quero falar de uma coisa: a programação musical do auditório ibirapuera no fim-de-semana que passou, sob o nome de batismo “terruá pará”. fui à sessão de domingo, e vi desfilarem diante de meus olhos mais de 50 artistas do norte profundo do brasil, a maioria dos quais eu nunca havia ouvido cantar, uma grande parte dos quais eu jamais havia sabido sequer que existia.
[antes de falar sobre essa coisa, um detalhe tão pequeno quanto importante: o que virá a seguir é menos razão, mais sensibilidade, é mais intuição, menos crítica musical. é necessário ressaltar, para não passar falsas impressões: cheguei ao “terruá pará” sabendo quase nada sobre a música praticada no pará; e saí de lá sabendo ainda pouquíssimo, embora carregado de cds de música popular paraense que o pessoal estava vendendo baratinho na saída, em meio ao bumba-meu-boi que tomou conta do saguão pós-modernista do auditório chiquetíssimo, nossa senhora juramentada da “santa” elite paulistana. tudo o que vier abaixo, portanto, é mais chute do que
ciência, combinado?]
pois então, alguns séculos atrás os bandeirantes paulistas barbarizavam índios nativos e negros africanos ali pelas terras que hoje tomam o nome nostalgicamente indígena de ibirapuera (diz que significa “pau podre”, em tupi-guarani), não foi assim? mas não é que nesse fim-de-semana de março de 2006 os bandeirantes congelados em estátua de pedra monumental que empurra o parque indígena para lá (lá para onde?) testemunharam uma pacífica invasão, numa cena surreal de reintegração de posse por uma trupe paraense que chegava abarrotada de feições ribeirinhas, indígenas, negras, brancas, polacas, ciganas, judias, muçulmanas, caribenhas, mestiças, mestiças, mestiças?
[era um evento de certo sabor oficial: foi o governo do estado do pará que comunicou a são paulo o que, a seu modo de ver, vem acontecendo com a música popular paraense (a quem interessar possa, o governo do estado do pará está atualmente ocupado por bicos tucanos). de$contemo$, poi$, um ou doi$ pontinho$ do placar geral, pelo que po$$a haver de ex$e$$o$ turí$tico$ na ini$iativa. lembremos que deve haver indústria & comércio & marketing cultural & marketing política por trás de tanta beleza oficial. mas e se, ainda assim, nossos afetos persistirem? o que fazermos com o amor pelo que vimos, jogá-lo fora no lixo? vejamos.]
à coisa, enfim: o que a gente ia percebendo aos poucos na noite de domingo era que o único ponto 100% comum entre todos os artistas que iam se sucedendo no palco era a bandeira paraense fincada no sorriso de todos eles e de cada um deles. fora isso, era um caldeirão heterogêneo. as idades dos felizes, por exemplo, pareciam variar mais ou menos dos 20 aos 80 anos. se alongavam dos garotos de surf-punk rock caribenho-amazônico do grupo la pupuña ao charme incomensurável de mestre laurentino, 78 anos, autor-cantor da impagável “lourinha americana”, descoberta pelo projeto “música do brasil” (2000) e gravada no mesmo ano pelos pernambucanos mangue bit do mundo livre s/a (no álbum “por pouco”).
a propósito, eis a letra de “lourinha americana” (experimente “ouvir” entendendo que a lourinha americana fosse o brasil, ou são paulo, e o neguinho brasileiro, o grão-pará de las amazônias infra-venezuelanas-colombianas infra-infra-caribenhas):
“essa lourinha americana/ está querendo me esculachar/ foi dizendo que eu sou neguinho, e bem negrinho/ e lá na américa eu não posso entrar/ mas o que eu mais me admiro/ é de ver o americano, quando chega no brasil/ no brasil com negro vem se misturar. mas o que mais eu me admiro/ de eu ser um nego brasileiro/ e estou noivo pra casar com uma lourinha/ e ela é filha de estrangeiro”.
