mais um tiquinho de modéstia às favas: a “carta capital” está indo às bancas amanhã com mais uma reportagem dessas em que o, er, “novo pas” tenta fazer retratos a seu modo do brasil de hoje. é mais uma que me causa imenso orgulho, especial orgulho, inclusive pelas fotos lindíssimas feitas pela parceira olga vlahou.

nem vou entrar agora em maiores detalhes sobre o tema, mas lanço logo uma isca, em forma de gancho-interrogação: você, alguma vez, já viu um cigano?

pausa, outro assunto.

na semana passada estive em brasília, para uma cobertura jornalística (que nada tinha a ver, ao menos aparentemente, com a atual república brasileira de escândalos). com o perdão do chavão, nada impressiona mais o visitante de brasília do que o céu de brasília. o céu de brasília, como por exemplo já quiseram dizer, em forma de música, simone (“céu de brasília”, de toninho horta e fernando brant, em “face a face”, emi/odeon, 1977) e djavan (“linha do equador”, dele e de caetano veloso, em “coisa de acender”, sony, 1992), é avassalador.

unidos céu de brasília e terra de brasília, a primeira impressão muitas vezes documentada é de vazio, de um vazio colossal. ao se ver diante da comprida esplanada dos ministérios – um gigantesco descampado que tem a largura do congresso nacional, e mais ainda -, você se sente vazio, desamparado, penetrado pelo vazio verde que entra por seus olhos.

não é nada que possa surpreender quem já passou um entardecer ou uma noite num sítio, ou na beira de um rio, mas o que move essas primeiras sensações vertiginosas é a relativa ausência de marcos civilizatórios. em bom paulistês ou metrapolitanês, é a falta de prédios grudados amontoados uns nos outros, fachadas poluídas, desarmonia de concreto. boiando simétricos na imensidão de chão verde e céu azul, os olhos tonteiam ao captar, também, a arquitetura modernista quase espacial, a simetria elegante dos ministérios, a catedral que parece uma estrela-do-mar, as duas laranjas brancas bipartidas – enfim, as formas louquíssimas de oscar niemeyer e lucio costa, a um só tempo humanistas e anti-humanistas.

se você passeia pelas asas da cidade simétrica em forma de avião, a impressão é parecida: os blocos de quareirões são regulares e harmônicos, os prédios sempre imponentes repousam afastados uns dos outros, o céu azul de brasília bóia soberano e vaza por entre toda a suntuosa edificação modernista. o sentimento de vazio cresce, faz mareado o estômago.

e tudo isso é falsa impressão, ou, pelo menos, impressão pela metade. o que cega a vista do visitante de brasília não é seu imenso vazio, mas sim a prova inconteste de preenchimento, de recheio, de completude. sem a violência desordenada da arquitetura das grandes cidades não existe em brasília, a grama verde pode se estender qual um maiúsculo tapete vegetal. e, sobretudo, o céu azul pode preencher o coração do visitante num arco inacreditável de 180º, do horizonte direito ao horizonte direito, sem máculas nem soluções de continuidade. o céu em brasília existe em estado de natureza, e o habitante ou visitante é inescapavelmente convidado a comungar com a natureza cheia, completa, brutal em sua graciosidade.

outra coisa que, imanante no céu, encharca as células dos forasteiros (e quem em brasília não é forasteiro, ou pelo menos descendente de forasteiros?) é o acre de poder que emana dessa que talvez seja a cidade mais linda da galáxia extraterráquea. dá um calor gelado por dentro, dá um calafrio quente de se estar testemunhando algo grande, pomposo, solene, amedrontador – e lindo, lindo de doer.

brasília é um dos lugares mais lindos que existem, não é, não?

e, no entanto, ninguém aqui desconhece que brasília é uma ilha da fantasia. foi construída por um mineiro maluco chamado juscelino kubitschek “no meio do nada” (segundo os amargos suculentos), “no coração do brasil” (de acordo com os azedinhos agridoces). já indo embora, eu ouvida do motorista de pele mulata os relatos da vida na periferia – ultrapassado o lustro central da cidade sensacional, uns 20 minutos para leste, para oeste, para o norte ou para o sul, muito de quase tudo é de novo favela, favela, favela. cidades-satélite (oh, nome propício para uma capital extraterrestre) comprimem nas margens da maravilha toda uma outra população, que durante o dia serve café e guia carros oficiais – e que é, provavelmente, filha e neta dos operários “ignorantes”, “incapazes” e “inúteis” que construíram com toda aquela sofisticação descomunal o traço dos arquitetos comunistas.

esse tal contraste explica, por si só, o brasil todinho. o brasil tem sido historicamente um país que vive dentro de um armário. trancados do lado de dentro de um armário que é a ilha da fantasia brasiliense, ricos, riquíssimos e milionários se chamam de “elite”, de “privilegiados”, de “intelectuais”. trancados do armarião ao ar livre que é o ar livre que são o céu e o relento de brasília, pobres, pobretões e miseráveis se esquecem deles mesmos por causa de condição de párias odiados pelos do outro lado, que não entendem que são párias de mesma moeda, a cara virada coroa.

na conferência a que eu assistia, no portentoso centro de convenções ulisses guimarães, o mesmo retrato nu das contradições do brasil se afigurava, tendo brasília como palco. no primeiro dia, não havia latões de lixo espalhados pelo prédio, nem mesmo na área coletiva dos vistosos banheiros. o papel-toalha de quem houvesse lavado as mãos se amontoava feito alvenaria de favela pelos cantos da pia, pelos cantos da parede, pelos cantos do chão. era preciso resolver esse problema, essa mácula evidente do lamaçal que corre por dentro dos encanamentos e dos fios elétricos da cidade-luz. encontrou-se a solução: no segundo dia, já não havia mais papel-toalha. cada visitante que secasse as mãos ao ar seco de brasília, ou então se enxugasse nas próprias calças, fazendo justiça pelas próprias mãos. no caos da selva, eram todos por um, cada um por si.

metáforas à parte, nada disso é só brasília, tudo isso é o brasil inteiro.

a conferência citada, promovida pelo governo federal que empurra lixo para os cantos e pobres para as periferias, era sobre “promoção de igualdade racial”. ao mesmo tempo em que deixa a lama correr, lula é o primeiro presidente brasileiro a institucionalizar e financiar a promoção de igualdade racial. suprema contradição, é como se fosse o rei terráqueo de uma estação espacial estacionada no espaço sideral.

a reportagem da “carta capital” a que me referi no início discorre sobre a histórias dos ciganos brasileiros. para além da miséria ao léu e ao ar livre da cartomante da praça e do músico de lenço na cabeça e argola no pescoço, o povo cigano brasileiro se espalha por todas as classes sociais, inclusive as mais ricas, riquinhas, riquíssimas. quando ascendentes na high society, nossos ciganos usam ocultar sua identidade de origem. vivem num armário em forma de tenda, mansão ou tenda-mansão – um armário irmão daquele armário de cheio & vazio, de claro & escuro de que é feita brasília.

mesmo assunto, portanto.

segundo reza uma lenda subterrânea antiga, e hoje já sustentada por alguns poucos historiadores mais arrojados, o brasil teve um presidente cigano – enrustido, evidentemente. seu nome era juscelino kubitschek. descendente de jan nepomuscky kubitschek, um cigano originário da boêmia que chegou às minas gerais nos anos 1800, jk é o homem que edificou, fundou, mitificou e mistificou este lindo, arrebatador, monumental armário ameaçado pelo céu azul que se chama brasília.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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