei de guilherme de brito como o pioneiro entre aqueles, pouquíssimos, que no exercício vêm ensinando a este trabalhador que emoção ocultada é emoção perdida, e que emoção em vida (alô, roberto carlos!) é ainda mais avassaladora que as emoções da morte. de olhinhos molhados (pelas histórias que ele mesmo contava, diga-se), guilherme de brito estava marcando para sempre a minha vida (transformando mesmo o seu curso, eu diria), naquele minúsculo ato de desprezar o tom farsesco que acompanha qualquer entrevista-clichê, em que o entrevistador finge que pergunta e o entrevistado finge que responde e ambos se (des)unem no propósito-regra de se manter ferrenhos em suas distintas posições no mundo, nas redes de proteção (proteção desprotege?) de quem muito precisa atacar e/ou se defender, para que assim restem preservados (preservação depreda?) o medo de ser atacado por parte de um, a sensação de não ter quem o defenda por parte do outro. e vice-versa.

daquele pequeno show no villagio café em diante, entrou em cena mais uma vez o zé luiz soares, com seu sócio na gravadora independente lua discos thomas roth (que hoje atua como jurado “malvado” do inquietante programa “ídolos”, do sbt). na lua, eles bancaram dois discos inéditos (e excepcionais) de guilherme de brito, que banharam de vida a vida que ainda vivia dentro do sambista. chamam-se, esses dois testamentos musicais, “samba guardado” (2001) e “a flor e o espinho” (2003, em companhia do trio madeira brasil). cássia eller e luiz melodia participaram do primeiro, beth carvalho, elton medeiros, raimundo fagner e moacyr luz estiveram no segundo, haja boa companhia, sô! (os camaradas dasluol podem rememorar detalhes tão pequenos em “lua discos dá alento à tradição e inovação”, em “samba dos bambas ganha nova chance em discos inéditos”, em “velhos sábios acionam suas luvas de pelica” e em “guilherme de brito casa amargura e ternura”. bendita internet, que reúne num mesmo cybercafé do espaço-tempo o passado, o presente & o futuro.)

há narizes torcidos, nós sabemos, a essa certa tendência de setores da imprensa musical em enaltecer e mitificar e romantizar o “samba de raiz”, como se tal ato significasse fazer ode ao anacrônico, ao ultrapassado, ao mortiço. pode ser, mas eu acho que não é só isso – junto com esse arrepio e essa vontade de chorar que o samba provoca e sambistas provocam, vem um estranho sentimento de libertação, uma esquisita descoberta de que as coisas podem ser ditas (& cantadas) sem maiores ocultações, de que se pode transgredir convenções de bobeira alegre e de tristeza sonsa, de que não é preciso dourar pílula para se referir à vida como um todo, e não só das partes delas de que a gente não se envergonha (ou pensa não se envergonhar). o curioso é que tais qualidades (a emotividade na frente de todas elas) sejam sistematicamente confundidas com anacronia, pieguice, envelhecimento, rabugice, morte. como se só na proximidade (temporal ou espacial) da morte elas recebessem permissão temporária de existirem, por parte de uma sociedade cruel com os vivos (desde que mantidos a uma distância segura) e “jovialmente” apaixonada pela morte (desde que mantida a uma distância segura).

acho que era isso. hoje de manhã, ao saber da morte de guilherme de brito e ao me nausear com os clichês ao seu redor, me pus a lembrar daquela cena de quase-choro vivida com aquele velho professor. e senti de novo aquela mesma vontade agridoce de chorar.

eu acho que era isso, eis aí repisados todos os chavões. afinal de contas, o que haveria de mau a respeito dos clichês, dos clichês de emocionar e se emocionar com a morte, como talvez estejamos fazendo agora, queiramos ou não? talvez nada, provavelmente nada. o que eu queria, para poder me sentir mais intensamente vivo e sem medo da morte, e menos morbidamente papa-defuntos, era cada vez mais emocionar (e me emocionar), não só diante do episódio épico da morte, mas também no cara-a-cara diário com a vida.

[p.s.: este texto foi escrito ao som de discos de guilherme de brito, amado batista e odair josé – algum problema nisso?]

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