já era, revogou-se o impedimento sócio-histórico-geo-político: casaram-se o neguinho e a lourinha, a negona e o lourão, são paulo-brasília e o distante pará, pará-brasil e a santinha paulinha do pau oco…
se não havia limites de idade para a gandaia, também não os havia em termos estilísticos. o casório profano se consumava de modo apoteótico, numa seqüência que enfileirava o tecno-brega de gabi amarantos e do dj iran, a epifania de mestre laurentino, uma entrada-surpresa da mais “famosa” cantora paraense – sim, ela, fafá de belém do pará -, o cortejo emocionante do boi veludinho, o reencontro de todos os artistas ao som do boi paraense, a saída irmanada de artistas e público pelas laterais do auditório, a natureza (e nós) lá fora, a volta ao saguão onde-quando-como tudo se mistura, numa pororoca entre os artistas-espectadores paraenses e a platéia-cortejo paulistana (composta, provavelmente, de gentes de todos os estados do brasil, a exemplo dos diretores do espetáculo, carlos eduardo miranda e flu, gaúchos, e cyz, pernambucana).
[e diz que, depois da catarse final, fafá & gabi & todo um mutirão partiram para mais uma, dessa vez na loca, templo underground para todas as tribos (inclusive indígenas) paulistas-paraenses-brasileiras-lourinhas-americanas – essa parte eu perdi, droga!]
era só ver concentrada em fafá uma amostra grátis de toda aquela alegria estampada em tantos rostos que talvez nunca antes tenham pisado nos palcos cá de baixo. fafá rodopiava em fúria santa, enquanto cantava descalça o pará, enquanto trovejava que “meu coração é vermelho”, enquanto se enchia de lágrimas para embandeirar que “nós somos da floresta”, enquanto estufava o peito sempre arfante para reelaborar máxima muito atuante nos dias de agora: “nós saímos da floresta. mas a floresta nunca sai da gente. nunca. nunca” (alô, mano brown! alô, seu jorge!).
o arco de fafá tem tudo para trazer consigo uma euforia contagiante. é o arco de quem migrou, cresceu & apareceu, se descaracterizou, se diluiu, se cansou. de quem depois, surpresa!, se encontra de repente se inflando de orgulho e altivez ao voltar para casa, mesmo sem voltar fisicamente, mesmo sem arredar pé da frieza paulista.
esse pode ser o arco catártico de fafá, mas o momento era menos dela do que dos duplos, triplos, quádruplos, quíntuplos, sêxtuplos e múltiplos ao seu redor. as noites paraenses em são paulo não eram tanto de quem foi e voltou quanto de quem não saiu, de quem resistiu e fez a história da música popular brasileira a partir do pará (você sabia que existe essa gente no brasil?). sofreu a madrinha que migrou, sofreram os órfãos que ficaram, reencontravam-se todos juntos naquelas noites.
eu nem sabia o que me aguardava, mas tive (tivemos) uma pitada apimentadíssima daqueles saberes, dessa gente, naquela noite (em certas horas felizes da vida, pimenta nos olhos dos outros pode ser lágrima comovida). antes das apoteoses, a diversidade que passeava diante de nossos olhos era difícil de assimilar, quase incompreensível a princípio.
o cortejo fora aberto com impacto, por uma dama de formas e feições que evocavam as de alcione (por sinal, uma sambista acariocada nascida no maranhão vizinho do pará). dona onete, condicionada pela própria dificuldade de locomoção, cantou insegura, vacilante, mas grávida de beleza e movimento e das marotíssimas canções paraenses “moreno” e “chuê chuá”. dona onete, leio agora no programa, nasceu em cachoeira do arari (já ouviu falar?), viveu em igarapé-miri (conhece?) e atualmente é secretária de cultura do pará (êita!).
solo e em grupo, os mestres da guitarrada – mestre curica, mestre vieira, mestre aldo sena – nos espantaram com suas sonoridades de contradição ambulante, de metamorfose itinerante, nalgum justo meio flutuante entre os buena vista social club de cuba e as velhas guardas do rio de janeiro. no pará, pareceu, a tradição do choro é tocada adiante com guitarras elétricas (você acredita?!), quando não com o deslumbrante banjo (alô, caubóis texanos!) manufaturado do curica. pureza do samba de morro? ãhã… passeata paulistana contra guitarras elétricas? bah! a pororoca paraense desce montanhas texanas, atravessa furacões cubanos, sobe pampas frios e morros quentes e cerrados e caatingas e sertões e maranhões, e desemboca na floresta amazônica (aquela para a qual o governo do lula do pt e da marina silva dos seringais tem um ousado e ambicioso projeto em vias de se concretizar) – quem foi mesmo que te ludibriou te fazendo acreditar que o eixo rio-são paulo era o umbigo do mundo?
