“estudando o pagode – tom zé na opereta segregamulher e amor” (trama, 2005) é uma das trilhas sonoras do momento. o cara fala de trocentos assuntos ao mesmo tempo e trança um pouquinho as pernas ao se debruçar sobre os mistérios da condição feminina. mas, aos 68, tom zé ainda trabalha pleno de inspiração, de capacidade de surpreender, de tropicália. já escrevi um tanto sobre o disco na revista, mas vai aqui mais um punhado de pensamentos soltos, desses que ouvir “estudando o pagode” fica provocando.
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em “ave dor maria”, tom zé toma as vezes de homem chucrão e trata a mulher como o tal ser que “chocou” “o primeiro ovo do cão”; ao fundo, um coro de rezadeiras borda uma versão fantasmagórica e distorcida da “ave maria”, e termina a canção espezinhando o homem-vítima-aprendiz-de-jesus: “desce da cruz”, gritam ao parvo que acredita que “mulher é o mal”).
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um dos “instrumentos musicais” recorrentes no disco é a folha de fícus, das quais tom zé extrai sons estranhíssimos, de modo que somente ele saberia explicar; as folhas de fícus entram à toda em “estúpido rapaz”, misturadas a versos que pertenciam à canção anterior (“cru, belzebu, do rabo fez um pirão/ foi o pão que o diabo amassou”), mas que foram exportados para essa segunda, loquaz guerra dos sexos do tom zé que ainda acusa a mulher com a resposta aguda e gostosa de suzana salles, “da mulher/ deixa de pegar no pé”.
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para que a segunda faixa vire a terceira, é convocada a entrada de um jegue que relinchar histericamente; seria o próprio homem o jegue?
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“proposta de amor” tenta reconciliar tom zé consigo mesmo, quando se deslinda uma tentativa masculina de restabelecer a paz entre os sexos (“ó, garota/ eu te convido para um novo tipo de amor/ menos novela”).
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luciana mello será a próxima voz feminina a contradizer a do autor-narrador, em “quero pensar (a mulher de bath)”. a interpretação tipo matrona mandona machona de luciana surpreende e lança nova túnica sobre uma cantora que até aqui tem apelado mais ao convencional que ao inesperado. no texto, o bate-boca se reinstala, com reclames e xingos divertidos da moça: “quero pensar, meu bom rapaz, numa boa” e o e “meu caro rapaz, meu carrapato” (enquanto isso, por baixo, as folhas de fícus estão enlouquecidas, psicodélicas, fotossintéticas). pobres homens, a que tom zé (n)os esfarela?
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advogado de acusação do sexo masculino, eis tom zé ralando o próprio coco em “mulher navio negreiro”: “o macho pela vida se valida a molestar a mulher/ se diverte”. a freira dessa puta é a mulher: “apavorada, ela que se péla, pouco pára de pé/ e padece”. as proposições são justíssimas (“por isto existe no mundo um escravo chamado mulher”), mas, a meu ver, o autor resvala na tentação de defender o duplo oprimido pela arma da piedade – ou seja, mantendo a mulher paralisada na condição congelada de oprimida. quem paga o pato, na opinião do narrador, é ele mesmo, o homem, que “pia, pia, pia pra inibir na mulher o animal” e, por conseqüência, parmanece condenado a “transar uma boneca de pau”.
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“pagode-enredo dos tempos do medo” é um pandemônio. um coro de pagodeiros assalta a canção, entre citações a várias sumidades da bossa nova e a doideira completa das suculentas folhas de fícus. mais: vozes corais de fundo são modulados em rotação acelerada, de modo a ficarem parecendo o pato donald, ou os três patinhos que cantavam o melô do “piripiri” com a gretchen. “essa cultura de massa/ é um saco de gato”, conclui pai tom zé, fazendo couro de pagode-gato para seu tamborim de fícus pós-modernos.
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já vínhamos tomando com sede o o caldo indigesto “de pagode-bossa-tropicália; em “o amor é um rock” entram rock’n’roll e música caipira (o clássico caipira pan-americano “meu primeiro amor”, na voz aqui adoçada de suzana salles). “o amor é egoísta/ sim, sim, sim/ tem que ser assim”, celebra-lamenta o autor, que conhece tudo sobre a parceria entre a faca e a ferida.
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“duas opiniões” é um dos apogeus estéticos do cd, com zélia duncan desfibrando a voz mesculina enquanto suzana salles sangra a feminina. “ridículo chorar/ patético viver/ paradoxal prazer/ apologia do sofrer”, lamenta-se zélia-homem(-mulher); “chorar é coisa do amor/ amor, coisa do coração/ o coração é do sonhar/ chorar este chorinho, chorar”, discorda suzana-mulher(-homem). tom zé invade o final, interrompendo o idílio e blasfemando contra o pagode (pobre pagode expiatório), “esse facilitador de namoro”.
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folhas de fícus voam qual harmoniosos fantasmas. “elaeu” apimenta o jogo de xadrez, simulando agora um diálogo entre dois homens, “guei a” (interpretado em voz feminina por edson cordeiro) e “guei b” (tom zé em si, propriamente dito). o profundo lirismo das duas faixas “gays” do disco mantém em vigor a discórdia entre os sexos, já que a orquestra orgânica de tom zé veta o dueto entre dois graves, ou entre duas agudas.
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“vibração da carne” atinge o fulcro da auto-estima feminina dilacera, conduzindo por isso ao bloqueio do sexo, od prazer sexual. em inversão à inversão de signos, tom zé e jair oliveira fazem, ambos graves, as vozes femininas – a confissão enviesada de que o homem também pode perder/fingir/fugir (d)o prazer leva a nobreza do cd aos píncaros.
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“para lá do pensar” é o momento mais realmente sambeado, apagodado do disco. cita a maracangalha de dorival caymmi, saudades do torrão natal por um sofrido migrante da bahia mãe à são paulo padrasta. tom zé canta só, sem dueto.
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o terceiro ato, fuga e subterfúgio, deriva o conflito nuclear por entre temas quebradiços. a bahia axé e a espanha épica são visitadas em mais um dueto comovente entre jair oliveira (quixote) e tom zé (sancho pança) em “teatro (dom quixote)”, feito para louvar o teatro vila velha, de salvador, e furando na tangente a lógica de “estudando o pagode”.
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após o teatro, é hora de política. samba à moda de adoniran barbosa, “a volta do trem das onze (8,5 milhões de km2)” faz defesa contundente da reconstrução da malha ferroviária brasieira, por cima de um lindo samba pós-moderno. sob posse das vozes masculinas, um excepcional discurso de tom zé ao final, se dirigindo ao “arnesto” dos sambas de adoniran, prepara um final filosoficamente confuso, musicalmente glorioso.
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e “beatles a granel” encerra o disco mansamente, qual uma valsa entre o pagode e o yeah-yeah-yeah, entre o homem e a mulher; testa-se uma ode de recusa à morbidez romântica (“quanto maior romantismo/ mais cruel se transfigura/ o carinho em tortura”), sem que a concórdia se estabeleça – um tropicalista é sempre um niilista por excelência?
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ufa. durma-se com um barulhão desses. nem parece, mas isso tudo é, sim, música popular brasileira da mais alta extração e expressão. acondicionado em obra-prima, tom zé celebra a mocidade voraz de seus quase 70 anos, mas deixa as procuras e os encontros de soluções a cargo das próximas gerações. alô, tem alguém aí?

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