num triste dia, sobre o solo fértil de uma sofrida terra, edificou-se um portentoso muro. erguido o muro, qual obra dum faraó tropical, certas pessoas que deram de cair do lado de cá passaram a fornecer como endereço “o lado de cá do muro”. diferentes daquelas, sobretudo por questões territoriais, as outras pessoas passaram a ser também categorizadas: moram “do lado de lá do muro”.

(há, como sempre houve, quem more em cima do muro – ou pensam que moram, porque muro não é morada; esses não vêm ao caso agora.)

não ter acesso ao outro lado do muro causa ressentimentos aos borbotões, de um lado como do outro. quem está cá se ressente de não ter acesso ao lado de lá, quem está lá morre de vontade reprimida e enrustida de saber como é do lado de cá. o proibido gera o turbilhão, que fica interno, e só se manifesta como dissimulação – mas se manifesta, o tempo todo, nunca pára de se manifestar.

como band-aid (no calcanhar) feito sob medida para tentar abrandar os ressentimentos que se camuflam, mas nunca cessam, não raro o muro se transforma em altar, em ofertório, em templo apropriado para depositar ex-votos.

o muro, que era só cimento e cal, se torna então muro sagrado das lamentações.

[os companheiros de estripulias já hão de haver percebido que este blog não está disposto a se travestir de muro das lamentações. a pessoa que escreve este blog se cansou, já há alguns anos, de vestir o nariz de palhaço do resmungador cinzento, do reclamador julgador, da carpideira moralista – se é pra resmungarmos e chororarmos, a mídia está cheia, lotada, pululada enfartada de aparecidas do norte, do sul, do leste e do oeste. dirija-se ao próximo guichê, ou então fique aqui mesmo.]

(quanto você paga de dízimo?)

o paradoxal é que o muro, de tanto ácido lamurioso (a bile, o suco gástrico, a secreção da vesícula biliar, as descargas de azia e má digestão, o ressentimento concentrado em gotas cristalinas de veneno), vai aos poucos se tornando vítima do próprio destino. nem que demore mil milhões de anos, água mole em pedra dura tanto bate até que fura. ah, há de furar. o muro outrora imponente e prepotente vai ficando corroído, carcomido, minado, agastado, esfarelado.

(o muro é seu pai, padre, patrão, patrono, predador? o muro é agente, paciente, ponte, bode expiatório?)

se o escopo da sociedade progride, quem “decai” é o muro (levando junto, por conseqüência, seus zeladores decadentistas). é que o muro se faz vítima (o muro gosta sempre de se fazer de vítima) do excesso de uso por parte de quem achava que o muro ia ter vida mais longa que a das tartarugas, por parte de quem achava que o muro ia durar forever, forévis. abusado, o muro demora a se voltar contra o abusador – mas se volta, e entra em rito de pane.

[“não vou posar de vítima das circunstâncias”, afirma este blog, sampleando um popular cantor popular.]

e então, num belíssimo dia, o muro cai. desmorona. sucumbe à ruina, não sobra tijolo sobre tijolo. resta aos ressentidos olhar com medo o panorama do outro lado, descobrir que além do horizonte existe um lugar… igualzinho ao lado de cá. viúvas e viúvos podem guardar os detritos (os meteoritos), colocar à venda na próxima tenda, lucrar com o molambo souvenir (“estive nas ruínas do muro, e me lembrei de você”), até acalentar com horror a convicção em tijolos de que o muro que caiu não caiu, não cairia, não cairá.

mas o muro já caiu.

[“meu sapato já furou, minha roupa já rasgou, eu não tenho onde morar. meu dinheiro acabou, eu não sei pra onde vou, como é que eu vou ficar?”, cantam o muro e suas viúvas, em coro-sample de um samba de elton medeiros e mauro duarte que carrega em seu colo os saberes de clara nunes, cantora de três e muitas mais raças.]

é aqui que queríamos chegar. o muro brasileiro, que todos supunham invisível (porque não queriam enxergá-lo, porocas, marocas, indaiás, embora depositassem suas odes, orações e blasfêmias diariamente na conta corrente do muro-banco que “não se via”), existia, era frondoso e… caiu. ruiu. zefini. e este é o maior momento histórico do brasil – porque o muro caiu, bem-vindos ao novo mundo sem fronteiras.

(experimentemos um passeio pelo lado de lá do brasil. o muro ruiu, a passagem agora é livre, zona franca de fronteira. se andarmos pelo lado de lá, pelas terras que nos eram desconhecidas, descobriremos espantados que o lado de lá era… igualzinho ao lado de cá. porque político é tudo igual, assim como gente também é tudo igual – com todas as bênçãos de toda diferença.)

repetindo, para sublinhar, atenção, pessimistas: este é o maior e melhor momento histórico do brasil. estamos virando uma nação (alô, caetano veloso). basta de velórios, é hora de celebrar, de sair às ruas em festejo, em folguedo, em bruxedo. em todos os cinco, seis, sete e oito sentidos, o brasil é grandão.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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