adiante os metaleiras da amazônia, produzindo efeito análogo ao dos mestres da guitarrada – seu pantoja do pará, seu manezinho do sax, pipira do trombone (que também é policial militar em belém, êêita!). jazz, baile de iê-iê-iê, calipso, cumbia, carimbó, lambada, romantismo robertocarlista, boi, xote, choro, mambo, zouk, brega, tudo ao mesmo tempo aqui-agora, sob as barbas brancas de profetas de que eu nunca tinha ouvido falar.
loura, alta, imponente, festeira e emepebista, lucinnha bastos recombinava dentro de si imagens femininas paraenses (fafá, jane duboc, leila pinheiro) e brasileiras (alcione, beth carvalho, nana caymmi, margareth menezes, daniela mercury, sandra de sá, rita ribeiro) – e eu nem sabia que havia lucinnha bastos!, como?, por quê? sem respostas na ponta da língua, restava esperar pelo inimaginável, lá na praça da apoteose: os abraços amorosos entre fafá, lucinnha e gabi, oras bolas para o desgastado besteirol da “rivalidade feminina”, vertentes incongruentes da música paraense entrelaçadas num “a gente se gosta, sim, e daí?”.
e lucinnha cantava-misturava “pimenta com sal”: “quem viu/ uma preta e uma branca/ de mãos dadas na praia/ provocando frisson?”, “o que a preta tem de pimenta/ a branca tem de salgado”. e então se reunia com outro favorito paraense (há pouco o maranhense zeca baleiro co-produziu um disco dele, “maniva”, de 2005): nilson chaves. perfil manso, voz discreta, o temor de dona onete passando de raspão também pela discrição masculina veterana do compositor. mansidão aparente: imediatamente, nilson e lucinnha atropelavam um singular repente paraense, “tambor de couro”, exímio trava-língua, o fino da bossa (alô, gaúcha elis regina! alô, paulista interiorano jair rodrigues!).
e a banda de apoio, equilibrada entre “veteranos” como curica e “modernos” como pio lobato (líder do grupo cravo carbono, de que sempre ouço falar, mas que mal conheço) e mg calibre (co-protagonista virtuoso do solo de mestre laurentino)? e a alegria dos la pupuña diante das gerações de cima? e os percussionistas virtuosíssimos do trio manari, ali o tempo todo, fazendo a ponte de integração entre os “velhos” e os “novos”, entre os “populares” e os “eruditos”? uau.
—ponte—
pois sim, isso aí, o trio manari. não apareceram dessa vez os chocalhos gigantes da apresentação de dezembro no mercado cultural da bahia, mas outra surpresa da noite “terruá” faria chocalho para mais de metro: a exatidão manari serviria de cozinha percussiva para quase tudo no espetáculo, inclusive para… o tecnobrega de gabi!
—ponte—
eis que ela entrava em cena: gabi amarantos. amarantos = amaral dos santos, ex-cantora gospel da paróquia de santa terezinha do menino jesus, “estilista, atriz, coreógrafa e compositora” com “em curso de iniciação em violão, teclado, canto lírico, voz, dicção e expressão corporal”, nos dizeres do jornal paraense “o liberal”. amarantos-manari-lobato, mistura de estilos, mistura de gêneros, mistura de raças, mistura de cores (“meu deus, que horror!”, gritaria madame, horrorizada), tamanha manifestação democrática, santo ibirapuera, batman!
gabi não levou seu grupo-base, o tecno show (formado por ela e marquinhos, eu sei porque comprei o indie-disco “reacender a chama vol. 2” na saída, que eu não sou besta – r$ 15, metade do preço de um cd de “grande” gravadora). mas levou o dj iran, que enxertava na levada batidas tecno, locuções de aparelhagem (“tecno show, e ponto final!”), teclados vagaba de neon, samplers do lema “é fantástico!” e do “plim-plim” da rede globo, armando cama de campanha para canções de singelos romantismo e animação – mas também para a acidez de “matinal”, de pio lobato (“hoje não tem café porque faltou a água/ hoje não tem café porque faltou açúcar/ hoje não tem café porque acabou a borra”).
