daqui a pouco havera de dizer, como diz zeca baleiro, que ultimamente qualquer beijo de novela me faz chorar. mas é que foi tão bonito, tão bonito, tão bonito, bonito de chorar o que aconteceu no palco de encerramento do projeto “disco de ouro”…

era hora de fazer refazenda e festar refestança com “tropicália ou panis et circensis”, o disco-manifesto coletivo do longínquo 1968.

desengonçados, os vários corpos se moviam como que explorando curiosos e incrédulos o palco-platéia do lina-sesc-bo-pompéia-bardi: se esbarrando, se estranhando, se evitando, se buscando, se entrosando.

pois nada haveria de mais riquíssimo que o fato de o fantasma tropicalista da coletividade cumulativa (mais que competitiva) estar se rematerializando naquele chão paulista pós-tropicalista. era um grupo heterogêneo e desarmônico de músicos & artistas, e eles grudaram pé no palco o tempo inteiro, o grupo total, o baile todo.

era um fenômeno coletivo.

“tropicália ou panis et circensis” foi remontado na íntegra, por dissonâncias tão retumbantes quanto as de rebeca matta e otto, de ceumar e labo, de lula queiroga e sérgio dias – todas de corpo presente o tempo todo, querendo e se forçando e tendo de conviver e interagir sem o socorro de lances mirabolantes ou laivos burocráticos.

de tanta heterogeneidade e desarmonia, fez-se o resultado harmonioso, homogêneo. conviver é difícil, superar rivalidades é penoso, esperar pelo bem comum que não esmague o indivíduo é duro, querer a alegria individual que componha um belo mosaico coletivo é lenha na fogueira, é suor na testa, é festival de bananas ao vento.

mas eis. eis que acontece. já é concreto. não é mais utópico nem pós-utópico.
e a gente vê que já está no século xxi, que o futuro é bem parecido com o passado e que, mesmo sendo, o passado é mesmo uma roupa que não nos serve mais.

por isso sérgio dias. de terno claro e olhar maroto, o ex-mutante conduziu com batuta invisível o espetáculo. nem ele sabia da liderança que exercia, nem o grupo; mas, juntos, todos nós sabíamos. não haveria comentário melhor para a irreverência necessária a um “tropicália reloaded” versão 2005 que os trajes de sérgio dias, vestido ao mesmo tempo de cantor de mambo, sargento pimenta de beatles, príncipe consorte dalguma donzela ruiva iê-iê-iê e malandro carioca dos arcos da lapa nalgum começo de outro século, já passado – era perfurar sem medo da morte o classicismo, o parnasianismo, era a tropicália saindo da juventude para entrar na história.

não haveria mais completa tradução do que acontecia naquele evento pretérito do futuro que a frase curta e crua do mutante caçula: “na verdade, eu sou caetano veloso”.

sim, não era ele, mas só podia ser ele. não seria otto (apesar das trombadas simbólicas com rebeca matta, tensão pernambuco-bahia, macho-caetano trombando assustadiço-agressivo com fêmea-elis, e vice-versa). nem seria ceumar, mais rápida e menos reverente que pai caê na tarefa plástica trans-freudiana de matar a mãe, de trucidar em tripas o “coração materno”. nem seria lula queiroga, co-diretor musical hiperativo, frenético no nervosismo de parecer parecido com nhô veloso, não parecendo.

ninguém ali se parecia com caetano veloso. nem com nara leão (“lindonéia” afetava-se ao masculino, se desconstruía, perdia a majestade que nunca quisera mesmo ter). nem com gal costa, que pairava na sombra, no mínimo bipartida entre rebeca e otto e a agressividade e a ternura e o desejo de comungar e a teimosia de rivalizar (será por isso que ceumar e rebeca, tão opostas, pareciam tão irmãs, tão uníssonas, tão coladas, tão coradas?). nem com tom gilberto zé gil, ninguém se parecia. nem ao menos com o cérebro eletrônico que tudo maquinou e tudo orquestrou lá em 1968 e nem sequer foi citado pela trupe rebelada, ensandecida, descabelada: dotô maestro rogério duprat, pai do cello que nhô velô nunca mais abandonô.

(mas manoel barenbein, produtor grandalhão de tropicálias & erasmos carlos & chicos buarques, estava na platéia. palmas para ele que ele merece!)

tudo se sublimava e voltava a se condensar na ausência dos mutantes (sérgio dias era prova inconteste) e na ausência de torquato neto. sem essa de tempos trágicos e de doces ditaduras. e disso a alegria juvenil dos garotos do grupo labo era prova dos nove.

marcelo ozorio, um dos hermanos do labo, dividira com lula queiroga a feitura da refazenda, o prazer da refestança, a confecção do realce por sobre os arranjos congelados no ar & no tempo de mr. duprat. e ficou tão bonito, tão bonito/a, tão bonita a anarquia compenetrada e descompromissada com que os arranjos se decompuseram e se recompuseram em público.

eram as percussões-acústicas-rita-lee de otto e ceumar, eram as distorções-eletrônicas-arnaldo-baptista de sérgio dias, eram os músicos todos-juntos-reunidos-numa-pessoa-só, ou melhor, o inverso disso.

sobretudo, em tal orchestra klaxon, os antimutantes eram ozorio, arthur joly, daniel setti, fabio pinc e gustavo abreu. alegria estampada no rosto-corpo (alô, guab!), eram eles que exorcizavam a sempre-viva tropicália, chega desse papo careta de mito.

enquanto isso (e por isso), sérgio dias já podia executar tranqüilamente os acordes do hino nacional brasileiro, sem que tal rebeldia eletrônica levasse nenhum general a remeter mais ninguém a férias nevadas no exílio (“eu sou o verdadeiro caetano”, ele não disse? “caetano e gil curtiram londres, paris”, mór legal, ele disse, o serginho, cabeludo danado).

taí, não dá mais para segurar, tá tudo brotando em solo fértil de chuvarada, céu-mar azuis e nova floração. os esqueletos estão chacoalhando (fora do armário), o século novo está saindo do baú (da in-felicidade). se a “retropicália” deste domingo (e deste 2005) vingar e prosperar, o xxi começará sendo o século em que a música (a arte, a cultura, a política, a vida) é coletiva, em que cada indivíduo rege de seu nicho uma formosa comunidade, em que todo solitário se esbalda na mais alegre companhia ilimitada.

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