às vezes sonho com um disco (uma coletânea) que fosse uma homenagem simbólica a che guevara, uma trilha sonora dos descaminhos panamericanos. porque che é outro rei da américa de baixo, é outro nosso pai oculto, como desconfiou walter salles em “diários de motocicleta” – as cenas em que o galã gael se embrenha no contato físico com ternos aldeões leprosos ou enfrenta a nado furioso a travessia de um rio asmático são de sério esforço hercúleo de superação, fortíssima tentativa de assimilação e superação de glauber rocha, esse pai que nunca morre.

começaria, a coletânea, com alguma daquelas canções revolucionárias, tristíssimas, que ficam varando a ilha de cuba de norte a sul e de leste a oeste, seja para embalar o turismo louco de varadero ou ventilar as quentes ruas semidestruídas de havana velha.

mas logo cairia de boca no brasil portunhol, caetano veloso cantando “soy loco por ti, américa”, 1967, de gilberto gil e capinan (torquato neto, outro che suicida, mas dessa feita nascido no piauí, já foi atribuído co-autor, mas a história é inconclusiva, misteriosa): “el nombre del hombre muerto/ ya no se puede decirlo, quién sabe?/ antes que o dia arrebente/ el nombre del hombre muerto/ antes que a definitiva noite se espalhe em latino-américa/ el nombre del hombre es pueblo”. o nome do homem morto era che, segundo consta, música e letra feitas no calor da hora do impacto da morte emboscada florestal de che, pai anônimo de chico mendes. a noite se espalhava pelo brasil e pela américa latina, mas não era definitiva.

cortava, então, para “américa do sul”, 1975, de paulo machado, na voz elétrica, fio de navalha, de ney matogrosso: “desperta, américa do sul/ deus salve essa américa central”. a estrada de tijolos amarelos dos descaminhos panamericanos contemplavam a hibernação, o medo de que “the dream is over”, o clamor pelo amanhecer, além de valente reivindicação de ambivalência sexual, por ney, às américas de cá. podia também ser a “américa morena”, 1976, do prosaico abílio manoel, “américa, desperta para o dia de amanhã”, mas aí já era derivação. mas, derivemos, fariam fileira “continente perdido (terra de montezuma)”, 1976, ruy maurity e josé jorge, na voz de flauta doce do “filho de muitas léguas, bandido, índio, américa” erasmo carlos, “neste reino perdido/ sumido, dividido demais”; “soy latino americano”, 1976, de zé rodrix, “soy latino americano/ e nunca me engano”; e “apenas um rapaz latino-americano”, 1976, de belchior, torto de tão triste.

para quebrar, talvez, algo em inglês então, ches de bob, marley e dylan, “rebel music”, “hurricane”. ou, che no feminino, elis regina e milton nascimento em vestidos de violeta parra, colhendo musguitos en la piedra, “volver a los 17”, “gracias a la vida”, graças à morte, tudo 1976.

neles todos, o espectro de che.

então a alucinação, o desbunde. che tragado messiânico, “gita”, 1974, raul seixas e paulo coelho, “sou raso, largo, profundo” como o rio de walter salles. che feito alquimista medieval, discreto e silencioso, morando bem longe dos homens, perdido nas florestas da tijuca, “os alquimistas estão chegando os alquimistas” e “o homem da gravata florida”, 1974, jorge ben. che novamente suicidado, transmutado em torquato neto na homenagem-sufoco em “samba fatal”, 1973, marcos valle e seu irmão paulo sérgio pranteando a corda bamba entre “heróico ou paranóico/ histórico ou histérico”. che plantado nas bananeiras tropicalistas da amazônia, “bananeira”, 1975, joão donato e gilberto gil, “bananeira não sei/ bananeira sei lá/ bananeira sei, não”. che de bata branca, virando calçada maltratada, che feito tim, “tim maia racional”, 1974 e 1975.

neles todos, che dopado, narcótico anônimo, terrorista guerrilheiro forasteiro, orra meu.

faltaria algo, ainda, para que a coletânea pudesse terminar em paz. na linha do tempo entre luiz gonzaga e chico science, “todos estão surdos”, 1971, roberto carlos e erasmo carlos: “meu amigo, volte logo/ venha ensinar meu povo/ o amor é importante/ vem dizer tudo de novo”. che teria de ressuscitar para obedecer o rei; não podendo, beneficiava-se da confusão mental do cara que adorava as frases que viviam “nos cabelos encaracolados das cucas maravilhosas”. pelo alto-falante de rc, debaixo dos caracóis dos cabelos dele, che era, a um só tempo, john lennon, bob dylan, caetano veloso, jimi hendrix, erasmo carlos, roberto carlos e… jesus cristo. católico-culpado-crucificado, che se pregava na cruz, e a coletânea se encerrava por “jesus cristo”, 1970, roberto & erasmo. ao gritar feito pastor gospel que “jesus cristo, eu estou aqui”, roberto parecia querer berrar “jc, onde diabos você se meteu?”, enquanto desempenhava, numa mesma cena solitária, a morte de jesus cristo, a morte de che guevara, os assassinatos da ditadura militar brasil-americana, a psicodelia cristã do desamparo e do desespero. “em cada esquina eu vejo o olhar perdido de um irmão”, suplicava, sabendo que cada irmão em sua américa pálida se sentia exatamente assim, perdido. utópico, um che guevara sentado nos louros da tradição, da família e da propriedade.

ah, a capa. essa ostentaria a clássica imagem do camarada roberto carlos em seu lp de 1972 (que o pernambucano china, ex-sheik tosado de agadir, tatuou na perna esquerda que el rey não possui e que o paranaense valdirlei dias nunes, warholiano, fez imprimir na capa prata de “como dois e dois são cinco”). o olhar mais triste que já existiu. já reparou como aquela imagem reelabora a pose clássica de che guevara, aquela que estampa de boinas comunistas a camisetas hype, tudo nivelado ao som preto, líquido e gasoso da coca-cola? é que che é rc.

che somos nós.

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