gabi, concentrando em si própria a simbologia poderosa de divas pós-moralistas como tati quebra-barraco, preta gil e deize tigrona, apareceu toda vestida de negro, uma rainha diaba de chifres pretos, seios arfantes, coxas generosas à mostra, sorriso largo, uma linhagem mítica de fisionomias & gestos & posturas que chacoalha e liqüidifica indiscritivelmente dona onete-alcione-tati-preta.
se tudo até então nos causava um mix de ternura, estranhamento, tolerância e encantamento, gabi chegava para eletrizar o choque cultural. as mocinhas bonitas que dançavam sensualmente aos sons dos mestres da guitarrada e das metaleiras da amazônia de repente emudeceram, sentaram-se, emburraram. espectadores dispersos pelo espaço prenderam a respiração, pipocaram a platéria descendente com discretas expressões de reprovação e descontentamento. numa noite em que tudo podia, o brega podia menos, e gabi amarantos enfrentava os trancos censores com coragem, mania de peitão, pureza cristalina de amarula-amaralina.
se à saída alguém perguntasse aos carrancudos os porquês da repressão estética e estilística à música muito popular e singela, às batidas do tecno, aos chifres de diaba, à explosão sexual, ao sucesso comercial nacional de gabi (e, por extensão, da conterrânea banda calypso de joelma & chimbinha), será que eles teriam resposta na ponta da língua? eu não tenho, e passo adiante a pergunta: quais seriam os “pecados” estéticos de gabi, da calypso, dos artesãos da aparelhagem paraense? em que o tecnobrega seria esteticamente mais repetitivo, menos nobre e mais vulgar que, er, por exemplo, a bossa nova? há diferença, ou é mesmo só preconceito de classe, horror de madame e de intelectual? eu não sei, e ouço gabi com toda a estranheza do mundo. mas, como eu já havia sentido com tati, preta, deize, lacraia, serginho, mr. catra etc., mais uma vez fiquei com vontade de chorar de contentamento diante do despudor estilístico e da sinceridade ética-estética pós-moralista na veia da black-endiabrada gabi.
[havia fragilidades expostas lado a lado com as qualidades descritas aqui com tanto entusiasmo? por certo, havia – mas e daí?, e nós com isso?, atire o primeiro pau podre quem não possuir fragilidades. crítica moralista?, quaquaraquaquá!]
as lágrimas só se desprenderam mais adiante, diante da imagem-som congraçada de laurentino, calibre, fafá, pupuña, onete, nilson, lucinnha etc. – mas começou a desatar antes, na chegada de gabi, juro que foi assim, como a brisa da preamar.
[e já é hora de parar, senão hoje não vou terminar. mas havia ainda mais todo mundo que eu, novato, nem sei como citar, mas cada qual com seus pequenos pontos de encantamento: o arraial da pavulagem e seu lindo “carimbó da ilha”, almirzinho gabriel, toni soares, cada um dos integrantes da orquestra pop tubas da amazônia, vovô, luiz pardal… ainda por cima os compositores, um sem-número de gente presente nas vozes dos outros, ou ausente apesar de paraense (êita!, billy blanco, sebastião tapajós, paulo andré, ruy barata, maria lídia, vital lima etc. etc. etc.); e os meninos da suzana flag, cadê?]
enfim. eis aí o relato atrapalhado de uma noite feliz. ressalto, antes de me despedir e me dispersar pela floresta de pedra, que o tom de descoberta expresso no texto acima, se estiver transparente, não é mais que ilusório, uma miragem. a rigor, há pouca novidade dentro daquela constelação que se descortinou diante dos olhos-ouvidos embevecidos do ibirapuera – esse pessoal todo trabalha há anos, há décadas, com afinco e criatividade, 100% independente dos desencantos vaidosos do sudeste de seu país. nós de cá é que não os (ou)víamos, ou eles é que tinham medo de se mostrar, ou ambas as opções em duplo-morno curto-circuito. mas, se foi verdadeiro o fim-de-semana tupi-guarani pan-brasileiro, não mais. os povos da floresta estão entre (todos) nós, preparadíssimos para se consumarem como paraenses do mundo, prontos para nos miscigenar. os povos da floresta somos nós.